Revista CadernoS de PsicologiaS

A constituição da subjetividade feminina numa perspectiva psicanalítica reflexões sobre a personagem Mulan

Ana Carolina Oliveira Bogo
Graduanda de Psicologia Faculdade Adventista do Paraná/ Instituto Adventista Paranaense

E-mail: carolbogo2001@gmail.com
Kelly Cristina Pereira Puertas
Docente Faculdade Adventista do Paraná/ Instituto Adventista Paranaense

Psicóloga (CRP – 08/06255). E-mail: kelly.puertas@educadventista.org.br

#Inquietações_teóricas

Resumo: Este trabalho tem como propósito fomentar perspectivas sobre as performances da feminilidade através de uma análise de embasamento psicanalítico da personagem “Mulan”. A metodologia de pesquisa teórico-conceitual foi utilizada como meio para o fornecimento de informações. O levantamento de materiais sobre a temática foi realizado em textos de Freud sobre a constituição subjetiva feminina, na obra “O que Freud dizia sobre as mulheres?” de José Arthur Molina, bem como o uso da animação de 1998 e do live action, lançado em 2020, ambos pela Disney, como base para compreensão da história de Mulan.  Discutimos que as atitudes “rebeldes” da personagem estavam ligadas a construção de sua sexualidade, segundo Freud necessárias para o desenvolvimento psíquico feminino. Toda a trama se resume em um desejo, o de honrar a família, levando Mulan a tomar o lugar do pai e a quebrar paradigmas impostos à figura feminina da época.

Palavras-chave: subjetividade feminina; feminilidade; Mulan.

THE CONSTITUTION OF THE FEMALE SUBJECTIVITY IN A PSYCHOANALYTICAL PERSPECTIVE: REFLECTION ON THE CHARACTER OF MULAN

Abstract: This work has the purpose to form perspectives on the performance of femininity through an analysis of the psychoanalytical foundation of the character of “Mulan”. The theoretical-conceptual research methodology was used as a means of providing information. The material survey about the thematic was performed in Freud’s texts about the feminine subjectivity, on the work “O que Freud dizia sobre as mulheres” by José Arthur Molina, as well as the use of the 1998 animation and live action movie, released in 2020, both by Disney, as basis for the comprehension of Mulan’s story. We will discuss that the “rebellious” attitudes of the character were linked to the construction of her sexuality, necessary for the construction of the female psychic according to Freud. The plot sums up in a desire, of honoring the family, driving Mulan to take her father’s place and to break paradigms imposed on the female figure at that time.

Keywords: female subjectivity; femininity; Mulan.

LA CONSTITUCIÓN DE LA SUBJETIVIDAD FEMENINA EN UNA PERSPECTIVA PSICOANALÍTICA: REFLEXIONES SOBRE EL PERSONAJE DE MULAN

Resumen: Este trabajo tiene como objetivo fomentar nuevas perspectivas sobre las representaciones de la feminidad a través de un análisis de la base psicoanalítica del personaje “Mulan”. Se utilizó el uso de la metodología de investigación teórico-conceptual como medio para brindar información. El relevamiento de materiales sobre el tema se realizó en textos de Freud sobre la constitución subjetiva femenina, en la obra “¿Qué dijo Freud sobre las mujeres?” de José Arthur Molina, así como el uso de la animación de 1998 y live action, estrenadas en 2020, ambas por Disney, como base para entender la historia de Mulan. Argumentamos que las actitudes “rebeldes” del personaje estaban ligadas a la construcción de su sexualidad, que, según Freud, era necesaria para el desarrollo psíquico femenino. Toda la trama se resume en un deseo, el de honrar a la familia, que lleva a Mulan a ocupar el lugar de su padre y romper paradigmas impuestos a la figura femenina de la época.

Palabras clave: subjetividad femenina; feminidad; Mulan.

