Revista CadernoS de PsicologiaS

A Psicologia brasileira e os direitos das pessoas com deficiência: uma análise documental das deliberações dos CNPs

Bruno Santos Ramos Cerdan
(CRP-08/42058)
E-mail: psibrunocerdan@gmail.com
#Inquietações_teóricas

ERRATA: Na versão impressa deste artigo, o resumo traduzido para o espanhol foi omitido inadvertidamente. A versão digital, que contém a tradução correta do resumo e segue a padronização estabelecida, deve ser considerada como referência. Lamentamos o inconveniente e agradecemos a compreensão.

Resumo: A pesquisa aborda a história da Psicologia Brasileira desde a criação do Sistema Conselhos de Psicologia pela Lei n.º 5.766/1971, com foco nas Políticas Públicas de Direitos das Pessoas com Deficiência. O estudo analisa como o Conselho Federal de Psicologia (CFP) orientou a categoria profissional diante do surgimento dessas políticas no país. A investigação contextualiza a influência dos modelos de deficiência no campo político e o histórico das Políticas Públicas para essa população, desde 1971. Foi realizada uma análise histórica de documentos do Sistema Conselhos, com destaque para os Congressos Nacionais de Psicologia. Os resultados indicam que o tema das Pessoas com Deficiência esteve ausente por muitos anos na Psicologia brasileira, ganhando relevância a partir da década de 2010, impulsionado por marcos políticos, como a Lei Brasileira de Inclusão (LBI) de 2016.

Palavras-chave: Sistema Conselhos de Psicologia; Congresso Nacional de Psicologia; Políticas Públicas dos Direitos das Pessoas com Deficiência.

BRAZILIAN PSYCHOLOGY AND THE RIGHTS OF PEOPLE WITH DISABILITIES: A DOCUMENTARY ANALYSIS OF CNPS DELIBERATIONS

Abstract: The research addresses the history of Brazilian Psychology since the creation of the Psychology Council System by Law No. 5,766/1971, focusing on Public Policies on the Rights of People with Disabilities. The study analyzes how the Federal Psychology Council (CFP) guided the professional category in the face of the emergence of these policies in the country. The investigation contextualizes the influence of disability models in the political field and the history of Public Policies for this population, since 1971. A historical analysis of documents from the Council System was carried out, emphasizing the National Psychology Congresses. The results indicate that the topic of People with Disabilities was absent for many years in Brazilian Psychology, gaining relevance from the 2010s onwards, driven by political milestones, such as the Brazilian Inclusion Law (LBI) of 2016

Keywords: Psychology Council System; National Psychology Congress; Public Policies on the Rights of People with Disabilities.

PSICOLOGÍA BRASILEÑA Y LOS DERECHOS DE LAS PERSONAS CON DISCAPACIDAD: UN ANÁLISIS DOCUMENTAL DE LAS DELIBERACIONES DEL CNPS

Resumen: La investigación aborda la historia de la Psicología brasileña desde la creación del Sistema de Consejos de Psicología por la Ley N° 5.766/1971, con enfoque en las Políticas Públicas sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad. El estudio analiza cómo el Consejo Federal de Psicología (CFP) orientó a la categoría profesional ante el surgimiento de estas políticas en el país. La investigación contextualiza la influencia de los modelos de discapacidad en el campo político y la historia de las Políticas Públicas para esta población, desde 1971. Se realizó un análisis histórico de documentos del Sistema de Consejos, con énfasis en los Congresos Nacionales de Psicología. Los resultados indican que el tema de las Personas con Discapacidad estuvo ausente durante muchos años en la Psicología brasileña, ganando relevancia a partir de la década de 2010, impulsado por hitos políticos, como la Ley Brasileña de Inclusión (LBI) de 2016.

Palabras-clave: Sistema de Consejos de Psicología; Congreso Nacional de Psicología; Políticas Públicas sobre los Derechos de las Personas con Discapacidad.

Introdução

Orientado pela Declaração Universal dos Direitos Humanos, redigida pela Organização das Nações Unidas (ONU) em 1948, em todo o mundo surgiram perspectivas na equiparação de direitos e a educação para todos. Mudanças importantes e rápidas aconteceram na segunda metade do século XX nas leis, no sistema educacional e nas práticas profissionais, acarretando diferentes formas de compreender a deficiência.

