#Inquietações_teóricas
Resumo: A escuta especializada tem sido um método utilizado no atendimento de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violência. O presente texto tem como objetivo refletir sobre a metodologia e natureza da prática da escuta especializada no contexto do Sistema de Garantia de Direitos (SGD). A discussão ocorreu com base no estudo da legislação sobre o tema e textos de autores que se debruçaram a analisar a legislação e seus reflexos para implementação da escuta especializada. Buscou-se expor análises e entendimentos divergentes sobre o tema. Ao final são discutidos apontamentos que procuram situar o procedimento da escuta especializada como ação de promoção de direitos, e que se desdobra a outros eixos que compõe o Sistema de Garantia de Direitos, como a defesa de direitos.
Palavras-chave:escuta especializada; promoção de direitos; defesa de direitos.
THE PRACTICE OF THE SPECIALIZED LISTENING METHODOLOGY: PROTECTION OR EVIDENCE?
Abstract: Specialized listening has been a method used to assist children and teenagers who are victims or witnesses of violence. This paper aims to reflect on the methodology and nature of the specialized listening practice in the context of the Rights Assurance System (SGD). The discussion is based on a study of the legislation towards the subject and texts by authors who have analyzed the legislation and its consequences for the implementation of specialized listening. This paper sought to expose divergent analyses and understandings of the topic. At the end, some points are discussed seeking to establish the procedure of specialized listening as an action to promote rights, which unfolds to other axes that form the System of Rights Assurance, such as the defence of rights.
Keywords: Specialized Listening; Rights Promotion; Rights Defense.
LA PARACTICA DE LA METODOLOGÍA DE LA ESCUCHA ESPECIALIZADA: ¿PROTECCIÓN O PRUEBA?
Resumen: La escucha especializada ha sido un método utilizado en el atendimiento de niños y adolescentes víctimas o testimonios de violencia. E referido texto tiene como objetivo reflejar a respecto de la metodología y naturaleza de la práctica de la escucha especializada en el contexto del Sistema de Garantía de Derechos (SGD). La discusión ocurrió con base en estudios de la legislación a respecto del tema y textos de autores que se inclinan a analizar la legislación y sus reflejos para la implementación de la escucha especializada. Se buscó exponer análisis y entendimientos divergentes a respecto del tema. Al final son discutidos apuntes que buscan mostrar o procedimiento de la escucha especializada como acción de promoción de derechos, y que se despliega a otros ejes que componen el Sistema de Garantía de Derechos, como la defesa de le derechos.
Palabras clave: Escucha especializada; Promoción de derechos; Defesa de derechos.
O presente texto busca expor inquietações teóricas sobre a escuta especializada realizada no contexto do Sistema de Garantia de Direitos (SGD). Tal procedimento visa a proteção integral da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência. Tomando como referência a Lei nº 13.431/2017, buscou-se por textos que realizassem uma análise da lei, sendo priorizadas aquelas realizadas por autores com formação relacionada a promoção e defesa de direitos da criança e do adolescente. Não houve a intenção de produzir uma extensa pesquisa bibliográfica sobre o assunto, mas com base em analises recentes refletir sobre o tema. Outros elementos tomados como base para a reflexão foram leis, decretos e outros documentos legais pertinentes ao tema da escuta especializada, e que orientam os profissionais que atuam no SGD. Este recorte se justifica à medida que se tem como proposta refletir sobre o texto da lei e seus impactos na prática da escuta especializada com um público que se encontra em processo de desenvolvimento e formação, além de estarem na condição de vítimas ou testemunhas de violências.
Para que a discussão sobre a escuta especializada se torne profícua é fundamental abordar o SGD e a noção de proteção integral, buscando definir e distinguir conceitos de promoção e defesa dos direitos. A exposição de tais conceitos visa orientar o debate e os apontamentos sobre o contexto em que é realizado tal atendimento. Tendo abordado tais conceitos, o depoimento especial é definido, a fim de diferenciá-lo da escuta especializada, aprofundando a reflexão.