Introdução

O presente trabalho apresenta uma discussão sobre a feminilidade utilizando-se da personagem Mulan como eixo da discussão. As diversas versões sobre a história de Hua Mulan, guerreira aclamada nos séculos IV d.C. e V d.C., por toda a China, induz o leitor/telespectador a ter um olhar diferente sobre a figura feminina, isso porque a guerreira quebrou paradigmas impostos pela sociedade da época. Na cultura chinesa, quando as moças atingiam a maturidade, era necessário que se apresentassem para as casamenteiras, mostrando seus dotes de futura esposa, representados no singelo gesto de servir chá. A delicadeza e a precisão eram fundamentais para uma boa esposa, mas Mulan não se encaixava nessas características.

Mesmo não existindo provas concretas de que a história de Mulan realmente ocorreu, ela ainda inspira a juventude atual. A animação, lançada em 1998 pela Disney revela uma versão da história mais romantizada, em forma de musical, onde a honra familiar é abordada como o ideal mais importante na cultura chinesa; e quando a questão se volta às moças, a única forma de consagração a própria família seria por meio do casamento. Um detalhe valioso, e o que se concentra em uma das problemáticas que serão abordadas neste trabalho, é a constituição subjetiva que perpassa pela sexualidade de Mulan, uma vez que ela não se encaixava nos padrões femininos da época, levando-a a um conflito interno rendendo estudos e interpretações. Uma delas se encontra na cena em que ela substitui o próprio pai na guerra. Essas e outras questões serão analisadas com base na teoria psicanalítica.

Portanto, o propósito deste trabalho é fomentar perspectivas sobre as performances da feminilidade através de uma análise de embasamento psicanalítico da personagem “Mulan”, e para que esse objetivo seja atingido se fez necessário realizar um levantamento das diferentes versões disponíveis da história de Hua Mulan, e também delimitar quais obras serão trabalhadas dentro das versões disponíveis, sendo elas: a animação musical/infantil lançada em 1998 pela Disney e o filme live action lançado em 2020 pela mesma produtora. Tal escolha em trabalhar as versões em animação e filme se deu em razão de entender que o alcance destas junto ao público infantil, adolescente e adulto seja muito mais amplo que outras descrições sobre a personagem. As determinações de papéis culturais impostas à figura feminina presentes nas obras também fizeram parte das pesquisas, destacando como a personagem principal e os demais envolvidos na história se colocam diante dos papéis impostos a ela como mulher.

Assim, a metodologia de pesquisa teórico-conceitual foi utilizada como meio para o fornecimento de informações. O levantamento de materiais sobre a temática foi realizado em textos de Freud sobre a constituição subjetiva feminina, bem como na obra “O que Freud dizia sobre as mulheres?” de José Arthur Molina. O uso da animação como base para compreensão da história de Mulan, assim como o live action, lançado em 2020 pela Disney, contemplando uma visão mais empoderada da figura feminina, foram necessárias para a fundamentação da análise, uma vez que ambos trazem discussões diversificadas, mas muito ricas em relação às representações femininas.

A mulher na cultura chinesa e a figura de Hua Mulan

Hua Mulan, guerreira, corajosa, aventureira e mulher. Não se sabe ao certo sua origem, muito menos se a guerreira realmente viveu, mas é certo afirmar que sua história foi um tanto lendária, pois quebrou paradigmas impostos à figura de mulher (feminina) da cultura de sua época. De acordo com Tapioca Neto (2016), foi possível constatar que os filmes e animações disponíveis hoje são inspirados em um único conto, ou melhor, “A Balada de Hua Mulan”, uma canção bastante conhecida pelos estudantes chineses no século VI. Como não existe uma comprovação arqueológica de sua existência e suas raízes parentais também são incertas, isso acaba por dificultar uma revisão aprofundada de sua ascendência.  Mesmo assim, não seria um empecilho quando se refere a temática principal, uma vez que as versões disponíveis (animação e live action) trazem discussões indubitavelmente ricas e favoráveis para as análises propostas anteriormente.