Durante o período da ditadura militar no Brasil, em que houve a consolidação da Psicologia como ciência e profissão, também nasceu o seu conselho de classe, tendo mais de 50 anos, a Lei 5.766/71, de 20 de dezembro de 1971, cria o Conselho Federal de Psicologia (CFP) e os Conselhos Regionais de Psicologia (CRP) e dá outras providências, quase dez anos após a regulamentação dos cursos de formação de Psicologia e a profissão de psicóloga(o)1 diante a Lei n.º 4.119, de 27 de agosto de 1962, data que é presentemente celebrado o dia da(o) psicóloga(o).

Com a regulamentação da profissão, apresentou-se a necessidade da criação de um código de ética para orientar a categoria. Em 1966 foi organizado o Código de Ética dos Psicólogos Brasileiros trazendo orientações a ética profissional e parâmetros de fiscalização em instituições prestadoras de serviços psicológicos e do exercício ilegal da profissão, mesmo sem ainda nesse momento existir um conselho de classe. Enquanto isso, o ensino da Psicologia na formação para a atuação profissional com as pessoas com deficiência era denominada como a “Psicologia do Excepcional”, termo esse usado amplamente pela comunidade científica nos anos de 1970. Amaral (1996) aponta que o uso do termo “Excepcionalidade” é revestida de um teor depreciativo e historicamente utilizado para identificar déficits intelectuais, realizando uma generalização indevida das pessoas com deficiência.

A prática da Psicologia com as pessoas com deficiência era visto com cunho de assistencialismo, educação e saúde, identificada com a patologia da pessoa, a “Psicologia do Excepcional”, era usada para caracterizar a área de trabalho e por anos se manteve nomeando as disciplinas nos cursos de Psicologia, nessa época não era vista a deficiência como somente uma característica do sujeito, a formação não contribuía em nada para criação de sua autonomia.

Os modelos de deficiência baseando as políticas públicas

Durante muito tempo, o modelo biomédico esteve presente na nossa sociedade, com suas raízes nas ideias iluministas que marcaram os séculos XVII e XIX. Além disso, ele se beneficia da influência filosófica na criação dos ideais científicos positivistas. Para o pensamento positivista relacionado ao modelo médico, a patologia está diretamente relacionada à fisiologia. A doença é entendida como qualquer alteração do estado normal ou natural, variando em níveis de intensidade, como excesso ou falta de algo. (Bisol et al., 2017).  

Em seguida o modelo biopsicossocial tenta rever conceitos do modelo médico, centrava-se nas causas e implicações físicas, sendo mais atualizado diante das pesquisas sobre as Pessoas com Deficiência na ONU. O modelo biopsicossocial se propõe a ter uma visão integral do indivíduo nas dimensões física, psicológica e social, enfatizando a importância de manter o equilíbrio e harmonização desses três níveis (Martins & Borges, 2012).

O modelo biopsicossocial utiliza termos como o de funcionalidade, que diz respeito à interação do indivíduo com a deficiência e o ambiente, e o de incapacidade, que diz respeito às barreiras. Ele abrange aspectos físicos e estabelece fontes de sofrimento social e emocional. Apesar de ser considerada a abordagem mais abrangente em todos os aspectos da vida da pessoa, ela ainda enfatiza o conhecimento médico, dando uma nova forma de se adaptar às críticas que o modelo social apontou.

Atualmente o modelo de avaliação biopsicossocial é utilizada pelas instituições públicas para concessão de benefícios, acesso a serviços ou políticas as pessoas com deficiência, a avaliação é feita por uma equipe multiprofissional e interdisciplinar, como declara a Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa com Deficiência (LBI).

Advindo do movimento social das pessoas com deficiência na Inglaterra, a concepção de deficiência do modelo social tem por objetivo fomentar a emancipação das pessoas com deficiência para perceberem criticamente qual o lugar que ocupam na sociedade. O modelo social origina-se da crítica ao entendimento majoritário sobre a deficiência, opondo-se ao modelo médico, que se entende como universal e neutro (Santos, et al., 2012).

