Revista CadernoS de PsicologiaS

A banalidade do caos: potencialidades ético-políticas
da Psicologia no capitalismo pandêmico

Fernanda Cristina Pamplona
Psicóloga (CRP-08/25480). E-mail: fercpamplona@gmail.com
#Inquietações_teóricas

Resumo: Tomando como ponto de reflexão inicial o contexto da pandemia COVID-19 no Brasil, acrescido do processo de recrudescimento acelerado dos direitos sociais, políticos e ambientais aprofundados especialmente desde 2016, este breve ensaio busca contribuir para o debate sobre as potencialidades ético-políticas que a práxis psicológica, em sua multiplicidade constitutiva, pode atuar não apenas no desvelamento das desigualdades sociais, mas também no resgate de um ethos pautado no compromisso de transformação social. Para tanto, foi realizado um ensaio teórico-conceitual, fundamentado nas prerrogativas epistemológicas da Psicologia Histórico-Cultural, com recorte centralizado no conceito de fatalismo encontrado em Martin-Baró, à luz da realidade brasileira, conforme exposto em Costa e Mendes e retomando brevemente a conceituação filosófica da relação dialética entre o singular-particular-individual de acordo com Oliveira. Em vista do exposto, delinearam-se cinco proposições de dimensão ético-política que podem auxiliar na atuação das (dos) profissionais da Psicologia no país.

Palavras-chave: pandemia; Psicologia Histórico-cultural; práxis.

The banality of chaos: ethical-political potentialities by sychology in pandemic capitalism

 Abstract: Taking the context of the COVID-19 pandemic in Brazil as an initial premiss, plus the process of accelerated dismantlement of social, political and environmental rights, especially since 2016, this essay seeks to contribute to the debate on the ethical-political potential that psychological praxis, in its constitutive multiplicity, can act not only to unveil social inequalities, but also to rescue an ethos based on the commitment to social transformation. To this end, a theoretical-conceptual essay was carried out, based on the epistemological prerogatives of Historical-Cultural Psychology, with the concept of fatalism found in Martin-Baró, in the light of Brazilian reality, as explained in Costa e Mendes, and briefly taking up the philosophical conceptualization of the dialectic relationship between the singular-particular-individual according to Oliveira. In view of the above, five propositions of an ethical-political dimension have been outlined that may help in the performance of Psychology professionals in the country.

Keywords: pandemic; historical-cultural psychology; praxis

La banalidad del caos: potencialidades ético-políticas de la Psicología en capitalismo pandémico

Resumen: Tomando el contexto de la pandemia de COVID-19 en el Brasil, además del proceso de aceleración de la intensificación de los derechos sociales, políticos y ambientales, especialmente a partir de 2016, este ensayo pretende contribuir al debate sobre el potencial ético-político que la praxis psicológica, en su multiplicidad constitutiva, puede actuar no sólo para desvelar las desigualdades sociales, sino también para rescatar un ethos basado en el compromiso con la transformación social. Para ello, se realizó un ensayo teórico-conceptual, basado en la Psicología Histórico-cultural, con una aproximación al concepto de fatalismo encontrado en Martín-Baró, a la luz de la realidad brasileña, como se explica en Costa e Mendes (2020), y retomando brevemente el concepto filosófico de la relación dialéctica entre lo singular-particular-individual según Oliveira (2005). En vista de lo anterior, se esbozaron cinco propuestas de dimensión ético-política que pueden ayudar los profesionales de la psicología en el país.

Palabras clave: pandemia; Psicología histórico-cultural; práxis

 

Este breve ensaio busca refletir teoricamente acerca de algumas possibilidades ético-políticas por meio das quais a Psicologia, como ciência e profissão, pode contribuir para o desvelamento das desigualdades sociais, de forma a resgatar o caráter transformador da práxis psicológica em sua multiplicidade como instrumento que visa à emancipação humana. Para tanto, tomaremos como eixo central as prerrogativas epistemológicas da Psicologia Histórico-Cultural, com recorte centralizado no conceito de fatalismo encontrado em Martin-Baró, à luz da realidade brasileira, conforme exposto em Costa e Mendes (2020) retomando brevemente a conceituação filosófica da relação dialética entre o singular-particular-individual de acordo com Oliveira (2005). A partir destas contribuições, indagamos: em um cenário de instabilidade social, política, econômica, cujos desdobramentos estão inexoravelmente atrelados a processos de adoecimento psíquico e medicalização social, sobretudo frente à gravidade da pandemia COVID-19 no país, como a Psicologia pode resgatar sua práxis em prol de uma atuação estruturalmente transformadora da realidade social?

