Revista CadernoS de PsicologiaS

A psicologia é Afetada, Antimanicomial e Feminista 1

Roberta C. Gobbi Baccarim
Doutoranda em Comunicação e Linguagens. Mestra em Psicologia Universidade Tuiuti do Paraná

Psicóloga (CRP-08/14434) — E-mail: roberta.gobbi@gmail.com
#Estilhaços

Considero todas(os/es) as(os/es) psicólogas(os/es) pessoas afetadas. Afetadas no melhor sentido espinosiano de pessoas que são atravessadas de afetos. Afetos que são não só a engrenagem da maquinaria desta profissão, mas o próprio combustível que nos move para uma atuação seriamente comprometida com a realidade social. Que rompe limites, nega a neutralidade positivista e busca, incessante, a superação das humilhações sociais de oprimidas(os/es) do Brasil. Indubitavelmente, toda psicologia é social, já apontava Freud.

É 2022, estamos enfrentando as carcaças de uma pandemia mal gerida. Estamos tristes, enlutadas(os/es) e, por que não, solitárias(os/es). As consequências desta pandemia não são “obras do destino” e a psicologia é sim um campo de contestações e críticas, pois, acima de tudo defendemos as vidas. Vidas precarizadas e vulnerabilizadas. De 2020 para cá nos deparamos com muitos posts nas redes sociais que davam dicas sobre “como estar bem na pandemia”. Como estar bem em uma pandemia? Que pergunta difícil que fizeram, e ainda fazem, para a psicologia neste momento.

Um estudo feito pela UERJ com 1460 pessoas em 23 estados mostrou que, durante o início da pandemia, os casos de depressão aumentaram 90% e as crises de ansiedade em 71%, com um aumento de 22% na comercialização do Rivotril. Qual é a marca da “loucura”? É o remedinho psiquiátrico? É o diagnóstico? Esta “loucura” muito estudada fragmentadamente pelas ciências psis tem gênese mesmo no próprio sujeito? O contexto é indestacável e imprescindível. Sim, a saúde mental é social, compartilhada, e também experienciada de maneira individual.

Sempre há um outro, uma relação, que se estabelece individualmente, coletivamente ou institucionalmente. Relações desiguais e muitas vezes perversas, que tornam a sociedade uma produtora de sofrimentos e injustiças, encabeçada pelo Estado, que é quem assina e promove tantas violências e violações. “VIOLENTO É O ESTADO”, gritam as marchas populares. É ele quem estigmatiza, discrimina, assim como legitima a insegurança social. E não há enfrentamento. Como diz Anselm Jappe[2] (2011, p. 8):

Basta insinuarmos a mínima objeção, por menor que seja (…) para nos sentirmos prestes a ir para prisão ou levar golpes de cassetetes ou, finalmente, recebermos a acusação de “resistente frente à força pública”. É até difícil imaginar como isso se dá quando se trata de alguém com a pele mais escura.

Ou quando se carrega o pesado rótulo de “louco(a)”, acrescento às reflexões do autor.

Uma vez, durante a pandemia, eu ouvi em aula: “o problema é que a questão do Coronavírus está sendo debatida no campo político, quando na verdade, ela é uma questão de saúde”. A SAÚDE É POLÍTICA. O fantasma de uma neutralidade neste campo é negligência e cristaliza a invisibilidade aos privilégios. QUEM PODE TER SAÚDE? O adoecimento é interseccional a fatores sociais que determinam a possibilidade de saúde e qualidade de vida, e abandonam pessoas ao descaso. E para falar de saúde, precisamos discutir políticas, assim como a nossa atuação e compromisso frente a elas. Ou seja, uma atuação criticamente afetada, posicionada contra políticas preguiçosas e desleixadas, contra o exercício vil da exclusão e, principalmente do abandono.