As barreiras sociais e físicas impediram por muito tempo que as pessoas com deficiência tivessem acesso a diversos locais e direitos. Nota-se que a sociedade e suas instituições são limitantes  ao proporcionar a todas as pessoas a oportunidade de estarem em convivência devido às barreiras construídas.

De acordo com Oliver (1996 apud Santos, et al., 2012), para aqueles que se alinham ao modelo social, a principal intervenção deve ser feita na sociedade para garantir a participação das pessoas com deficiência que necessitam de ter seu acesso facilitado ou desimpedido. A ideologia do modelo social nega a normalidade para celebrar a diferença e as experiências de vida, ao invés da normalidade padronizada. Em suma, o modelo social interpretou a deficiência como uma consequência de uma sociedade “descapacitante” ou “incapacitante”, e não como uma doença no corpo do indivíduo. Ser incapacitado pela sociedade relaciona-se diretamente com a discriminação, que restringe a participação das pessoas com deficiência no meio social (Bisol et al., 2017).

As políticas públicas dos direitos das pessoas com deficiência no Brasil

A Declaração Universal dos Direitos Humanos da ONU, em 1948, foi um marco importante que impulsionou a implementação de leis e outras declarações em todo o mundo. A educação foi um dos direitos fundamentais que mais teve reflexo nas políticas públicas para as pessoas com deficiência no Brasil nos anos seguintes.

Na década de 1980, a ONU fixou o Ano Internacional das Pessoas Deficientes em 1981, onde houve uma grande mobilização e visibilidade, motivando as discussões sobre as condições de vida da pessoa com deficiência (Belle & Costa, 2019). Em decorrência da promulgação da Constituição Federal de 1988, houve importantes avanços na garantia de direitos as pessoas com deficiência, como a de não-discriminação, o direito à seguridade social, a inclusão e a garantia de assistência social. 

Na sequência, os anos de 1990 ocorreu um dos principais marcos políticos da história mundial da luta de direitos das pessoas com deficiência, a Declaração de Salamanca, em 1994, considerada um dos principais documentos onde visa a inclusão social, objetivou-se a discussão da atenção educacional aos alunos com necessidades educacionais especiais (Monteiro et al., 2016). No Brasil se instituiu as Diretrizes Nacionais para a Educação Especial na Educação Básica na perspectiva da educação inclusiva e passou a tratar da inclusão de pessoas com deficiência em espaços sociais diversos, como no mundo do trabalho, além dos espaços escolares.

 Em 1999 ocorreu Convenção de Guatemala, em que teve como princípio a eliminação de todas as formas de discriminação contra as pessoas com deficiência e reforçou que todos têm os mesmos direitos e liberdades (Monteiro et al., 2016). Os governos participantes reafirmaram que as pessoas com deficiência têm os mesmos direitos humanos e liberdades fundamentais que os demais cidadãos. Entre os direitos está o de não ser submetido à discriminação com base na deficiência, emanando da dignidade e da igualdade que são inerentes a todo ser humano. Outro ponto importante de discussão foi a definição do termo deficiência significando qualquer restrição física, mental ou sensorial, de natureza permanente ou transitória, que limita a capacidade de exercer uma ou mais atividades essenciais da vida diária causada ou agravada pelo ambiente econômico e social (Rodrigues & Capellini, 2014 apud BRASIL, 1999).

A Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência (CDPD) da Organização das Nações Unidas em 2006 propôs um novo conceito de deficiência, resultado da mobilização internacional das pessoas com deficiências, que reconhece a experiência da opressão sofrida pelas pessoas com impedimentos. O novo conceito supera a ideia de impedimento como sinônimo de deficiência, reconhecendo na restrição de participação o fenômeno determinante para a identificação da desigualdade pela deficiência (Maior, 2017 apud Diniz, 2009). O conceito de Pessoa com Deficiência presente na convenção supera as leis tradicionais que se baseavam no aspecto clínico da deficiência. As limitações físicas, mentais, intelectuais ou sensoriais são consideradas atributos das pessoas, os que podem ou não gerar restrições para o exercício dos direitos, dependendo das barreiras sociais e culturais que impeçam a participação dos cidadãos com tais limitações (Maior, 2017 apud Fonseca, 2007).