O capitalismo pandêmico e o fatalismo individual

A particularidade de como a pandemia SARS-CoV-2 chega e se desenvolve no Brasil demonstra que até os fenômenos tidos inicialmente como circunscritos apenas à esfera da natureza são, em última escala, manifestações do sistema econômico que compõem a sociedade capitalista global. Concordamos com Antunes (2020) que este “capitalismo pandêmico”, anterior à chegada do chamado coronavírus, já expressava um processo de desmonte e ataques aos direitos sociais, ambientais, índices obscenos de informalidade e precarização do trabalho sob a égide do eixo funcional entre o avanço do neoliberalismo exacerbado, do capitalismo financeiro e da revolução técnico-científica informacional não voltada à emancipação da humanidade. Seguimos de acordo com o sociólogo, na medida em que reconhecemos a expressão classista e transversal, hierarquicamente desigual a partir da qual a COVID-19 se expressa tanto entre o norte e o sul do mundo, mas, à luz da realidade brasileira, entre a burguesia e a classe média alta, em detrimento das classes periféricas, sem desconsiderar, neste cenário, os necessários recortes de raça, gênero e etnia.

Destarte, frente a uma processualidade historicamente brutal e levada à última potência no contexto da pandemia atual, a sociedade também é chamada coletivamente a lidar com o sofrimento mental de sua população e, igualmente, com os desdobramentos sintomáticos advindos do confronto irremediável entre a falácia do individualismo neoliberal e a impotência dos sujeitos frente às demandas e as consequências de um sistema intrinsicamente destrutivo. Em outras palavras, se existe um abismo material e estruturalmente intransponível para a maioria dos seres humanos no que tange ao alcance apregoado pela ideologia neoliberal, por que os indivíduos – em sua constituição ontológica de seres sociais – ainda assumem um posicionamento de naturalização das relações sociais capitalistas? Não pretendemos aqui um reducionismo hermenêutico em face de uma indagação de tamanha complexidade e, portanto, reconhecemos o caráter multifacetado e dinâmico que compõe esta tentativa de analisar determinados aspectos que compõem o fenômeno da naturalização do modo de produção capitalista. Também concordamos com Costa e Mendes (2020), quando estes autores grifam que historicamente muitas explicações para o questionamento proposto acima na Psicologia acabaram por enquadrar processos dialéticos em perspectivas centralizadas única, rígida e estaticamente no indivíduo.

Em contraposição às explicações restritamente subjetivistas cujo efeito, ainda que muitas vezes acidental, seja a manutenção de um paradigma interpretativo determinista frente à leitura crítica dos fenômenos sociais, advogamos que no campo das pesquisas em Psicologia é possível utilizar-se de categorias de análise que superem a dicotomia entre a análise estruturalista e análise subjetivista, entre objetividade e subjetividade, podendo-se estudar a constituição dos processos subjetivos sem reduzi-los ao “internismo” nem apenas ao indivíduo singular separado de suas particularidades históricas, pois a essência humana não é uma abstração inerente ao indivíduo singular. Em sua realidade, é o conjunto das relações sociais (Marx & Engels, 1998).

O desafio, portanto, consiste na aplicação crítica de um rigor ético-metodológico que possibilite o reconhecimento de que a Psicologia trata de sujeitos inseridos em uma trama histórica, em determinado tecido social, com práticas e valores culturais situados no tempo e no espaço e, também, que estes mesmos sujeitos se relacionam dialeticamente em sua constituição como seres sociais na e pela ação, de maneira ativa, porém sem serem independentes do modo de produção atual. Nesta perspectiva, nos parece que as formulações de Oliveira (2005) trazem valiosas contribuições ao debate, na medida em que a autora resgata a atuação ético-política da (o) psicóloga (o) no sentido marxiano da emancipação humana, cuja apropriação passa pelo reconhecimento da dialética relação singular-particular-universal através de três dimensões fundamentais, a saber: a) a dimensão ontológica – como o humano se forma ontologicamente no indivíduo, dentro de determinadas situações sócio-históricas; b) a dimensão epistemológica – como se conhece esse processo (que, em nossa sociedade, se tem dado contraditoriamente); c) a dimensão lógica inerente a essa processualidade e que precisa ser apropriada pelo sujeito, para que se possa compreender essa mesma processualidade em seu vir-a-ser real, que é histórico-social.