O (des)cuidado em saúde carrega uma longa história. Longe de definir a fundo tudo o que representa a luta antimanicomial, mas contextualizando que esta nasce no bojo da Reforma Sanitária, e foi o reflexo de movimento social intenso que buscava transformar não só as instituições de acolhimento, mas a forma como a “loucura” é compreendida. Propôs práticas inovadoras de acolhimentos e intervenções nos corpos ditos loucos. A Reforma Psiquiátrica, assim como a Sanitária, buscou implementar e garantir direitos através da criação de políticas públicas. Direitos que não são para todos, todas, quiçá todes, conforme escrito nos belíssimos textos com princípios igualitários da Carta dos Direitos Humanos ou da própria Constituição Federal. É pela via das políticas públicas que garantimos, ou privamos, acessos. Em uma sociedade desigual, uma política de igualdades, exclui. Ou seja, diretrizes que não considerem especificidades ou interseccionalidades na vulnerabilidade ao adoecimento, são insuficientes. Portanto, por ser afetada, o cuidado em psicologia é, sobretudo, antimanicomial. Defende a não violência[3] como a única forma admissível de intervenção, de Cuidado com C maiúsculo, como nos aponta José Ricardo Ayres[4].

Quando não executadas pela prática de um Cuidado que respeita a autonomia e promove espaços de legítimo encontro subjetivo, as ciências psis transformam-se em importantes aparatos de legitimação da lógica de normatização das práticas, corporalidades, subjetividades e até desejos. É esta lógica normatizadora que produz as instituições de cerceamento de liberdades, sejam manicômios ou prisões, delicadamente estudadas por Foucault. Mas podem dizer que estou atrasada e que não existem mais manicômios.

“Joga ela lá no hospital psiquiátrico, a “dotôra” disse que tá doida”.

Aliás, “Você é louca”. Que mulher nunca ouviu essa insinuação à sua saúde mental, carregada de machismo, estigmatizações e discriminações? Por estas que, para além de uma psicologia afetada e antimanicomial, defendo uma psicologia feminista, de mulheres, homens e não-bináries constituídas(os/es) pela alteridade, que se posicionam afetiva e criticamente frente à violência social que, historicamente, sempre foi mais cruel com as mulheres. Dados da ONU trazem que mulheres são tanto mais diagnosticadas com transtornos psiquiátricos como consomem mais remédios para tal. Todo determinismo biológico é ideológico. Não há uma predisposição feminina ao adoecimento. O corpo da mulher sempre foi contido, controlado, invadido e tido como sujo. Uma história de controle, de aprisionamentos e punições. Dos anticoncepcionais aos antidepressivos e cirurgias plásticas. Mulheres não são de vênus e homens de marte. Mulheres não são mais emocionais e homens mais racionais. Inexiste uma separação entre racional e emocional. Repetimos incessantemente mitos e mais mitos que ancoram a posição da mulher a estes espaços.

Para a sentença “mulher, você está louca”, talvez nossa melhor resposta seja um grito de: “SIM, EU TÔ!”

O mais sensato talvez seria perguntar: “MULHER, COMO NÃO FICAR LOUCA?”  

“Mulher, seja mãe!”. “Mulher, esteja sempre feliz.” “Homem, produza!”   “Homem, sustente.”

Mulheres foram internadas com diagnósticos de “gênero forte”, para ocultar violências domésticas, estupros e gravidezes. Estas mulheres foram APAGADAS quando institucionalizadas. Amparadas(os/es) pela teoria das interseccionalidades[5], que nos provoca a compreender as brutalidades em associação, bota no caldeirão da bruxa não só as violências de gêneros e sexualidades, mas pelo menos as de etnia e de um ódio inexplicável às(aos) pobres.

As pessoas com sexualidades dissidentes das normas sociais foram historicamente marcadas pela demonização dos seus desejos. Ou ainda, no desenvolvimento das ciências psis, marcadas por práticas violentas em seus corpos, como eletrochoques e até lobotomia.

Afirmam que não existem mais práticas psis que patologizem as não heterossexualidades. Mesmo? O que podemos dizer dos movimentos de “cura gay” dentro da nossa área? Muitos homens, mulheres e queers foram e ainda são não só patologizadas(os/es), como internadas(os/es) em comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos por conta deste “desvio”, como indicado por Goffman em sua teoria sobre o estigma. Estas duas — comunidades terapêuticas e hospitais psiquiátricos, para ficar bem claro — são os manicômios enfeitados, repaginados, quase como um pós extreme makeover[6], infelizmente não tão extreme, quiçá makeover, assim.