Hoje no Brasil o marco político mais importante para as pessoas com deficiência é sem dúvida a Lei n.º 13.146/2015, a Lei Brasileira de Inclusão (LBI), conhecida também como o Estatuto da Pessoa com Deficiência, com a presença do novo conceito de deficiência presentes nos documentos da Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência realizada em Assembleia Geral da ONU, em 2006. 

A LBI além de trazer novos institutos jurídicos relativos à concepção de deficiência, capacidade legal, avaliação psicossocial e acessibilidade, ela adota o modelo biopsicossocial de deficiência, ao direcionar que os impedimentos físicos, sensoriais, mentais e intelectuais sendo não produtoras de obstáculos, e sim que essas barreiras sociais e físicas a impedem o pleno exercício de direitos (Araujo & Filho, 2017). 

De acordo com Santos (2016), o texto da Lei Brasileira de Inclusão traz a questão das barreiras como uma inovação para fins de reconhecimento e qualificação da deficiência como restrição de participação social. A LBI não só descreve o que são as barreiras, como explicita seis principais tipos: arquitetônicas, urbanísticas, nos transportes, nas comunicações, tecnológicas e atitudinais.

A lei de cotas, Lei n.º 12.711/2012, é criada a fim de garantir o acesso ao ensino superior, reserva, no mínimo, 50% (cinquenta por cento) de suas vagas para estudantes que tenham cursado integralmente o ensino médio em escolas públicas. Em 2016 houve uma mudança na lei de cotas nas universidades com a promulgação da Lei n.º 13.409/2016, assim dispondo a reserva de vagas para pessoas com deficiência nos cursos técnicos de nível médio e superior das instituições federais de ensino.

O trabalho de profissionais envolvidos em seu trabalho com as pessoas com deficiência devem seguir o que está prescrito na Lei Brasileira de Inclusão e conhecer toda a trajetória de luta e conquistas nas políticas públicas voltadas às pessoas com deficiência. As instituições de formação e as reguladoras das profissões possuem o papel de orientar a atuação conforme prescrito nas legislações brasileiras, com o compromisso de se atualizar e debater a temática para ser garantido a plena participação das pessoas com deficiência em todos os campos da sociedade, sem discriminações e impedimentos de acesso.

A história da psicologia brasileira a partir da regulamentação da profissão

Com a Lei 4.119, de 27 de agosto de 1962, a Psicologia foi reconhecida como uma profissão. O texto da referida lei é a consolidação de um fazer profissional que já havia no Brasil, porém ainda não reconhecido pelo Estado, fruto de mobilizações desses pioneiros da Psicologia brasileira. Porém, dois anos depois ocorreu a instauração de um golpe militar que perdura até os anos de 1980. Nesse período o acesso à Psicologia se manteve restrito à população com maior poder aquisitivo, contribuindo para legitimar, em partes, as ações desse estado de exceção.

Em meio à ditadura civil-militar foi criado o Sistema Conselhos de Psicologia, inicialmente composto pelo Conselho Federal e por sete Conselhos Regionais de Psicologia em um período que se configurou como o auge do terrorismo do Estado, quando as perseguições se davam de uma forma totalmente naturalizada (2011 apud Correia & Dantas, 2017). Coimbra (2011) diz que a lei que criou os Conselhos de Psicologia, é considerada autoritária e centralizadora, pois não possibilitava a discussão com a categoria, além de suas primeiras composições de conselheiros terem sido feitas para colocar nessas instituições apoiadores do regime militar, estando contaminados por ideias autoritárias e alienantes desde seu cerne.

O ensino sobre as Pessoas com Deficiência nos cursos de Psicologia pertencia a áreas disciplinares chamadas “Psicologia do Excepcional” e “Psicologia Diferencial”, nessas disciplinas a deficiência era tratada do ponto de vista naturalizante e adaptativo, concebendo-a como um marcador do desvio. 

Na história do Sistema Conselhos de Psicologia houve quatro versões do Código de Ética Profissional do Psicólogo (CEPP), o primeiro foi publicado em 1975, a sua segunda edição veio logo em seguida, em 1979. Devido à emergência de novos campos de atividades, uma revisão do Código de Ética e, diferente do primeiro exemplar, ele passou por uma construção um pouco mais democrática. Quando a Psicologia completou 25 anos de regulamentação no Brasil, o Conselho Federal de Psicologia aprovou o seu terceiro Código de Ética Profissional do Psicólogo – Resolução CFP n° 02/1987, de 15 de agosto de 1987 (Amendola, 2014).