Com base nessas delineações brevemente apontadas, e inserindo-as na tentativa de compreensão da intensificação dos processos de sofrimento e adoecimento psíquico, cujos efeitos, sobretudo no contexto da pandemia COVID-19, provavelmente só poderão ser mensurados e avaliados a posteriori, tentaremos pontuar quais elementos o momento histórico-social atual pode fornecer como potencialidades de transformação e alteração paradigmática da realidade posta, reconhecendo, para tanto, os posicionamentos que os indivíduos possam assumir, inclusive no sentido contrário à busca pela superação da estrutura social.

Trata-se, por conseguinte, de uma tentativa de deslocamento analítico frente a afirmações corriqueiras no senso comum e mesmo em determinados círculos científicos que justificam a realidade social e econômica do país por meio de discursos e posicionamentos fatalistas como prerrogativas explicativas para a perpetuação de um paradigma social, não apenas sobre os processos históricos, mas também circunscritos aos próprios indivíduos. Deste modo, nos ancoramos no resgate crítico de Costa e Mendes (2020) acerca do conceito de fatalismo para além da noção comumente propagada (com matizes ainda mais marcantes na hegemonia do discurso neoliberal), situando-o a partir das formulações propostas por Martin-Baró na realidade latino-americana como ponto de partida reflexivo para elucidar (e superar) a problemática mecanicista da “passividade fatalista” dos indivíduos.

O fatalismo é a compreensão da existência humana em que o destino de todos está predeterminado e todo fato ocorre de modo inescapável. Aos seres humanos não resta mais nada além de acatar seu destino e submeter-se à sorte que é prescrita por sua sina. […] Neste sentido, o fatalismo revela uma peculiar forma da pessoa de dar sentido à sua relação consigo mesma e com os fatos de sua existência (Martin-Baró, 2017, p. 175).

Igualmente, por meio da incorporação filosófica da relação dialética singular-particular-universal dos fenômenos sociais, possamos vislumbrar possibilidades de atuação e transformação radical da vida humana, com destaque para as contradições que a pandemia COVID-19 pode manifestar no que concerne ao aprofundamento e à brutalização do processo de alienação e sofrimento da vasta maioria da população, ao mesmo tempo em que desvela as falácias da ideologia neoliberal e, por conseguinte, fornece as bases da retomada material para subversão do status quo.

O fatalismo […] é definido por três ideias: a de que a vida é predestinada, sem que as individualidades pesem no processo; a de que essa vida é definida por forças alheias; e a religião como um marco de referência, com atribuição do destino a Deus. Contudo, não são meras abstrações, mas a internalização de uma realidade objetiva e suas relações sociais. Além disso, reverberam em sentimentos de resignação, aceitação do destino e de sofrimento, enquanto afetos aceitáveis, e em comportamentos de conformismo, submissão, passividade e presentismo (Costa & Mendes, 2020, p. 686 – negrito adicionado).

Nessa esteira reflexiva, os mesmos autores analisam que no processo de agravamento das desigualdades sociais, cujos efeitos são sentidos diretamente no empobrecimento e na precarização da vida, o uso do fatalismo como um dos mecanismos ideológicos de naturalização e ocultação da realidade social se torna significativamente mais presente como instrumento que visa auxiliar, inclusive na esfera subjetiva, a manutenção da ordem do modo de produção vigente. Portanto, se a constituição da subjetividade ocorre nos marcos de uma processualidade relacional do ser humano como ser social, trata-se da subjetivação, do correlato psíquico de uma realidade objetiva, cuja expressão ideológica e discursiva está amparada na fundação basilar do sistema social que em sua gênese é contraditório. Ainda, Costa e Mendes (2020) também destacam a necessidade do reconhecimento da natureza dialética do fatalismo como simultaneamente uma expressão de resignação quanto de revolta (individual e/ou coletiva) ao longo de diversos episódios da história contemporânea brasileira – e mesmo latino-americana. De maneira que, essa dupla face do fenômeno pode sinalizar, tanto pela via da intensificação do sofrimento mental quanto pela organização e tentativas de insurreição e transformação sistêmica, expressões de inadequação e incongruência frente às potencialidades do ser humano como ser social e seu enquadramento em uma realidade destrutiva.