Jéssica Sayuri Mori Kanno, graduada em história pela UNESP-Assis (2010), se propõe a estudar a mulher chinesa e como era historiograficamente representada nas antigas civilizações da China. Uma das bases de seu estudo foi o livro “As boas mulheres da China” (1980), onde é relatado que as meninas chinesas eram comprometidas desde cedo ao casamento pelos familiares, por isso na infância eram ensinadas a cuidar da casa, da aparência, a tecer e a bordar como se o único valor atribuído a essas mulheres fosse o de satisfazer as necessidades do marido e dos filhos. Assim se tornavam a esposa ideal, ou seja, cumprindo o modelo de mulher esperado. Quando comparados as histórias sobre a vida de Mulan, não é diferente, uma vez que a guerreira desde cedo era incentivada a exercer esses ideais femininos.

Na primeira parte do filme [animação de 1998], Mulan se mostra completamente desconfortável em ter que seguir padrões comportamentais em que não se enquadra, chegando a se sentir insuficiente e até a se perder em sua própria identidade. A transformação de Mulan representa o alívio, a ruptura com os seus deveres de mulher perfeita, o que explica a rápida adaptação às atividades de aventura e desafios, que se harmonizavam melhor com a essência da personagem. (Alves, 2018, p.16).

A autora aponta para as transformações de Mulan para haver-se com sua identidade. A personagem necessitou visitar papeis considerados masculinos em sua cultura e época para sentir-se aliviada.

Nossa busca, agora, será por compreendermos as transformações de Mulan pelos papéis atribuídos às mulheres e aos homens. Para darmos assentamento teórico para a discussão que pretendemos aqui, nos deteremos a apresentar a teoria psicanalítica sobre a constituição subjetiva feminina: a conflitiva edipiana.

A constituição da subjetividade feminina a partir do complexo de Édipo

Para Freud (1905/2016) compreender a feminilidade sempre foi uma tarefa complexa. Ele mesmo a chama de “continente obscuro”, e isso se deve à dificuldade de elaborar o processo envolvido no complexo de Édipo da figura feminina. Para entender com clareza o caminho percorrido, contudo, é preciso analisar o conceito do complexo de Édipo e quais as considerações do pai da psicanálise sobre o assunto.

Laplanche e Pontalis (2001, p. 99) descreveram o complexo de Édipo como “um conjunto organizado de desejos amorosos e hostis que a criança sente em relação aos pais…”, e seu nome faz referência ao mito de Édipo, rei que fora destinado a matar o próprio pai e casar-se com sua mãe. O ápice do complexo de Édipo se dá entre os três e os cinco anos, durante a fase fálica.  Esse período vivenciado pelo ser humano cumpre um papel importante na estruturação da personalidade e na orientação do desejo humano.

De acordo com Freud (1925/1996), monismo sexual é a hipótese de um mesmo aparelho genital para ambos os sexos, ou seja, um único órgão genital é reconhecido pela criança, o pênis no garoto e, na garota, o seu correspondente como sendo o clitóris (fase fálica). Segundo Silva e Folberg (2008), para Freud não há distinção clara entre os sexos até a vinda da puberdade; a menina, para desenvolver sua feminilidade, deve passar sua atenção do clitóris para a vagina; neste momento a masculinidade é relacionada a atividade e a feminilidade é ligada à passividade.

Freud (1924/1996), em seu texto “A Dissolução do Complexo de Édipo”, analisa e expõe os diferentes cursos que seguem os complexos masculino e feminino e explana com mais intensidade o complexo de castração. O menino, ao ter seu olhar voltado para seu próprio órgão genital, se orgulha dele e tem a mãe como seu objeto de desejo. Ao olhar para a região genital do sexo oposto, passa a perceber a falta do pênis, temendo que o seu seja retirado e desenvolvendo um medo inconsciente de ser castrado. Já a menina olha para a região genital masculina e percebe que falta algo em seu corpo, passando assim a sentir inveja do menino, tendo um sentimento de inferioridade.