Debates progressistas ganharam cada vez mais campo na sociedade, as minorias sociais adquiriram importantes vitórias, suas pautas foram ouvidas e em 1999 o Conselho Federal de Psicologia publicou a Resolução CFP n.º 01/1999 que proíbe a realização de qualquer tipo de tratamentos de reversão de sexualidade, popularmente conhecida como “Cura Gay”.

Outro marco no combate a opressões ocorrido no Sistema Conselhos de Psicologia é a Resolução CFP n.º 18/2002, que estabelece normas de atuação para as(os) psicólogas(os) em relação ao preconceito e à discriminação racial, ao qual possuí também mais de 20 (vinte) anos desde sua publicação e ainda não é de conhecimento geral da categoria de sua existência e usabilidade em sua prática profissional.

Segundo Amendola (2014), em relação aos Códigos de Ética anteriores, o atual é bastante reduzido, tendo eliminado alguns artigos e alíneas e, por conseguinte, deixando de tratar alguns temas de forma mais específica e direta, para se tornar um instrumento com princípios mais gerais e amplos, para permitir a discussão e reflexão da profissão na totalidade, exercitando a autonomia profissional da(o) psicóloga(o), mas sem deixar de seguir os princípios éticos da profissão, a defesa dos direitos humanos e a garantia do acesso à saúde da população como um direito universal. 

A atual e vigente versão do Código de Ética Profissional do Psicólogo acompanha em seus princípios e orientações, dentre as legislações federais vigentes que possuem interface com o seu trabalho, como o Estatuto do Idoso e o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA). Em relação à garantia dos Direitos Humanos que o CEPP se embasa, no contexto da prática profissional da Psicologia, a deficiência deve ser compreendida como uma característica humana, que em algum momento da vida qualquer pessoa pode encontrar dificuldades para realizar atividades cotidianas devida a limitações impostas pelo mundo ao seu redor.

Método

Foi realizada uma pesquisa documental visando efetuar um levantamento histórico dos documentos de acesso público do Sistema Conselhos de Psicologia, referências técnicas, ações e deliberações nos Congressos Nacional de Psicologia (CNP) sobre as pessoas com deficiência e suas legislações para realização de análise dos documentos, acompanhando os períodos sobre as políticas públicas dos direitos das pessoas com deficiência em comparação com orientações as(aos) psicólogas(os) desde a criação do Sistema Conselhos de Psicologia, a partir da Lei n.º 5.766/71, até os dias atuais.

Os documentos tratados nesta pesquisa foram os cadernos de deliberações dos Congressos Nacional de Psicologia, organizado pelo Conselho Federal de Psicologia desde 1994. Nos CNPs são definidas as diretrizes e ações políticas que devem ser priorizadas para pela gestão eleita de forma democrática ao triênio subsequente. Hoje ele é um importante fórum democrático para o avanço em debates emergentes na Psicologia, em que a cada 3 (três) anos todas(os) psicólogas(os) brasileiras(os) tem a oportunidade de dialogar entre si, desde a base com os Congressos Regionais de Psicologia (COREP).

Os documentos consultados foram os cadernos de deliberações de todas as edições dos Congressos Nacional de Psicologia, dentre os anos de 1994 e 2022. Buscou-se observar as ações orientativas à categoria por parte do Conselho Federal de Psicologia referente às Políticas Públicas dos Direitos das Pessoas com Deficiência, identificando se houve consonância nas referências técnicas a categoria com as legislações voltadas à  garantia de direitos das pessoas com deficiência.

Resultados e discussão

Em sua primeira edição, realizada em Brasília, o principal foco foi organizar as estruturas de funcionamento dos Congressos Nacional de Psicologia, um fórum da categoria que nascia e viria a se transformar em um importante espaço democrático e deliberativo de toda da Psicologia brasileira. No I CNP (1994) foram discutidas diversas pautas trazidas pelos seus participantes, dentre elas a formação nos cursos de graduação em Psicologia, em que foi proposto que o currículo mínimo fosse incluído uma disciplina sobre as pessoas com deficiência. 