Ao passo que a dialética resignação-revolta se constitui no mecanismo ideológico fatalista, esta relação também carrega em si elementos que podem revelar, ainda que muitas vezes pela via da intensificação do sofrimento mental, sua forma germinal de potência revolucionária:

[…] cabe a reflexão de que, apesar destes sofrimentos serem reverberações de resignações e silenciamentos, por outro lado, podem ser uma forma – talvez a única possível – de resposta e visibilidade à exploração e opressão. Logo, ao invés de serem compreendidos como doenças, questões em si, de cunho individual, biopsicológicas, também podem ser entendidos como “revoltas” silenciosas ou silenciadas, sintomas de nossa sociabilidade. Não por acaso, essa perspectiva se volta principalmente para tais indivíduos e grupos sociais que compõem o grosso da classe trabalhadora. Isso se deve ao fato de que, ao sofrerem na pele de forma mais venal as barbaridades de nossa sociabilidade, passam a carregar consigo grande potencial revolucionário – remetendo à Martin-Baró (2017a), portam as sementes da recusa ao destino injusto; afinal, nada (ou pouco) têm a perder, exceto seus grilhões (Costa & Mendes, 2020, p. 692 – negrito adicionado).     

Neste cenário, se um dos princípios axiológicos da Psicologia está relacionado ao compromisso com a humanização, isto é, a promoção das potencialidades que aproximam os sujeitos à esfera universal da humanidade e, por excelência, está igualmente pautada na defesa e no fortalecimento da coletividade como instância inexorável à constituição do ser social, indagamos: como a Psicologia pode, em sua práxis, contribuir para a transformação da ordem social, em um contexto de recrudescimento de conquistas e direitos frutos de (muita) luta histórica?

Psicologia brasileira: memória, coletivo e consciência

Preliminarmente, reiteramos que a análise do sujeito e dos fenômenos humanos para a Psicologia Histórico-Cultural vê o ser humano como um ser sócio-histórico, cujo desenvolvimento se dá nos marcos da dinâmica apropriação-objetivação das atividades que compõem a vida humana como ser social; o entendimento de sua história não como fato isolado, mas circunscrita na processualidade histórica do contexto em que este sujeito está inserido, como produto e produtor das transformações sociais. Isto implica em repensar o próprio conceito de neutralidade como prerrogativa analítica – especialmente (mas não exclusivamente) no campo da pesquisa teórica.

A crítica ao conceito de neutralidade nas ciências humanas não significa uma suposta perda de objetividade na busca pelo conhecimento. Comumente entendidas como sinônimos, enquanto a neutralidade exclui a possibilidade de alcance da essência do objeto por propositadamente desvincular o pesquisador do movimento histórico em que está situado, há, por outro lado, uma objetividade real dentro do corpo teórico que permite a verificação de sua verdade, através da prática social e histórica (Netto, 2011). Lembremos que o estudo de um fenômeno social dentro do modo de produção capitalista exige, como condição sine qua non, a análise das condições materiais que permitem a existência da vida social, incorrendo em abstrações generalistas e especulativas caso não se atenha a tal premissa.

Isto posto, partiremos de cinco possibilidades para o campo da Psicologia no sentido da tentativa de atuar na transformação do fatalismo dos indivíduos, conforme apresentado em Costa e Mendes (2020) e discutiremos estes aspectos visando grifar sua relevância no contexto da pandemia COVID-19. Na perspectiva da transformação social, os autores supracitados elencam que por meio da práxis psicológica em sua multiplicidade constitutiva inclui-se no horizonte a: a) recuperação da memória histórica; b) fortalecimento da organização popular; c) (re)conhecimento de si como classe trabalhadora; d) fortalecimento das condições objetivas comunitárias e; e) perspectiva da conscientização e da libertação dos povos também como fundamentação epistemológica no campo da Psicologia.

Evidentemente, parte-se aqui da prerrogativa analítica de que a própria Psicologia como ciência está constituída dialeticamente, (re)pensando e avançando nas suas discussões e práticas de saber, sobretudo por meio da inserção nas lutas e promulgação dos direitos humanos. Outrossim, as potencialidades aqui delineadas não têm o intuito de esgotar a questão – e nem poderiam fazê-lo – mas sim contribuir para o resgate de pontos que consideramos centrais no que tange à (re)construção da identidade da Psicologia para além de suas diferenças epistemológicas e de áreas de atuação. Trata-se, isto sim, de um ethos político-filosófico que, de forma basilar, possibilite às (aos) profissionais um norte ético no sentido do potencial transformador do seu saber frente à complexidade das demandas que se apresentam, especialmente em um cenário de agravamento do sofrimento mental como no caso da pandemia COVID-19.