Ao longo do texto afirma-se que o relato proveniente da escuta especializada pode servir com informações relevantes para a persecução penal. Porém, é preocupante quando a escuta especializada assume uma perspectiva de entrevista forense e investigativa, uma vez que se deve levar em conta o estado de desenvolvimento e a experiência vivenciada pela criança. Inclusive, a depender do período entre a ocorrência da violência e a escuta, desconhecer a possibilidade de falsas memórias[1] ou alguma forma de alienação parental[2].
O acolhimento realizado na escuta especializada possibilita o espaço de fala para a vítima ou testemunha de violência, contribuindo com informações importantes para encaminhamentos à rede de proteção e posteriormente para defesa dos direitos. Desse modo se questiona: existem limites a serem considerados entre os eixos de promoção e defesa dos direitos da criança e do adolescente? a promoção de direitos seria uma forma de defesa dos direitos? se sim, a escuta é um instrumento de produção de provas ou instrumento de proteção? pensar essa questão implica refletir sobre o que se coloca em primeiro plano ao atuar no serviço de natureza da escuta especializada. Haja vista que as informações relatadas pela criança ou adolescente se tornam informações relevantes para a persecução penal.
A Lei nº 13.431/2017 conhecida como a Lei da Escuta, estabeleceu metodologias para se colher informações de crianças e adolescentes vítimas ou testemunhas de violências, tendo a escuta especializada que ocorre na fase pré-processual, a finalidade de proteção da vítima e o depoimento especial a de produzir provas no processo judicial. No decorrer desses primeiros anos de efetiva execução da lei, no entanto, surgiram divergências quanto ao entendimento sobre o objetivo da escuta especializada, procedimento que ocorre, em geral, antes da instauração do inquérito policial. Alguns autores, a partir da letra da lei, entendem a escuta especializada como um procedimento que visa a proteção, outros defendem que a metodologia deve ser entendida como prova. Nesse trajeto, torna-se inquietante o posicionamento que alguns colegas psicólogos que têm desenvolvido a escuta em uma perspectiva de entrevista forense. Esse artigo fala dessa inquietação.
A fim de lançar luz sobre a efetivação das metodologias propostas, a respeito dos documentos legais que tratam delas, bem como sua consolidação, buscamos expor reflexões divergentes produzidas por autores que analisaram a Lei nº 13.431/2017 e o Decreto nº 9.603/2018 que a regulamenta.
A Lei nº 13.431/2017, conforme sua ementa, “estabelece o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência”. Segundo a Resolução nº 113/2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que “dispõe sobre os parâmetros para a institucionalização e fortalecimento do Sistema de Garantia dos Direitos da Criança e do Adolescente”, em seu art. 5º, o SGD se encontram estruturados com base em três eixos estratégicos: I) defesa dos direitos humanos; II) promoção dos direitos humanos; e III) controle da efetivação dos direitos humanos (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente [CONANDA], 2006).
A ideia de proteção no contexto do SGD pressupõe uma rede de proteção, caracterizada como “conjunto articulado de ações, serviços e programas de atendimento, executados por órgãos e entidades que integram o sistema de garantia de direitos da criança e do adolescente” (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2018, p. 4). Esta rede, como também suas ações, visa a proteção integral, ou seja, uma proteção garantida pelos três eixos que compõe o SGD.
A proteção integral envolve a garantia de vários direitos da criança e do adolescente. Estes direitos se encontram previstos no art. 227º da Constituição Federal de 1988, que dispõe:
É dever da família, da sociedade e do Estado assegurar à criança, ao adolescente e ao jovem, com absoluta prioridade, o direito à vida, à saúde, à alimentação, à educação, ao lazer, à profissionalização, à cultura, à dignidade, ao respeito, à liberdade e à convivência familiar e comunitária, além de coloca-los a salvo de toda forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão.
Além do disposto neste artigo da Constituição Federal, Alves (2018) destaca este e outros documentos legais que expressam os preceitos da proteção integral a crianças e adolescentes, como o Estatuto da Criança e do Adolescente (1990), o Decreto nº 99.710/1990, que publicou a Convenção sobre os direitos da criança, e cita o art. 12º da Resolução nº 20/2005 do Conselho Econômico e Social das Nações Unidas que apresenta diretrizes para a justiça em assuntos que envolvam crianças vítimas ou testemunhas de crimes.
