#Resenha
A biblioteca da meia-noite é um romance de autoria do escritor inglês Matt Haig publicado em 2020, traduzido e lançado no Brasil em 2021 e indicado como best-seller (sucesso em vendas) pelos maiores jornais americanos como o The New York Times, The Boston Globe e The Washington Post. A história, que conta com elementos extraordinários e sobrenaturais, e por isso classificada como pertencente ao gênero de literatura fantástica, acompanha os acontecimentos da personagem principal, Nora Seed, depois que ela decide morrer, conforme palavras do próprio autor, e é magicamente transportada para uma biblioteca, que dá nome à obra. Nesse universo mágico, Nora tem acesso a infinitos livros que a apresentam para outras vidas, vidas que a personagem poderia ter vivido caso tivesse tomado diferentes decisões. Ao longo da trama o leitor pode acompanhar Nora lendo e experimentando magicamente vidas alternativas dela mesma, podendo avaliar e escolher diferentes empregos, hobbies, amigos, diferentes formas de se relacionar com sua própria família mas, assumindo também responsabilidades e consequências.
Logo no início da obra o leitor é apresentado diretamente ao fato; Nora Seed havia decidido morrer. Mas antes da cena entre a vida e a morte, na qual ela conhece a Biblioteca da Meia Noite, o autor introduz o passado de Nora e outra personagem importante, a bibliotecária da escola onde Nora estudou, a Sra. Elm. Nos capítulos seguintes, o leitor conhece a vida de Nora Seed como ela é: a perda do seu animal de estimação, seu trabalho, sua demissão, fragmentos do seu relacionamento anterior, seu relacionamento com o pai e seus interesses pessoais, como por exemplo, por filosofia.
Nessa breve introdução sobre o estado atual da vida de Nora, o autor foi capaz de apresentar os motivos pelos quais Nora se encontrava questionando o sentido de sua própria existência. A personagem, reflete aspectos da vida humana no geral, trabalho, estudos, perspectivas de futuro, relacionamentos, etc. E talvez esse seja o motivo pelo qual o livro se tornou um sucesso de vendas: um romance de literatura fantástica que trata de temas reais da rotina dos adultos.
Além disso, de forma bastante sensível, a obra aborda a saúde mental, retratando não apenas o suicídio e a depressão, mas também a ansiedade, o alcoolismo, a medicamentalização. Sutilmente o autor transporta esses temas para todas as outras vidas de Nora, bem como para outros personagens, principalmente da sua própria família. Para os leitores mais atentos é possível entender a mensagem; novas vidas não estão livres das questões da vida original, diferentes escolhas podem não ‘curar’ o vazio existencial vivido por Nora, diferentes estilos de vida por si só não são capazes de garantir uma vida sem a depressão, a ansiedade ou a busca por bem-estar e saúde mental. É nesse sentido que podemos contemplar a Psicologia adentrando os mais diversos espaços das nossas vidas, sendo vista para além de uma ciência acerca do comportamento humano, seus processos mentais e interações com o ambiente, saindo dos meios acadêmicos, clínicas e outras área nas quais já está estabelecida e entrando nas nossas casas, através de obras cinematográficas, artísticas ou, como nesse caso, literárias.
Não cabe aqui um aprofundamento capítulo a capítulo desta obra, pois justamente a forma como o autor transita entre oportunidades de futuro apresentadas em cada um dos livros lidos na Biblioteca da Meia Noite e o passado de Nora é o que torna o texto tão reflexivo. É trabalho de cada leitor mergulhar na subjetividade da personagem para que seja possível entender minimamente suas escolhas na biblioteca. Acredito então, que seja justamente esse o motivo pelo qual percebo a possibilidade de entrelaçar um olhar da psicologia clínica com a obra. Afinal, um psicólogo mergulha na vida de cada paciente como se fosse único, ouvindo deles seus sintomas, vida atual e também história de vida, mas sendo capaz de retirar dessa singularidade que ali se apresenta, características partilhadas por quem adoece, como os sinais e sintomas da depressão ou ansiedade, por exemplo.