A inveja do pênis seria, portanto, o fator determinante da virada da menina para o objeto pai. Ela descobre que a mãe também é castrada e, consequentemente, ambiciona estar com o pai para que, quem sabe, este lhe auxilie a obter um. Essa realidade levará a menina para três possíveis orientações: (1) inibição sexual ou a neurose; (2) a um complexo de masculinidade; e, enfim (3) a sexualidade normal feminina (Molina, 2011, p.61).

Ainda sobre o complexo de castração, Freud (1924/1996) destaca que a menina não aceita com facilidade o fato de não ter um pênis, e para mostrar que possui o falo ela passa a agir como um homem. Freud chamou essa fase de “complexo de masculinidade na mulher”, e afirmou que ele pode durar por um período consideravelmente longo e trará grandes dificuldades para o desenrolar da feminilidade. Com o tempo ela passa a aceitar, mas ainda possui inveja do menino; esse sentimento traz algumas consequências, como um afastamento na relação com a figura materna, pois entende a mãe como responsável pela insuficiência genital imposta a ela, passando sua atenção para a figura paterna.

Outra observação feita por Freud (1931/2010) sobre a construção do ser feminino é que a percepção da inferioridade do clitóris em relação ao pênis faz com que a menina abandone a masturbação clitoriana. Em geral, as mulheres são menos adeptas a masturbação, isso se dá porque a masturbação do clitóris é vista como uma atividade essencialmente masculina. Para passar para um desenvolvimento pleno da sexualidade feminina é necessário que deixe esta prática de lado, ou seja, a repressão do ato masturbatório na menina vai além da imposição de quem a cria, mas possui relação com um ato inconsciente de abandonar sua masculinidade e passar a dar atenção ao seu desenvolvimento do ser feminino, o ser mulher.

 Freud (1925/1996) reflete que a diferença anatômica entre o menino e a menina é um fator determinante para a construção do complexo de Édipo, pois ela, de certa maneira, determina a entrada no Édipo nas meninas e a saída do mesmo nos meninos; a castração limita a masculinidade e favorece a feminilidade. No menino o Complexo de Édipo não é reprimido, ele é destruído pela ameaça da castração, porém no caso da menina não se sabe ao certo como ele é superado; pode ser lentamente abandonado ou liquidado diante da repressão que sofre, mas se não for deixado de lado pode prosseguir ao longo da vida psíquica da mulher. 

Um olhar para a personagem Mulan a partir da conflitiva edipiana feminina

Mulan é uma personagem que, como apontamos anteriormente, quebra paradigmas da sociedade chinesa de sua época ao não se apresentar como uma mulher, o que destoa do papel a ela destinado: de boa filha e esposa. Uma das cenas da animação (Disney, 1998) que representa um rompimento com o padrão de identidade feminina imposta pode ser vislumbrada em uma das músicas cantadas por Mulan:

Olhe bem; a perfeita esposa; jamais vou ser; ou perfeita filha. Eu talvez; tenha que me transformar; vejo que; sendo só eu mesma não vou poder; ver a paz reinar; no meu lar. Quem é que está aqui; junto a mim; em meu ser; é a minha imagem; eu não sei dizer. Como vou desvendar; quem sou eu; vou tentar. Quando a imagem de quem sou; vai se revelar (Disney, 1998).

Mulan estava confusa dentro de sua identidade, e por ela se comportar de uma maneira diferente, se desviando de um padrão feminino na época, se viu à beira de uma ruptura identitária, necessária na fase do desenvolvimento de sua sexualidade. Suas atitudes “rebeldes” e “masculinizadas” chamam a atenção principalmente de sua mãe, que não concordava nem um pouco com suas atitudes. O live action, lançado em 2020 pela Disney, retrata uma cena um tanto intrigante. A mãe de Mulan, muito incomodada com o comportamento da filha, lembra ao seu marido (pai de Mulan) que ela não é um menino, já que foi um grande desejo do pai que ela, de fato, fosse um menino.