Estes documentos contêm princípios que norteiam a noção de proteção integral e orientam a organização do SGD, desdobrando-se nos eixos que compõe tal sistema. Com base no exposto, volta-se a atenção aos eixos de promoção e defesa de direitos.
O eixo de promoção é caracterizado pela efetivação de políticas de atendimento dos direitos da criança e do adolescente na forma de programas, serviços e ações públicas (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2018, p. 8). Neste eixo, políticas de saúde, educação e assistência social, são exemplos que se encontram atuantes na promoção dos direitos da criança e do adolescente. Ainda segundo o art. 14º § 1º da Resolução 113/2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA):
Art. 14º O eixo estratégico da promoção dos direitos humanos de crianças e adolescentes operacionaliza-se através do desenvolvimento da ‘política de atendimento dos direitos da criança e do adolescente’, […]. § 1º Essa política especializada de promoção da efetivação dos direitos humanos de crianças e adolescentes desenvolvesse, estrategicamente, de maneira transversal e intersetorial, articulando todas as políticas públicas (infra-estruturantes, institucionais, econômicas e sociais) e integrando suas ações, em favor da garantia integral dos direitos de crianças e adolescentes.
Além da promoção o SGD prevê a defesa dos direitos da criança e do adolescente. O eixo de defesa “se refere à responsabilização do Estado, da sociedade e da família pelo não atendimento, atendimento irregular ou violação dos direitos individuais ou coletivos das crianças e dos adolescentes” (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2018, p. 8). Compõe este eixo, órgãos públicos judiciais, como Ministério Público, polícias, conselhos tutelares, dentre outros que buscam garantir o acesso à justiça (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2018). O conteúdo exposto na Nota técnica 1/2018 do Conselho Federal de Psicologia se orienta pelo art. 6º da Resolução 133/2006 do Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente (CONANDA), que caracterizam a defesa dos direitos humanos como “garantia de acesso à justiça, ou seja, pelo recurso às instâncias públicas e mecanismos jurídicos de proteção legal dos direitos humanos” e especificam os órgãos públicos inseridos neste eixo em seu art. 7º da mesma resolução (Conselho Nacional dos Direitos da Criança e do Adolescente [CONANDA], 2006).
Os eixos acima citados possuem natureza protetiva distinta e são compostos por órgãos diferentes, integrando o SGD e visando a proteção integral. Tais diferenças não devem sobrepor ao entendimento de que tais instituições precisam respeitar o interesse da criança, seja realizando a escuta especializada ou o depoimento especial.
O artigo 7º da Lei nº 13.431/2017 estabelece a escuta especializada como “[…] procedimento de entrevista sobre situação de violência com criança ou adolescente perante órgão da rede de proteção, limitado o relato estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade” (itálico adicionado).
Por sua vez, o depoimento especial é definido pela Lei nº 13.431/2017 como o “procedimento de oitiva de criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência perante autoridade policial ou judiciária”. Na referida lei, em seu art. 11º está disposto que o depoimento especial ocorrerá com base em protocolos. A realização do depoimento especial com base em protocolo se encontra disposta na resolução 299/2019, art. 8º do Conselho Nacional de Justiça.
Art. 8º Os depoimentos deverão ser colhidos em ambiente apropriado em termos de espaço e de mobiliário, dotado de material necessário para a entrevista, conforme recomendações técnicas assentadas no Protocolo Brasileiro de Entrevista Forense, devendo os tribunais estaduais e federais providenciar o necessário, no prazo de noventa dias (itálico adicionado). (Conselho Nacional de Justiça [CNJ], 2019)
O Decreto nº 9.603/2018, que regulamenta a Lei nº 13.431/2017 estabelece que a escuta especializada seja realizada pelos órgãos da rede de proteção, tratando-se de uma medida com a finalidade de garantir ações de caráter protetivo à vítima ou testemunha de violência. O Decreto nº 9.603/2018, art. 19º, dispõe:
A escuta especializada é o procedimento realizado pelos órgãos da rede de proteção nos campos da educação, da saúde, da assistência social, da segurança pública e dos direitos humanos, com objetivo de assegurar o acompanhamento da vítima ou da testemunha de violência, para a superação das consequências da violação sofrida, limitado ao estritamente necessário para o cumprimento da finalidade de proteção social e de provimento de cuidados (itálico adicionado).