Dois anos depois ocorreu o II Congresso Nacional da Psicologia, em Belo Horizonte, não houve nenhuma deliberação em relação às pessoas com deficiência, entretanto no Congresso seguinte, o III Congresso Nacional de Psicologia, realizado em 1998 na cidade de Florianópolis, era cada vez mais consolidado o CNP como uma instância de deliberação da Psicologia brasileira. Nesta edição do congresso houve a deliberação que o Sistema Conselhos de Psicologia fomente a categoria a participação em fóruns de controle social, incluindo na dos Direitos das Pessoas com Deficiência, reflexo da década de 1990 em que foram criadas o Sistema Único de Saúde e o Sistema Único de Assistência Social (SUAS).

O IV CNP em 2001, foi proposto aprofundar o debate dos aspectos éticos e do compromisso social da Psicologia nas organizações, no sentido de interferir nos processos de exclusão segmentada (pretos, idosos, mulheres, pessoas com deficiência, etc.), e que os métodos psicológicos não fossem utilizados para reforçar preconceitos e estereótipos contra grupos minoritários. A partir desta edição todos os Congressos Nacional de Psicologia ocorreram na capital federal.

Na edição seguinte, o V CNP, realizado em 2004, não houve nenhuma menção às pessoas com deficiência em seu caderno de deliberações. A baixa incidência de debates no âmbito do Sistema Conselhos de Psicologia sobre as pessoas com deficiência seguiram ainda na 6ª (sexta) edição do Congresso Nacional de Psicologia, em 2007, mesmo após importantes marcos políticos, como a Declaração de Salamanca, a Convenção de Guatemala e a Convenção sobre os Direitos das Pessoas com Deficiência da ONU.

Em 2007, no VI CNP é deliberado que o Sistema Conselhos de Psicologia fomentasse a discussão, a partir de seus meios de comunicação, na comunidade acadêmica e em escolas de ensino básico, que fosse difundido conhecimento à população, sobre formas de cuidar e inserir pessoas com deficiência na educação. A inclusão no mercado de trabalho também foi enfatizada pela categoria no anseio de debater com a sociedade e com as organizações a inclusão no trabalho das pessoas com deficiência, contribuindo para a promoção profissional.

A partir VII do Congresso Nacional de Psicologia, em 2010, propostas ao Sistema Conselhos de Psicologia sobre as pessoas com deficiência começaram a ser mais presentes nos cadernos de deliberações. Encontra-se no caderno de deliberações a proposta de que o CFP e os CRPs garantam a acessibilidade arquitetônica para pessoas com deficiência e mobilidade reduzida em todas as sedes, seções e subsedes do Sistema Conselhos e também a adoção da Língua Brasileira de Sinais (Libras) e tecnologias de apoio a deficientes visuais em suas comunicações com a categoria e a sociedade.

Nesta edição do CNP, foi deliberado que o Sistema Conselhos de Psicologia deveria procurar se articular com diferentes políticas, organizações governamentais e não governamentais, para promover espaços de debate sobre a política de atendimento às pessoas com deficiência, e realizar pesquisa com profissionais que atuam no atendimento às pessoas com deficiência, construindo referências sobre a prática da Psicologia, por meio do Centro de Referências Técnicas em Psicologia e Políticas Públicas (CREPOP).

No VIII CNP (2013) foi deliberado que seria fomentado o desenvolvimento de critérios e procedimentos psicológicos para avaliação e atendimento à pessoa com deficiência, a partir do reconhecimento de suas necessidades específicas. Neste ano também foi publicada pelo Conselho Federal de Psicologia a nota técnica sobre a “Construção, Adaptação e Validação de Instrumentos para Pessoas com Deficiência” visando instrumentalizar a categoria para a necessidade de serem realizadas adaptações no processo de avaliação psicológica e o uso de instrumentos acessíveis para testagens psicométricas junto a pacientes com deficiência.