“O feminino rebelde, que não se conforma com sua castração, continua com a sua atividade ativa (clitóris) e permanece masculino, homossexual ou ocupando posições masculinas” (Molina, 2011, p.63). Conforme destaca Molina (2011) é possível verificar processos psíquicos que sustentam a viabilidade de mulheres ocuparem papéis articulados à masculinidade, que no caso é identificada à atividade. Nesse sentido, Mulan realiza o desejo do pai, mantendo um papel masculino e não se conformando ao papel designado pela cultura a ela. A live action, de 2020, é mais enfática ao mostrar Mulan já crescendo executando papeis esperados para os meninos/homens na aprendizagem de técnicas de luta, diferente da animação de 1998, na qual Mulan tem que aprender o papel masculino de guerreiro.

Soma-se ao papel destoante de não aceder ao papel feminino na cerimônia do chá promovido pelas casamenteiras, um evento que irá conduzir o enredo da história. Mulan se vê diante de uma situação complicada, uma vez que seu pai (figura parental com quem possui mais afinidade) recebe uma carta para fazer parte da guerra. A situação do pai, doente e sem possuir ao menos um filho homem para substituí-lo na guerra, deixa a menina inquieta. Essa inquietação a leva a tomar a decisão de substituir o pai na batalha, e então, determinada a tomar o lugar do pai, veste suas armaduras.

Neste quesito é interessante apontar diferenças entre a animação de 1998 e a live action de 2020. Na animação, para assumir a identidade de filho e ocupar o lugar do pai, Mulan precisa aprender a tornar-se guerreira. Já no live action, Mulan foi preparada desde criança pelo pai para a luta.

Parece-nos que a noção de “Complexo de masculinidade na mulher” apresentado por Freud (1924/1996) é a tônica do funcionamento de Mulan. Ao assumir papéis destinados a homens, e distanciar-se ainda mais dos papéis femininos dela esperados, vê-se um enlace de Mulan com o pai, tomado como objeto de amor, mas também de identificação. Verifica-se ainda um afastamento da figura materna, mantendo-lhe a hostilidade característica do complexo de Édipo feminino simples; entretanto a identificação da menina com esta figura não ocorre com Mulan.

Cabe destacar que um dos métodos de análise utilizados pela psicanálise está ligado aos símbolos, e estes podem ser identificados em sonhos e falas.

Antes de mais nada, na medida em que os símbolos constituem traduções fixas, eles realizam em certa medida o ideal tanto da interpretação dos sonhos dos antigos como da interpretação popular, do qual nos afastamos bastante com o emprego de nossa técnica. Em determinadas circunstâncias, eles nos permitem interpretar um sonho sem inquirir o sonhador, o qual, de todo modo, nada teria a dizer sobre o símbolo. Conhecendo-se os símbolos oníricos usuais e, além disso, a pessoa do sonhador, as condições em que ele vive e as impressões anteriores ao sonho, pode-se muitas vezes interpretar um sonho sem maiores dificuldades, traduzi-lo diretamente, por assim dizer (Freud, 1900/1999, p.165)

Uma cena um tanto simbólica pode ser identificada na animação quando Mulan, ao tomar para si a espada do pai (objeto que pode ser representado como fálico), deixa um pente no lugar, que pode ser representado como um símbolo de sua feminilidade. Freud então diz que:

Para o órgão genital masculino, portanto, o sonho possui uma série de representações a que podemos chamar simbólicas e nas quais o denominador comum da comparação é, em geral, bastante óbvio. Sua componente mais notória e de interesse para ambos os sexos, o membro masculino, encontra substitutos simbólicos antes de mais nada naquelas coisas que lhe são semelhantes na forma, ou seja, compridas e verticalmente salientes, como bengalas, guarda-chuvas, estacas, árvores e coisas assim; além disso, em objetos que compartilham com o designado a propriedade de penetrar no corpo e ferir, ou seja, armas pontiagudas de toda sorte, facas, punhais, lanças, sabres, assim como armas de fogo — fuzis, pistolas e revólveres, estes, em virtude de sua forma, símbolos bastante apropriados (Freud, 1916-1917/2014, p. 169).

Essa troca de objetos é muito simbólica, pois demonstra uma quebra de paradigma, colocando Mulan não em estado de passividade, mas de atividade, portanto, masculina. Além de apropriar-se de um objeto do pai, nitidamente um símbolo fálico, este ainda estava culturalmente identificado ao masculino, ao guerreiro.

Vale ressaltar que em nenhum momento Mulan deixa de apresentar-se/manter-se uma figura com características femininas e de identificar-se como mulher, mesmo quando ela se traveste com trajes masculinos para assumir o lugar do pai. Ela encontra-se numa posição ambivalente e num processo de busca de sua identidade. O que ocorre é que, ao se vestir de homem e assumir uma posição tipicamente masculina, ela pode enxergar-se enquanto mulher. Ali a distinção entre o masculino e o feminino ficam marcados para Mulan, algo que vai além de seus trajes e de sua performance na arte da guerra/luta. O feminino se destaca pelo contraste entre o que ela sente, seus processos subjetivos, e o que ela exterioriza para ocupar o papel masculino destinado ao pai ou seu descendente homem.

Não obstante, a personagem também passa pelas fases do desenvolvimento, mais específico o complexo de Édipo em questão. É possível observar a rivalidade que Mulan tem com a mãe, e por haver um relacionamento conflituoso entre elas os sentimentos da garota pela mãe podem, de certa forma, serem classificados como ambivalentes; já o relacionamento com o pai é mais harmonioso e afetuoso. Por um lado, Mulan se identifica tanto com ele a ponto de substituí-lo, tomar seu lugar na guerra e abdicar do seu lugar de filha; por outro, é o amor de Mulan pelo pai que a leva a assumir seu lugar. É possível notar como essa relação se dá em uma das cenas encontradas no live action, onde é narrado uma conversa entre Mulan e seu pai:

Seu chi é forte Mulan, mas é só para guerreiros, não filhas. Logo será uma jovem mulher, então preciso que esconda o seu dom, que silencie a voz dele, eu só quero protegê-la, é o que cabe a mim, já o seu trabalho é cobrir com honra a nossa família, você acha que consegue? (Disney, 2020)

De acordo com Gabani (2014), “o chi é, para os chineses, a unidade central de uma força cósmica que envolve todo o cosmos, é o princípio da mutação, é o próprio movimento que permite a circulação e o dinamismo do sistema”. Assim é entendido que o chi de Mulan é muito forte, ou seja, a força que movimenta e a caracteriza como essência de vida deve ser silenciada, pois, a impossibilitaria de honrar sua família. Ela promete ao pai que o honraria, apesar de não atingir as expectativas da mãe de ser uma boa moça para o casamento.

É possível notar um contraste muito grande entre a animação e o live action, pois na animação Mulan vai para a guerra, mas não sabe absolutamente nada de artes marciais, muito menos portar uma espada; já a Mulan no live action, ao entrar no campo de batalha, se destaca por sua força, proatividade, coragem e habilidades nas artes marciais, inclusive derrotando o inimigo da China sozinha, se sobressaindo assim a todos os homens do exército chinês. Outro contraste encontrado no desfecho da história é que no desenho Mulan se casa com o general, em contraposição, no filme lançado em 2020, Mulan se torna general, dedicando-se somente ao exército. É possível perceber que em uma história ela consegue honrar sua família da maneira esperada através do casamento, já em outra versão ela também consegue honrar tanto a sua família quanto o seu povo, mas sendo general do exército e defendendo os chineses dos supostos ataques.