Ao comentar o art. 7º da Lei nº 13.431/2017, Digiácomo e Digiácomo (2018) afirmam que a escuta já vinha sendo utilizada como coleta do relato de crianças e adolescentes, mesmo antes da publicação da Lei nº 13.431/2017. Os autores asseveram, com a publicação da referida lei que “tal prática passa agora a ser consagrada e expressamente reconhecida como meio válido para a coleta de provas junto a esse público” (Digiácomo & Digiácomo, 2018, p. 37).
Este entendimento a respeito do procedimento de escuta é defendido pelos autores ao conceberem tal entrevista como instrumento de produção de provas (Digiácomo & Digiácomo, 2018). O procedimento de escuta, realizado pela rede de proteção, para os autores “não significa, ao contrário do que argumentam alguns, que este método de coleta de prova se restringiria ao ‘acolhimento’ inicial (diga-se, a ‘recepção humanizada’) da vítima ou testemunha pela ‘rede’” (Digiácomo & Digiácomo, 2018, p. 37).
Ainda sobre a escuta como produção de provas, Digiácomo e Digiácomo (2018, p. 37, itálico do autor) afirmam, segundo o art. 5º, inciso LVI da Constituição Federal que, “[…] todos os meios lícitos de prova devem ser admitidos em Direito, devendo a ‘valoração’ da prova, seja por qual método for colhida, ser efetuada no caso em concreto, à luz de todos os elementos coligidos no processo”.
Em consonância com Digiácomo e Digiácomo (2018), Pedro (2020) assevera que a escuta especializada como o depoimento especial são instrumentos para a coleta de provas. Tal afirmação é sustentada pela autora ao argumentar que o relato da vítima tem valor probatório (Pedro, 2020). Porém, em relação a produção de prova por meio da escuta especializada, a autora faz um destaque ao pontuar que ouvir a criança não é o mesmo que colher um depoimento com objetivo de produzir provas, mas garantir o direito da criança e do adolescente de ser ouvido (Azambuja, 2006, citado por Pedro, 2020).
Essa concepção sobre a finalidade da escuta especializada é diferente do que se acha disposto no decreto nº 9.603/2018, § 4º.
§4º A escuta especializada não tem o escopo de produzir prova para o processo de investigação e de responsabilização, e fica limitada estritamente ao necessário para o cumprimento de sua finalidade de proteção social e de provimento de cuidados (itálico adicionado).
Contrapondo as concepções de autores que compreendem a escuta especializada como instrumentos para coleta de provas, Maciel et al. (2021) cita o posicionamento do Instituto Brasileiro de Direito da Família, o qual afirma que este atendimento não deve ter a finalidade de coleta de provas, devendo as perguntas se limitarem ao necessário para o provimento de cuidados.
Bonfim e Arruda (2020) corroboram com a ideia de proteção prevista na Lei e no decreto, ao afirmarem que os ‘atores’ que realizam o procedimento de escuta especializada, sendo técnicos da rede de proteção se encontram envolvidos com o eixo da promoção dos direitos. Tal aspecto também é apontado pela Nota técnica nº 1/2018 do Conselho Federal de Psicologia ao fazer destaques sobre as diferenças entre os eixos de proteção que integram o sistema de garantia de direitos da criança e dos adolescentes.
Estando relacionada ao eixo de promoção de direitos, Bonfim e Arruda (2020) apontam que este atendimento é promovido extrajudicialmente. Sendo a garantia de direitos uma organização a ser realizada em rede, precisa respeitar as atribuições institucionais de cada órgão e serviço inserido na rede de proteção (Bonfim & Arruda, 2020).
Bonfim e Arruda (2020) expõem que a Lei nº 13.431/2017 prevê o uso de informações da escuta para a persecução penal. Afirmam também que os conteúdos provenientes do relato da vítima são relevantes como prova, haja vista que a violação de direitos da criança e do adolescente pode ocorrer em ambiente doméstico, não existindo testemunha direta.
