Revista CadernoS de PsicologiaS

A Psiconefrologia no enfrentamento à Covid-19: reflexões e (re)construções

Debora Berger Schmidt
Fundação Pró-Renal. E-mail: psicologia@pro-renal.org.br

Psicóloga (CRP-08/16065)
Enio Ricardo Macedo Vilhena
Fundação Pró-Renal. E-mail: psicologia@pro-renal.org.br

Psicólogo (CRP-08/31721)
Iris Miyake Okumura
Fundação Pró-Renal. E-mail: psicologia@pro-renal.org.br

Psicóloga (CRP-08/19803)
Luana Rayana de Santi Walter
Fundação Pró-Renal. E-mail: psicologia@pro-renal.org.br

Psicóloga (CRP-08/27840)
Ludiana Cardozo Rodrigues
Fundação Pró-Renal. E-mail: psicologia@pro-renal.org.br

Psicóloga (CRP-08/14941)
#Relatos_de_Experiência

Resumo: Objetivou-se relatar a experiência do Setor de Psicologia de uma organização beneficente na área da Nefrologia no início da pandemia de COVID-19. O trabalho assistencial no contexto da Psiconefrologia é majoritariamente realizado concomitantemente ao tratamento hemodialítico, à beira de leito. Com o reporte dos primeiros casos de COVID-19, adotou-se o atendimento clínico remoto em respeito às medidas preventivas contra a disseminação do vírus. Mesmo com essa adequação, o Setor de Psicologia teve suas possibilidades interventivas limitadas tendo em vista o perfil dos pacientes atendidos, idosos com dificuldade de manejo e/ou acesso a tecnologias e vulnerabilidade social. Assim, corroborando com evidências na literatura, foram propostas ações em saúde mental direcionadas aos profissionais de linha de frente, buscando associar com as atribuições do Psicólogo da Saúde de forma a acolher e fortalecer as estratégias de enfrentamento. Isso levou à melhor inte(g)ração da equipe e coping frente à situação estressora.

Palavras-chave: Psicologia Hospitalar; Psiconefrologia; COVID-19; Coping; Psicologia da Saúde.

Psychonephrology in the fight against Covid-19: reflections and (re)constructions

Abstract: The objective was to report the experience of the Psychology Sector of charity institution in the area of Nephrology at the beginning of the COVID-19 pandemic. The assistance work in the context of Psychonephrology is mostly performed concurrently with hemodialysis treatment, at bedside. With the reporting of the first cases of COVID-19, remote clinical care was adopted with respect to preventive measures against the spread of the virus. Even with this adaptation, the Psychology Sector had limited intervention possibilities in view of the profile of elderly patients, with difficulty in handling and / or accessing technologies and social vulnerability. Thus, corroborating with evidence in the literature, mental health actions were proposed for frontline professionals, seeking to associate with the attributions of the Health Psychologist in order to shelter and strengthen coping strategies. This led to better team interaction/ integration and coping with a stressful situation.

Keywords: Hospital Psychology; Psychonephrology; COVID-19; Coping; Health Psychology.

Psiconefrología en la lucha contra Covid-19: reflexiones y (re)construcciones

Resumen: El objetivo fue reportar la experiencia del Sector de Psicología de una organización benéfica en el área de Nefrología al inicio de la pandemia COVID-19. El trabajo asistencial en el contexto de la Psiconefrología se realiza mayoritariamente de forma concurrente con el tratamiento de hemodiálisis, a pie de cama. Con la notificación de los primeros casos de COVID-19, se adoptó la atención clínica remota con respecto a las medidas preventivas contra la propagación del virus. Aún con esta adecuación, el Sector de Psicología tenía limitadas posibilidades de intervención ante el perfil de los pacientes ancianos, con dificultad en el manejo y / o acceso a tecnologías y vulnerabilidad social. Así, corroborando con evidencia en la literatura, se propusieron acciones de salud mental para profesionales de línea de frente, buscando asociarse con las atribuciones del Psicólogo de la Salud con el fin de acoger y fortalecer las estrategias de afrontamiento. Esto llevó a una mejor inte(g)racción en equipo y coping ante una situación estresante.

Palabras clave: Psicología Hospitalaria; Psiconefrología; COVID-19; Afrontamiento; Psicología de la Salud.

Introdução

O Setor de Psicologia existe na Fundação Pró-Renal desde o ano 2000 e atua nas esferas da assistência, pesquisa e prevenção, consolidando-se como uma prática da Psicologia da Saúde. Diante do impacto multidimensional provocado pelo adoecimento e tratamento, as atividades assistenciais do Setor sempre tiveram como foco central as intervenções terapêuticas de reforçar as estratégias de enfrentamento de pacientes e familiares, representando parte fundamental na condução do cuidado integral oferecido na instituição. Os atendimentos psicoterapêuticos individuais são realizados nas diferentes modalidades terapêuticas do doente renal: tratamento conservador, diálise peritoneal e hemodiálise. As duas primeiras são conduzidas em fluxo ambulatorial, enquanto que a prática na hemodiálise acontece a beira do leito.

A Fundação Pró-Renal precisou adaptar sua dinâmica tão logo a pandemia de COVID-19 chegou ao país. A partir do dia 23 de março, profissões assistenciais e a equipe administrativa passaram a atuar em home office com a justificativa de proteção e cuidado à vida de colaboradores e pacientes. Depois de aproximadamente 30 dias, a instituição promoveu o retorno das atividades presenciais do Setor de Psicologia, com recomendações de distanciamento social, intensificação de procedimentos de higienização e o uso de equipamentos de proteção individual (EPIs), que precisaram ser implementados à prática psicológica. Esse cenário foi somado aos obstáculos já comuns ao setting terapêutico do contexto hemodialítico, tais como: os ruídos, a limitação de espaço físico e as interrupções pelas intervenções clínicas (monitoramento de dados vitais e administração de medicamentos).