Não é objetivo da obra falar especificamente sobre a depressão, mas aponta que se trata de uma questão relevante não só pela questão do suicídio. Quando esta temática, atual e crescente em saúde mental, é abordada em uma obra tão popular, podemos imaginar um futuro onde a literatura caminhe de mãos dadas com a Psicologia, nos ajudando a desmistificar estereótipos que se ergueram sobre transtornos mentais, colaborando com a ampliação de espaços para falarmos sobre isso usando personagens como exemplos, estimulando reflexões para além dos trabalhos terapêuticos individuais e promovendo o acesso a informação, demandas emergentes da nossa profissão.
A temática da saúde mental na obra é enfatizada, por exemplo, na fala do gerente da loja em que Nora trabalhava, nos capítulos iniciais, quando ele afirma ‘Eu sei que você tem uns lances de saúde mental’. Longe de realizar um diagnóstico de Nora Seed, apesar do autor revelar o transtorno denominado na obra, pela própria personagem, apenas como depressão e, em ‘outras vidas’, a ansiedade, vale destacar características e comportamentos relatados ao longo do texto, que podem aproximar o leitor das vivências da personagem. Nora andava pelas ruas à procura de um motivo para continuar existindo, expressava em muitos de seus pensamentos a sensação de vazio e falta de esperança de um humor deprimido. A vida de Nora era bastante solitária, sem rede de apoio, passava muito tempo nas redes sociais, se comparando, o que gerava sentimentos de culpa e inutilidade. Relatava a sensação de estar em queda livre, ou um sentimento de incompletude, revelando com mais profundidade faces do transtorno mental.
No primeiro contato com a Biblioteca da Meia Noite, Nora se vê diante do livro dos arrependimentos da sua vida, e revela uma inflexibilidade cognitiva ao reavaliar o conteúdo do livro, como por exemplo ao ser questionada sobre o que faria diferente, o que gostaria de mudar ou o que fez de errado e a resposta é; ‘tudo’.
É neste momento que o autor convida os leitores a olhar com outros olhos suas próprias histórias de vida, sem classificar seu passado como totalmente errado e mostra o poder das escolhas, não só em um lugar mágico como a biblioteca, mas na rotina das pessoas banais. A personagem experimenta vidas onde pode se perceber como uma pessoa mais feliz e menos estressada, vidas nas quais se sentia melhor e mais realizada, mas ainda acompanhada de remédios que encontrava entre suas coisas ‘daquela vida’, vidas onde tinha boa saúde mental mas via outras pessoas sofrendo com depressão, ansiedade e até mesmo alcoolismo, além de vidas nas quais não ‘aprovava’ a pessoa que se tornou. Até dar-se conta de que existe uma única vida, não a do passado, nem a do futuro, mas a vida de agora.
A diversas possibilidades de histórias da Biblioteca da Meia Noite permitem que mais leitores se identifiquem com partes das histórias. Não estamos falando de apenas uma personagem principal, mas de diversas ‘Noras’ e, assim como Nora, o leitor é convidado a questionar suas próprias escolhas e se depara com temas comuns na vida de quase todos os seres humanos, além de possibilidades de escolhas e arrependimentos reais. Uma das muitas histórias de vida de Nora, disponíveis na Biblioteca da Meia-Noite, pode refletir parte ou aspectos da história de vida de um leitor, além de mostrar que existem vidas possíveis de serem bem vividas mesmo lidando com transtornos mentais. O uso de metáforas e tiradas filosóficas, promove um espaço de reflexão muito pessoal para cada leitor.
A Biblioteca da Meia Noite é um livro que mistura fantasia e magia para trabalhar temas profundos da existência do ser humano, permitindo ao leitor ampliar seu olhar para a própria vida através das inúmeras vidas experimentadas por Nora Seed. As questões de saúde mental abordadas nos levam a refletir se a arte imita a vida e nos deixa a seguinte questão; no futuro, quanto mais demandas emergirem na área da saúde mental na sociedade, mais estes temas terão espaços nas obras literárias consideradas best-sellers?
ABNT — GODK, M. A biblioteca da meia noite. CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-biblioteca-da-meia-noite/. Acesso em: __/__/___.
APA — Godk, M. (2024). A biblioteca da meia noite. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-biblioteca-da-meia-noite/