Com base no entendimento de Digiácomo e Digiácomo (2018), Bonfim e Arruda (2020), o profissional que realiza a escuta especializada precisa estar ciente que o relato colhido no atendimento é elemento fundamental para o cumprimento da proteção integral da criança e do adolescente. A orientação de sua conduta ao realizar o procedimento da escuta especializada é disposta no Decreto nº 9.603/2018, §3º “O profissional envolvido no atendimento primará pela liberdade de expressão da criança ou do adolescente e sua família e evitará questionamentos que fujam aos objetivos da escuta especializada” (itálico adicionado).
Considerando o exposto pelo Decreto nº 9.603/2018 em seu § 3º, a escuta especializada não pode ter a característica de interrogatório e ocupar-se de detalhes da situação de violência, devendo ater-se a “identificação da violência para orientação e tomada de providências cabíveis” (Bonfim & Arruda, 2020, p. 566), conforme o previsto pelo eixo de promoção dos direitos da criança e do adolescente. Sobre o encaminhamento após a identificação da situação de violência, o Provimento 287/2019 do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná dispõe em seu art. 15º:
Qualquer órgão ou serviço da Rede de Proteção, ao tomar conhecimento de que uma criança ou adolescente sofreu ou testemunhou uma situação de violência deverá comunicar o fato ao Conselho Tutelar ou ao Serviço de Recebimento e Monitoramento de Denúncias, se este estiver implantado (itálico adicionado).
Essa concepção se alinha a ideia de promoção de direitos, uma vez que o atendimento tem por objetivo o “acompanhamento da vítima ou da testemunha de violência, para a superação das consequências da violação sofrida visando a proteção social e provimento de cuidados” (Bonfim & Arruda, 2020, p. 567). Sendo identificada a situação de violência, o relato proveniente da escuta especializada deve ser enviado para autoridades competentes, visando o início de um processo de investigação (Bonfim & Arruda, 2020). Esta questão sinaliza a relação entre promoção e defesa dos direitos.
Tendo em vista a proteção integral, é importante compreender que a escuta especializa ocupa um papel importante na identificação da situação de violência. Colocando tal atendimento em relação com o processo de investigação e responsabilização (Bonfim & Arruda, 2020). Ao afirmar esta relação deve-se que se ter cuidado com a judicialização das ações de proteção, “usando-se das atribuições e competência de saberes profissionais, que deveriam ocupar-se tão somente da proteção e promoção dos direitos humanos de crianças e adolescentes” (Bonfim & Arruda, 2020, p. 567-568).
Com objetivo de expor alguns apontamentos que contribuam para discussão sobre a prática da escuta especializada e refletir sobre a natureza deste atendimento no contexto do SGD, destacamos três pontos: I – Relação da escuta especializada com o processo de investigação e responsabilização do autor da violência; II – A escuta especializada prioriza a promoção de direitos; III – Capacitação profissional.
Destacamos que a exposição destes três pontos não esgota outras reflexões sobre o procedimento abordado, bem como, não abrange a totalidade das discussões que envolvem a organização do SGD. Passamos aos três pontos levantados.
Ao pontuarmos a relação da escuta com o processo de investigação e responsabilização do autor da violência, compreendemos que o relato da criança ou adolescente pode assumir valor probatório no contexto da persecução penal. Sendo tal questão de fundamental importância para evitar que a vítima tenha que narrar repetidas vezes a situação de violência, configurando uma nova situação de violação de direitos, a violência institucional, prevista no art. 4º inciso IV da Lei 13.431/2017, e no art. 5º inciso II do Decreto 9.603/2018 ao dispor sobre a revitimização da criança e do adolescente.
O entendimento de que o relato decorrente do procedimento da escuta especializada mantém relações estreitas com a investigação e responsabilização coloca em articulação promoção e defesa dos direitos. No interior da noção de proteção integral é necessário distinguir ações e atores, como já realizados ao longo do texto, envolvidos diretamente com a promoção de direitos e aqueles que atuam na defesa dos direitos. O que nos possibilita refletir sobre o segundo ponto: a escuta especializada prioriza a promoção de direitos.