Logo nas três últimas edições foram as que mais tiveram deliberações relacionadas às pessoas com deficiência, no XIV CNP (2016), foi observada a necessidade de ampliar o debate, orientar e construir normativas sobre o atendimento psicológico para as pessoas com deficiência, destacando-se a abordagem à pessoa surda e com deficiência auditiva de modo que a comunicação e o sigilo terapêutico seja mantido, ao qual a qualificação de profissionais para a fluência em Libras é primordial para a garantia de acesso à saúde mental a essa população. 

Na 10ª edição do Congresso Nacional da Psicologia, realizada em 2019, a categoria deliberou que seja de compromisso do Sistema Conselhos de Psicologia a defesa do Estatuto da Criança e do Adolescente, a Lei Brasileira da Inclusão da Pessoa com Deficiência e o Estatuto do Idoso de modo a organizar eventos socioculturais de fortalecimento dos mesmos, articulando com movimentos sociais, estudantes, universidades, conselhos de direitos, parlamentares e outras instituições de modo a garantir a proteção social e promoção integral dos direitos de crianças, adolescentes, jovens e idosos, considerando a interseccionalidade étnico-racial, de gênero, diversidade sexual e classe.

No mesmo ano em que foi realizado do X Congresso Nacional de Psicologia (2019), o Conselho Regional de Psicologia de Santa Catarina (CRP-SC) criou um Grupo de Trabalho para a produção de um caderno voltado à categoria intitulado “Psicologia e Pessoas com Deficiência”. Sua perspectiva é apresentar o debate das políticas públicas dos direitos das pessoas com deficiência as(aos) psicólogas(os) a fim de realizar a desconstrução do pensamento biopsicossocial, embora não esteja de forma hegemônica, presente na atuação da Psicologia frente a essa população.

A última edição do Congresso Nacional de Psicologia teve uma característica completamente diferente dos demais CNPs da história, o mundo tinha sido atravessado por uma pandemia do coronavírus (COVID-19), uma doença infecciosa causada pelo vírus SARS-CoV-2 que matou milhares de pessoas.

Em 2022 foi proposto que o Sistema Conselhos de Psicologia discutisse e aprofundasse sua compreensão acerca do modelo biopsicossocial da deficiência e reflita sobre as barreiras existentes no Sistema, visando promover as práticas e transformações necessárias para a superação das barreiras físicas, arquitetônicas, tecnológicas, atitudinais e comunicacionais, de modo a garantir acessibilidade e inclusão e a fortalecer a autonomia, participação e protagonismo de psicólogas(os) com deficiência em seu conselho de classe.

Considerações finais

Ao longo dos mais de 50 anos de existência do Sistema Conselhos de Psicologia, é possível notar que periódicos sobre a atuação de psicólogas(os) com pessoas com deficiência começaram a surgir devido à influência das lutas sociais e marcos legislativos alcançados por essa população. A orientação à categoria profissional neste campo é considerada relativamente recente, com maior frequência nos últimos anos, em comparação com períodos anteriores em que as políticas públicas de direitos das pessoas com deficiência ainda não estavam consolidadas no país.

O perfil da categoria vem se modificando, ficando mais plural e representativa da sociedade brasileira, as(os) psicólogas(os) com deficiência estão surgindo e o Sistema Conselhos de Psicologia deve seguir as mudanças da profissão. Ampliar as ações, pesquisas e possibilitar para a categoria uma educação continuada sobre o ensino e a prática profissional em relação aos direitos das pessoas com deficiência, na perceptiva da inclusão de pessoas com deficiência, na construção de uma Psicologia Anticapacitista, devem ser os nortes da profissão em diante.

O protagonismo das(os) psicólogas(os) com deficiência na construção destas orientações a categoria deve ser levado a sua importância, compondo GTs e Plenários do CFP e dos CRPs para fomento constante de debates da atuação de psicólogas(os) com deficiência, além da atuação profissional com a pessoa com deficiência.

Por fim, destaco as ações ocorridas no meu regional, os esforços atuais nos debates de direitos de pessoas com deficiência na Psicologia paranaense estão se fazendo presentes,  a partir do XIV Plenário (2019-2022) do Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) foi criado o Núcleo de Pessoas com Deficiência, ao qual anos depois foi renomeado e transformado em comissão temática pelo plenário seguinte, atualmente como a Comissão Estadual de Psicologia Anticapacitista. A existência da comissão no CRP-PR está sendo um estopim de rodas de conversa, criando um espaço de debates a favor da conscientização do trabalho de psicólogas(os) nessa temática, além de da colaboração em trabalhos internos do regional do Paraná, com consultas técnicas, pareceres, auxiliando o trabalho de assessorias técnicas, de conselheiras(os) e da Comissão de Orientação e Fiscalização (COF).