Uma psicologia sem memória é ideológica, pois eu não acredito em uma construção científica incapaz deste resgate e posicionamento sócio-histórico, a não ser nos termos ditos anteriormente. O contexto político atual engendrou e consolidou inestimáveis retrocessos, que continuam e começam invisibilizados pela precarização diária e cotidiana dos serviços de saúde física e mental. Uma psicologia afetada, antimanicomial e feminista, trabalhando de maneira micro e macropolítica pela desinstitucionalização e por práticas de Cuidado, busca potencializar a pessoa. PESSOA não SUJEITO. Sujeito não age, é sujeitado. Destruir a lógica manicomial é construir uma compreensão de acolhimento às pessoas que inclua autonomia e consentimento e que evite práticas de medicalização excessivas e isolamentos forçados.

As comunidades terapêuticas e clínicas psiquiátricas são inseridas na RAPS para o favorecimento político. Elas não refletem os modelos de acolhimento e tratamento instituídos pela luta antimanicomial. Para agravar, a formação em Psicologia tem se mostrado insuficiente nesta problematização e desideologização de novas(os) profissionais, sustentando um desconhecimento da RAPS e sua rede de funcionamento, legitimando, ainda hoje, argumentos que defendem a hospitalização e a internação compulsória. Vivemos em uma sociedade que adoece, e adoece cada vez mais, como demonstrou a pesquisa da UERJ.

Quantas vezes você já presenciou situações de mulheres conversando sobre os remédios que estão tomando para ansiedade? Quantas vezes você já assistiu ao mesmo em uma roda de homens? O adoecimento é machista e imposto às mulheres, e não há justiça. E não são só elas (nós) que sofrem(os), que fique claro que este não é um comentário excludente. O machismo é cruel também com homens. Sabemos disso, escutamos suas penúrias seja na clínica, nas escolas, nas empresas, no barzinho, dentro das nossas casas. Mas existem as práticas cotidianas, aquelas que nos destacam de um contexto embrutecido. A psicologia se faz nestas brechas, nas relações, nos posicionamentos diários que tomamos, ou mesmo nos que deixamos de tomar.

Precisamos de afeto para construir acolhimentos e práticas que considerem estes marcadores sociais que tanto (re)produzem sofrimento e danos à saúde mental, para não reproduzirmos uma psicologia elitista, culpabilizante, higienista, normatizante, que sustente uma visão que padece a potência das pessoas e não só sustente, mas impulsione ideologias. Por fim, precisamos de memória. Para nunca esquecer de que estamos em coletivos, defendendo vidas menos ameaçadas.

“Qual o prognóstico?

A Sociedade, ao contrário dos processos bioquímicos, não escapa à

influência humana. É pelo homem que a Sociedade chega ao ser. O

prognóstico está nas mãos daqueles que quiserem sacudir as raízes

contaminadas do edifício.”

(Fanon, 2008, p. 28)[7]

Notas

[1] Alerta: contém ironia e sarcasmo.

[2]  Jappe, A. (2011). Violência, mas pra quê?. São Paulo: Hedra.

[3] Violência que se institui não somente nas práticas manicomiais, mas também na maneira como a loucura é percebida, na sensibilidade para a promoção e respeito à autonomia das pessoas que necessitam de cuidados e acompanhamento nas áreas psis. Não basta excluir a eletroconvulsoterapia, as camisas de força, os isolamentos e choques térmicos para levantar a bandeira da não violência.

[4] Ayres, J. R. C. M. (2004). Cuidado e reconstrução das práticas de saúde. Interface Comunic., Saúde, Educ., 8(14), 73-92.

[5] Viés proposto por Kimberlé Crenshaw que inicialmente abordou as violências combinadas vivenciadas por mulheres negras.

[6] Programa de televisão famoso por fazer uma mudança radical na aparência de alguém, considerado pelas(os) especialistas do programa como feia(o/e) ou mal vestida(o/e).

[7] Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. (R. da Silveira, trad.). Salvador: EDUFBA, 2008.

Como citar esse texto

APA — Baccarim, R. C. G. (2022). A psicologia é afetada, antimanicomial e feminista. CadernoS de PsicologiaS, 3. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-psicologia-e-afetada-antimanicomial-e-feminista/

ABNT — BACCARIM, R. G. G. A psicologia é afetada, antimanicomial e feminista. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 3, 2022. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-psicologia-e-afetada-antimanicomial-e-feminista/. Acesso em: __/__/____.