Afirmar a prioridade da promoção de direitos não implica romper as relações com a defesa dos direitos, muito menos destituir o relato colhido na escuta especializada do seu valor probatório para o processo de investigação e responsabilização. No interior desta contradição afirma-se o caráter primordial da escuta especializada como de compreender e identificar a situação de violência, a fim de que o provimento de cuidados seja realizado, limitando-se o procedimento de entrevista ao necessário para cumprir tal finalidade, conforme previsto no art. 7º da Lei 13.431/2017 e no art. 19º do Decreto 9.603/2018. Desse modo o caráter de coleta de provas não deve sobrepor ao objetivo de proteção social e providências de cuidado previsto na legislação no contexto da prática da escuta especializada.
Ao considerar os limites e os encontros entre a promoção e defesa de direitos, destaca-se o terceiro elemento: a capacitação profissional. A importância de ter profissionais devidamente capacitados para a realização da escuta especializada se encontra prevista no art. 5º inciso XI, art. 14º inciso II da Lei 13.431/2017, art. 20º do Decreto 9.603/2018, dentre outros documentos legais tratados neste texto. Ao pontuar sobre a capacitação entende-se que o profissional deve dispor de elementos teóricos e práticos para conduzir uma entrevista que considere a etapa do desenvolvimento do sujeito submetido a escuta especializada, respeitando as particularidades de sua condição psíquica e cognitiva afetadas pela violação de direito, bem como de conhecimentos sobre a elaboração de documentos decorrentes do atendimento realizado e que serão encaminhados a outros órgãos da rede de proteção.
Ter conhecimento sobre a condução do procedimento de entrevista, a adequação de perguntas, a idade e a etapa do desenvolvimento do sujeito, contribui para o planejamento, acolhimento e manejo de técnicas colocadas em prática na construção de um espaço de fala para a vítima de violência. Habilidade que pode evitar a submissão da criança e adolescente à procedimentos, abordagens desnecessárias e revitimizadoras, oportunizando a construção de um relato substancial que contribuirá para com o processo de investigação e responsabilização do autor da violência, favorecendo ações direcionadas a defesa de direitos.
Buscando sintetizar os conteúdos dos três elementos apresentados e retomar as questões apresentadas no início deste texto, entende-se que promover e defender direitos envolve ações distintas, mas que se articulam no sentido de alcançar a proteção integral da criança e do adolescente. Os atores e ações realizadas na promoção de direitos, ao se distinguirem daqueles que executam a investigação e responsabilização, não podem perder de vista a finalidade central da escuta especializada: identificar a situação de violência e provimento de cuidados, caracterizando a promoção dos direitos. Os desdobramentos deste procedimento no eixo da defesa de direitos, a precaução para não revitimizar, encontram-se em relação com a necessidade de capacidade técnica do profissional ao executar tal procedimento, primando pelo melhor interesse da criança e do adolescente vítima ou testemunha de violência.
Portanto, a finalidade de proteção social e provimento de cuidados da escuta especializada é fulcral. Sendo realizada com base em conhecimentos teóricos e técnicos sobre desenvolvimento humano, tipos e características de violências e suas implicações para o desenvolvimento de crianças e adolescentes, o conhecimento de técnicas de entrevista e observação, tornando a escuta especializada, primordialmente, um instrumento de proteção e promoção de direitos. Ao cumprir tal finalidade, a escuta especializada contribui e articula-se ao eixo de defesa de direitos.
[1] Rovinski (2004) afirma que ao passar por diversas entrevistas a criança pode construir um relato divergente da realidade vivenciada no evento traumático. Estas informações ditas ‘contaminadas’ fazem com que a criança se recorde de eventos que não ocorreram ou tenham ocorrido de maneira diferente do evento traumático. Sendo este fenômeno denominado de falsas memórias.
[2] A Lei nº 12.318 de 26 de agosto de 2010 que “dispõe sobre a alienação parental e altera o art, 236 da Lei nº 8.069 de julho de 1990, define em seu art. 2º a alienação parental como ato de alienação parental a interferência na formação psicológica da criança ou do adolescente promovida ou induzida por um dos genitores, pelos avós ou pelos que tenham a criança ou adolescente sob a sua autoridade, guarda ou vigilância para que repudiegenitor ou que cause prejuízo ao estabelecimento ou à manutenção de vínculos com este.