Este autor esperança que na XII edição do Congresso Nacional de Psicologia, em 2025, as discussões referentes as pessoas com deficiência tenham um grande avanço, do micro até o macro. Na presente pesquisa foi observado que há muito que se deve debater dentro do Sistema Conselhos, nisso as pessoas profissionais de Psicologia devem participar e colocar suas propostas para constarem como rumos da profissão nos próximo triênio que se aproxima. 

Notas

[1] A menção primeira as profissionais de Psicologia visa dar o protagonismo as psicólogas brasileiras, como demonstra dados de censo atual realizado pelo CFP em que a categoria é constituída por cerca de 90% de mulheres, ver infográfico disponível em: http://www2.cfp.org.br/infografico/quantos-somos/

Referências

Amaral, L. A. (1996). Deficiência: Questões conceituais e alguns de seus desdobramentos. Cadernos de Psicologia, 2(1), 3-12. Recuperado de https://www.cadernosdepsicologia.org.br/index.php/cadernos/article/view/7

Amendola, M. F. (2014). História da construção do Código de Ética Profissional do Psicólogo. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 14(2), 660–685. Recuperado de https://doi.org/10.12957/epp.2014.12559

Bisol, C. A., Pegorini, N. N., & Valentini, C. B. (2017). Pensar a deficiência a partir dos modelos médico, social e pós-social. Cadernos de Pesquisa, 24(1), 87-100.

Correia, A. M. B., & Dantas, C. N. C. B. (2017). O fazer psicológico na ditadura civil militar. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(spe), 71–81. Recuperado de http://www.scielo.br/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1414-98932017000500071

Araujo, L. A. D., & Macieira da Costa Filho, W. (2017). A Lei 13.146/2015 (O Estatuto Da Pessoa Com Deficiência ou A Lei Brasileira de Inclusão da Pessoa Com Deficiência) e sua efetividade. Direito e Desenvolvimento, 7(13), 12–30. Recuperado de https://doi.org/10.26843/direitoedesenvolvimento.v7i13.298

Monteiro, C. M., Universidad, E., & Tres, I. (2016). Pessoa com deficiência: A história do passado ao presente. Educação e Pesquisa, 221–233.

Rodrigues, O. M. P. R., & Capellini, V. L. M. F. (2014). O direito da pessoa com deficiência: Marcos internacionais. Unesp, 1–13. Recuperado de https://acervodigital.unesp.br/bitstream/unesp/155248/1/unesp-nead_reei1_ee_d02_texto01.pdf

Santos, T. R., Alves, F. P., França, I. S. X. De, Coutinho, B. G., & Silva Júnior, W. R. Da. (2012). Políticas Públicas Direcionadas às Pessoas com Deficiência: Uma reflexão crítica. Revista Ágora, 1(15), 210–219.

Santos, W. (2016). Deficiência como restrição de participação social: Desafios para avaliação a partir da Lei Brasileira de Inclusão. Ciência & Saúde Coletiva, 21(10), 3007-3015.

Silva, R. B., & Carvalhaes, F. F. (2016). Psicologia e políticas públicas: Impasses e reinvenções. Psicologia & Sociedade, 28(2), 247-256.

Como citar esse texto

ABNT —  CERDAN, B. S. R. A psicologia brasileira e os direitos das pessoas com deficiência: uma análise documental das deliberações dos CNPS. CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-psicologia-brasileira-e-os-direitos-das-pessoas-com-deficiencia-uma-analise-documental-das-deliberacoes-dos-cnps/. Acesso em: __/__/___.

APA — Cerdan, B. S. R. (2024). A psicologia brasileira e os direitos das pessoas com deficiência: uma análise documental das deliberações dos CNPS. CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-psicologia-brasileira-e-os-direitos-das-pessoas-com-deficiencia-uma-analise-documental-das-deliberacoes-dos-cnps/