 Pode-se depreender que na versão animada Mulan parece ter atingido a feminilidade, o desfecho esperado para o Édipo, enquanto no live action a personagem continua identificada ao masculino e à atividade. Na Mulan da versão de 2020 da Disney, a fase designada de “Complexo de masculinidade na mulher” por Freud (1924/1996), pode estar estendida por um período consideravelmente longo e, destarte, trazendo dificuldades para o desenrolar/despertar da feminilidade. Apesar desta constatação, reafirmada pelo fato de a personagem assumir o posto de general do exército chinês, parece-nos que o despertar a feminilidade de Mulan se avizinha, haja vista o interesse romântico da personagem por um dos soldados — Chen Honghui — que estivera com ela na frente de batalha.

As histéricas de Freud e Mulan: algumas articulações possíveis

 José Arthur Molina (2011), em sua obra “O que Freud dizia sobre as mulheres” evoca que o século XIX, marcado pela era do positivismo e a evolução das ciências naturais, foi pego de surpresa ao se deparar com o surgimento de uma série de sintomas que desafiavam as ordens lógicas até então defendidas. Mulheres com paralisia nas pernas e mudas apareciam em consultórios médicos com muitas queixas de dor, mas infelizmente saíam como entraram, sem explicações e excluídas de qualquer tipo de debate interventivo ou curativo.

A trajetória da psicanálise ilustra bem a importância que as mulheres tiveram para o surgimento da teoria. O desconhecido, o complexo, o incompreendido, passa agora a ser estudado. Os sintomas que pareciam “inofensivos” revelam suas origens no inconsciente, o que intriga ainda mais Freud e leva-o a estudar e elaborar as fases do desenvolvimento humano. É por essas e outras razões que se faz importante a compreensão das organizações psíquicas, a mais tardar o feminino.

Foi preciso que as mulheres se calassem para serem ouvidas, pois, a partir do momento em que não expressavam o que sentiam ou pensavam, o corpo passou a assumir esse papel, trazendo muita dor e, ao mesmo tempo, inquietude dentro de si. Freud se dispôs a ouvi-las e a partir das descobertas que esta prática o proporcionou, elaborou conceitos e métodos de tratamento, como o inconsciente e a psicoterapia (Molina, 2011).

É possível localizar uma semelhança entre as histéricas de Freud e Mulan, pois ao atender essas mulheres Freud percebeu que a maioria delas eram intelectualmente ativas, brilhantes e criativas, algo que era proibido ser manifestado pelas mulheres de Viena do século XIX. Devido a algumas vezes essas manifestações serem presentes, eram silenciadas, sem poder ou espaço de fala, deixando de lado as discussões sociais e embarcando cada vez mais em suas funções domésticas.

O caso de Anna O. tornou-se emblemático quando se aponta que apesar das inúmeras sintomatologias por ela apresentadas:

Era dotada de grande inteligência e aprendia as coisas com impressionante rapidez e intuição aguçada. Possuía um intelecto poderoso, que tinha sido capaz de assimilar um sólido acervo mental e que dele necessitava – embora não o recebesse desde que saíra da escola. Anna tinha grandes dotes poéticos e imaginativos, que estavam sobre controle de um agudo e crítico bom senso (Freud & Breuer, 1895/1996, p. 68).

Anna O. não é tão diferente de Mulan. Aliás, a descrição feita de Anna O. aproxima-se daquela realizada pelo pai a Mulan ao dizer que ela possuiria um “chi” forte. A grande diferença entre elas é que Mulan calou-se quanto a sua identidade de mulher e agiu diante de sua inquietação tomando o lugar do pai. Em contrapartida, Anna O. se calou em suas inquietações e sofrimentos, embora mantivesse sua identidade feminina, mas seu corpo falou muito mais alto, demonstrando por meio de seus sintomas histéricos que o seu desejo necessitava de satisfação, mesmo que naquele momento pela via parcial e secundária da produção de sintomatologia.