A recuperação do papel primordial da historicidade dos fenômenos que constituem a vida tanto individual quanto social não implica em desconsiderar a riqueza da singularidade humana, conforme Oliveira (2005) já evidencia, mas atua no sentido da crítica e do combate às explicações restritamente “psicologizantes” que ao retirarem a esfera histórico-social de problemas manifestados pelo sujeito, tendem a reiterar – ainda que muitas vezes acidentalmente – a culpabilização individual, reforçando, por conseguinte, uma das premissas ideológicas de funcionamento neoliberal. No caso da pandemia, é verdade que os indivíduos sentem e lidam de maneira distintas com um fenômeno que é, simultaneamente, um acontecimento universal, mas que se expressa de formas próprias no tecido social.

O desafio consiste justamente em olharmos para as demandas de um sujeito, compreendendo sua constituição singular, mas reconhecendo as limitações dessa análise se não nos depararmos com o enfrentamento às manifestações que também promovem sofrimento, miséria, alienação e empobrecimento psíquico e que estão para além do âmbito individual. Consequentemente, o resgate da memória histórica como aparato analítico se mostra crucial, sobretudo frente às tentativas de apagamento da memória coletiva via negação do passado, da ciência e da criminalização dos movimentos sociais que visam combater injustiças seculares.

Partindo do ponto supramencionado, a retomada do processo histórico e a crítica à noção neoliberal de “neutralidade” reverbera em dois posicionamentos diretamente interligados: o reconhecimento de si como pertencente à classe-que-vive-do-trabalho[1] e a ação de fortalecimento das organizações populares. Igualmente, se o ser humano é o ser social, cuja sociabilidade está pautada na relação com outrem, o fortalecimento do coletivo é também o fortalecimento de si. Dado que a fragilidade dos laços sociais sob a égide do capitalismo neoliberal também contribui para o esvaziamento do senso de coletividade, seu processo inverso, isto é, a recuperação do espaço político como espaço de ruptura com o status quo via fortalecimento das organizações coletivas e populares, tem-se a chance de (re)configurar dialeticamente, por excelência, o próprio desenvolvimento psíquico dos sujeitos. No caso da pandemia, por exemplo, o processo de intensificação do sofrimento mental frente à recomendação e o cumprimento do isolamento social (para os que assim podem optar) traz à tona de maneira agravada a gênese social do ser humano, ao mesmo tempo em que a deterioração dos direitos trabalhistas é sentida de forma exacerbada, especialmente em grupos sociais específicos. Contudo, é justamente neste cenário que formas de organização e luta coletiva passam a (in)surgir contra o retrocesso trabalhista e levantes, tais como as greves e nas (re)organizações das (dos) entregadoras (es) de aplicativos, podem trazer elementos que recuperem a necessidade iminente da organização coletiva. 

Chegamos ao ponto de que a ideia falaciosa neoliberal de um deus ex machina[2] que irá salvar a humanidade (e o planeta) de um colapso ambiental e social deve ser erradicada. Para tanto, a Psicologia pode (e quiçá deve) recuperar para si sua fundamentação constitutiva mais profunda: a libertação humana. Libertação esta pautada no sentido do desenvolvimento pleno das capacidades criativo-afetivas do ser social, que se apropria de sua universalidade histórica e que, ao se (re)conhecer preso às amarras de um sistema brutal, traz em si as sementes do desejo e das paixões da transformação coletiva. Todavia, o (auto) reconhecimento não é suficiente em si. Deve haver a mobilização, o fomento e a continuidade à promulgação do fortalecimento dos espaços coletivos, sem desconsiderar, para tanto, a riqueza inerente à singularidade de cada indivíduo.