Alves, M. J. (2018). A escuta especializada e o depoimento especial: Lei nº 13.431, de 04 de abril de 2017. Revista JurisFIB (pp. 103-113). Recuperado de: https://revistas.fibbauru.br/jurisfib/article/view/332
Bonfim, D. N. de M., & Arruda, J. S. (2020). Escuta Especializada e Depoimento Especial de crianças e adolescentes: notas sobre a Lei nº 13.431/2017 e o Decreto nº 9.603/2018. FIDES, 11(2), 559-577. Recuperado de: http://www.revistafides.ufrn.br/index.php/br/article/view/523/531
Constituição da República Federativa do Brasil. (1988, 05 de outubro). Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/constituicao/constituicao.htm
Decreto nº 9.063. (2018, 10 de dezembro). Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9603.htm
Digiácomo, M. J. &, Digiácomo, E.. (2018). Comentários à Lei nº 13.431/2017. CTBA: MPPR. Recuperado de: https://crianca.mppr.mp.br/arquivos/File/publi/caopca/lei_13431_comentada_jun2018.pdf
Lei nº 12.318. (2010, 26 de agosto). Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2007-2010/2010/lei/l12318.htm
Lei nº 13.431. (2017, 4 de abril). Recuperado de: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2017/lei/l13431.htm
Maciel, A. C. S., Keitel, A. S. P., Neubauer, V. S., Veiga, D. J. S., Gomes, A. A., & Linck, I. M. D. (2021). Uma análise do Depoimento Especial e da Escuta Especializada como mecanismo de preservação de crianças e adolescentes vítimas de violência sexual. Research, Society and Development, 10(8), 1-19. doi: http://www.planalto.gov.br/ccivil_03/_ato2015-2018/2018/decreto/D9603.htm
Conselho Federal de Psicologia [CFP]. Nota técnica sobre os impactos da Lei nº 13.431/2017 na atuação das psicólogas e dos psicólogos. Brasília, DF: CFP. Recuperado de: https://site.cfp.org.br/documentos/nota-tecnica-cfp-no-01-2018/
Pedro, T. H. (2020). A escuta especializada e o depoimento especial de vítimas de violação de direitos: atuação da psicologia. R. Trib. Reg. Fed. 1ª Região, 32(2), 44-65. Recuperado de: https://revista.trf1.jus.br/trf1/article/view/188
Provimento nº 287. (2019, 31 de janeiro). Recuperado de: https://portal.tjpr.jus.br/pesquisa_athos/publico/ajax_concursos.do?tjpr.url.crypto=8a6c53f8698c7ff7801c49a82351569545dd27fb68d84af89c7272766cd6fc9f2b7ceb871026f5b660b37ebac0ac0f388bf440087b6b30641a2fb19108057b53eef286ec70184c6e
Resolução nº 113 (2006, 19 de abril). Recuperado de: https://www.gov.br/mdh/pt-br/acesso-a-informacao/participacao-social/conselho-nacional-dos-direitos-da-crianca-e-do-adolescente-conanda/resolucoes/resolucao-no-113-de-19-04-06-parametros-do-sgd.pdf/view
Resolução nº 299 (2019, 5 de novembro). Recuperado de: https://atos.cnj.jus.br/files/original000346201912045de6f7e29dcd6.pdf
Rovinski, S. L. (2004). Fundamentos da perícia psicológica forense. São Paulo: Vetor.
APA – Padula, Y. B., & Joppert, D. M. R. (2021). A prática da metodologia da esculta especializada: proteção ou prova? CadernoS de PsicologiaS, 2. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-pratica-da-metodologia-da-esculta-especializada-protecao-ou-prova/
ABNT – PADULA, Y. B.; JOPPERT, D. M. R. A prática da metodologia da esculta especializada: proteção ou prova? CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 2, 2021. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-pratica-da-metodologia-da-esculta-especializada-protecao-ou-prova/>. Acesso em: __/__/____ .