Considerações finais

A figura feminina, tanto nas antigas civilizações como hoje, sempre foi subestimada. É possível notar em muitos discursos que ser mulher está ligado a uma posição, posição essa que delimita o feminino apenas em espaços domésticos, mais especificamente na China antiga. Nunca foi objetivo deste trabalho partir de discussões feministas, mas sim trazer a discussão de que o ser mulher está muito além de uma posição, além de um padrão, e muito além de rótulos. A personagem Mulan, que subsidiou nossas considerações neste trabalho, quebrou os padrões inclusive em comparação com a maioria das princesas da Disney, possibilitando um olhar mais amplo para os diferentes tipos de constituição feminina. “As mulheres de Freud não seriam tão dóceis como ele haveria desejado. Elas queriam muito mais do que uma vida doméstica: viviam um período de transição social e preparavam-se para inaugurar um novo lugar para elas” (Molina, 2011, p. 158).

Vale ressaltar que esta discussão está longe de ser esgotada, e o que apresentamos neste trabalho é apenas um dos muitos vieses de aproximações possíveis, mas nos propusemos a trazer problemáticas necessárias de serem debatidas na atualidade. É possível enxergar um pouco da personalidade de Mulan em muitas mulheres hoje, pois o feminino não pode ser limitado, uma vez que a sua dimensão é revelada cada vez mais nas esferas sociais. Pode-se perceber que a “rebeldia” da personagem estava ligada a construção de sua própria sexualidade, sendo preciso perpassar por todas as fases do desenvolvimento. A fase do complexo de Édipo feminino retratada anteriormente não deixa de ser representada em personagens da Disney, como Mulan, sendo possível identificá-la através de um olhar crítico e alinhado aos conceitos psicanalíticos.

Foi preciso que Mulan se aventurasse tomando uma posição masculina para enxergar-se como mulher, e ao tomar essa posição trouxe honra não só para a sua família, mas para todo o seu povo.

A mulher, sempre ela: mãe, senhora, prostituta, lésbica, assexuada, má e generosa, autônoma e dependente, atenta e indiferente. Lábios que beijam e mãos que afastam. Qualquer que seja a sua vertente momentânea, ela sempre será honesta e verdadeira na afirmação de seu desejo (Molina, 2011, p.152).

O desejo de Mulan sempre esteve presente em sua história e ela o obtém ao honrar sua família sem se importar com o percurso, pois como dizia Clarice Lispector (2004) “Liberdade é pouco. O que desejo ainda não tem nome”.

A história de Hua Mulan suscita diversas reflexões sobre a feminilidade. As reflexões aqui apresentadas são algumas dentre tantas outras possíveis. A pretensão é dar continuidade aos estudos sobre a constituição da subjetividade feminina compreendendo que ainda há muito a elucidar e avançar.

Referências

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Como citar esse texto

APA – Bogo, A. C. O., & Puertas, K. C. P. (2021). A constituição da subjetividade feminina numa perspectiva psicanalítica: reflexões sobre a personagem Mulan. CadernoS de PsicologiaS, 2. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-constituicao-da-subjetividade-feminina-numa-perspectiva-psicanalitica-reflexoes-sobre-a-personagem-mulan/

ABNT – BOGO, A. C. O.; PUERTAS, K. C. P. A constituição da subjetividade feminina numa perspectiva psicanalítica: reflexões sobre a personagem Mulan. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 2, 2021. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-constituicao-da-subjetividade-feminina-numa-perspectiva-psicanalitica-reflexoes-sobre-a-personagem-mulan/>. Acesso em: __/__/____ .