À guisa de encerramento

Por meio da fundamentação epistemológica ancorada nas prerrogativas da Psicologia Histórico-Cultural, este artigo buscou recapitular de forma breve e sintética a relação dialética singular-particular-universal conforme trazido em Oliveira (2005), bem como propor uma articulação desta relação com o resgate crítico da noção de fatalismo elaborado em Costa e Mendes (2020). Tomamos como horizonte o momento histórico-social atual, isto é, o segundo decênio do século XXI na realidade brasileira, em sua fase agudamente neoliberal, na qual os conflitos e as contradições sociais se tornam mais marcantes e escancaradas com a chegada da pandemia SARS-CoV-2 no país. Neste cenário, advogamos que a Psicologia brasileira, em sua vasta multiplicidade constitutiva, ao reconhecer as contradições dialéticas que atuam nos fenômenos sociais e portanto inexoravelmente atrelados às experiências individuais, pode desenvolver sua práxis em prol da transformação social. Para tanto, recapitulamos cinco possibilidades para o campo “Psi” (Costa & Mendes, 2020), entendendo que tais contribuições já se faziam necessárias em um contexto pré-pandêmico, mas que, frente às vicissitudes e a gravidade inerentes ao momento histórico em tela, grifamos a necessidade do resgate dos processos de conscientização ético-críticas no que tange ao ethos político-filosófico da Psicologia no Brasil. São essas contribuições: a) recuperação da memória histórica; b) fortalecimento da organização popular; c) (re)conhecimento de si como classe trabalhadora; d) fortalecimento das condições objetivas comunitárias e e) perspectiva da conscientização e da libertação dos povos também como fundamentação epistemológica no campo Psi.

Finalmente, reiteramos que a discussão proposta neste artigo não visa dar respostas estanques e reducionistas a processos complexos, dinâmicos e contraditórios. Ao contrário, por meio da relação singular-particular-universal, objetivou-se sublinhar o reconhecimento da singularidade psíquica de cada indivíduo sem, todavia, debruçarmo-nos sob perspectivas hipostasiantes, não raramente permeadas pelo funcionamento fatalista da lógica neoliberal. Ademais, ao refutarmos veementemente quaisquer perspectivas que corroborem a noção ideológica do capital como um deus ex machina que proporcionará a “salvação” das mazelas socioambientais, retomamos o (re)conhecimento e a consciência de que as possibilidades de atuação em prol da transformação paradigmática do modo de produção e existência da vida humana (mas não apenas dela) devem se dar, dentre outras formas, pela tomada de consciência individual-coletiva, tendo no horizonte da Psicologia seu compromisso ético com a superação das condições objetivas e subjetivas que aprofundam a miséria e a alienação dos povos.

Notas

[1] Expressão usada por Antunes (2018) e que se refere à totalidade de homens e mulheres, produtivos e improdutivos, desprovidos de meios de produção e que são constrangidos a vender sua força de trabalho no campo e na cidade em troca de salário; ou seja: o proletariado industrial e rural, os trabalhadores os trabalhadores terceirizados, subcontratados, temporários, os assalariados do setor de serviços, os trabalhadores de telemarketing e call centers, além dos desempregados.

[2] Expressão derivada do teatro grego (e romano), como alternativa súbita e repentina para solucionar casos e situações complexas. Comumente utilizada para colocar um fim mágico e pouco realista, especialmente quando não se sabe como proceder.

Referências

Antunes, R. (2018). O privilégio da servidão: o novo proletariado de serviços na era digital. São Paulo, SP: Boitempo.

Antunes, R. (2020). Coronavírus: O trabalho sob fogo cruzado. São Paulo, SP: Boitempo.

Costa, P. H. A. & Mendes, K. T. (2020). Dialética do fatalismo: do fatalismo dos indivíduos para o da ordem. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 20(2), 682-702. doi: https://doi.org/10.12957/epp.2020.52593

Martin-Baró, I. (2017). Crítica e libertação na psicologia: Estudos psicossociais. Petrópolis, RJ: Vozes.

Oliveira, B. (2005). A dialética do singular-particular-universal. In A. A. Abrantes; N. R. Silva & S. T. F. Martins (Orgs.), Método Histórico-Social na Psicologia Social (pp. 25-51). Petrópolis, RJ: Vozes.

Marx, K. & Engels, F. (1998). A ideologia alemã. São Paulo, SP: Martins Fontes.

Netto, J. P. (2011). Introdução ao método de Marx. São Paulo, SP: Expressão Popular.

Como citar esse texto

APA – Pamplona, F. C. (2020). A banalidade do caos: potencialidades ético-políticas da Psicologia no capitalismo pandêmico. CadernoS de PsicologiaS, 1. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-banalidade-do-caos-potencialidades-etico-politicas-da-psicologia-no-capitalismo-pandemico.

ABNT – PAMPLONA, F. C. A banalidade do caos: potencialidades ético-políticas da psicologia no capitalismo pandêmico. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-banalidade-do-caos-potencialidades-etico-politicas-da-psicologia-no-capitalismo-pandemico>. Acesso em: __/__/____.