O período dedicado ao home office possibilitou repensar as práticas do Setor de Psicologia e o quão essencial é a atuação da(o) psicóloga(o) neste contexto. Sobretudo em um momento que ainda não se pensava em outras modalidades de intervenções como exequíveis, além do tradicional atendimento presencial. Reflexo de alguns aspectos que Grincenkov (2020) considera como deficitários na formação da(o) psicóloga(o): a (in)capacidade de construir novas modalidades de tratamentos e o despreparo para intervenções em situações de emergências e desastres.

A autora reforça a importância da Psicologia Hospitalar se distanciar das amarras da tradicional Psicologia clínica (que muitas vezes ampara a primeira), de modo a permitir o reconhecimento de um setting de emergência ampliado. Nesse ínterim, cabe à(ao) psicóloga(o) considerar sua prática na tríade paciente-equipe-família.

A pandemia trouxe dois focos importantes para a atuação da Psiconefrologia: pacientes e profissionais da saúde. Além da preocupação em atender às demandas psicológico-clínicas, observou-se a exaltação midiática e em redes sociais sobre os profissionais denominados linha de frente. De um lado as divulgações sobre os sintomas e morbimortalidade do público considerado grupo de risco, em que doentes renais crônicos estão inseridos (Sociedade Brasileira de Nefrologia, 2020, 26 de março); de outro, a dualidade vivida pelos profissionais entre o heroísmo e as pressões do contexto de trabalho.

A necessidade de acolher as demandas emergentes e específicas a um cenário de emergência sanitária, desencadeou na reformulação das práticas da Psicologia na instituição, que ainda dentro da amplitude dos delineamentos e atribuições da Psicologia da Saúde, ganhou novos focos de atenção, especialmente para ações de saúde mental dos colaboradores  (Conselho Regional de Psicologia [CFP], 2016). 

Posto isso, o objetivo deste relato de experiência foi discorrer sobre as (re)construções e adequações das intervenções e dinâmica de um setor de Psicologia da Saúde, o Setor de Psicologia da Fundação Pró-Renal, diante das situações postas pela pandemia de COVID-19.

Referencial teórico

Segundo o United Nations Development Programme (UNDP, 2020), o novo coronavírus representa mais que uma crise sanitária. Dentre os males que atingiram a humanidade no último século, a pandemia causou comoção devido ao impacto nos âmbitos social, econômico, político, comportamental, educacional e entre outros. As rupturas e transformações tão específicas ao contexto de emergência sanitária impactam sobremaneira a saúde mental da população.

Em movimento de solidarização à quarentena e ao trabalho em home office, houve a flexibilização e incentivo do uso de plataformas on-line, viabilizando a oferta de atendimento psicológico para pacientes e familiares afetados pela pandemia. O Conselho Federal de Psicologia publicou, em 26 de março de 2020, a Resolução 04/2020 (CFP, 2020) que regulamenta os serviços psicológicos prestados por meios de tecnologia da informação e da comunicação durante o período de pandemia do COVID-19. De modo a permitir que a(o) psicóloga(o) utilize o teleatendimento como recurso, mesmo sem receber a confirmação da Plataforma e-Psi para iniciar o trabalho remoto.

Duan e Zhu (2020) referem que diante de quadros infecciosos é recomendável o afastamento de profissionais não essenciais, como psiquiatras e psicólogas (os). Cabe aos profissionais da linha de frente oferecer acolhimento e intervenções em saúde mental aos pacientes, além de suas atribuições já esperadas. Além disso, os autores recomendam que as ações da Psicologia priorizem as profissões que estão na linha de frente no combate ao novo Coronavírus.

As(os) trabalhadoras(es) assistenciais enfrentam sobrecarga significativa pela intensificação das demandas, e expostas(os) ao sofrimento dos pacientes necessitam também manejar as próprias questões subjetivas em meio ao cenário caótico. Ainda, Duan e Zhu (2020) reforçam que emergências em saúde pública podem acarretar o prolongamento de sintomas de estresse pós traumático, mesmo com o término do evento estressor.

O manual de diretrizes para atendimento psicológico em tempos de pandemia de COVID-19, elaborado por Sá-Serafim, do Bú e Lima-Nunes (2020), corrobora com tais afirmações ao recomendar a suspensão temporária das práticas presenciais e sua substituição para atendimento em ambientes virtuais como medida de segurança para a díade paciente-psicoterapeuta.

Método

Contexto institucional

A Fundação Pró-Renal se caracteriza como Organização da Sociedade Civil, localizada na cidade de Curitiba-PR desde 1984, e tem como missão pesquisar, educar as pessoas e cuidar do paciente renal (Fundação Pró-Renal, 2020). Para isso, dispõe de uma equipe multiprofissional composta por Médicas(os), Enfermeiras(os), Psicólogas(os), Farmacêuticas (os), Nutricionistas, Dentistas, Podólogas e Assistentes sociais.

Atualmente, o Setor de Psicologia é formado por cinco psicólogas(os) em atividades próprias da Psicologia da Saúde e Psicologia Hospitalar, em carga horária semanal variando de 30 a 36 horas. Realizam-se atividades distribuídas em educação, pesquisa, prevenção e assistência (psicoterapia e avaliação psicológica) aos pacientes atendidos pela instituição em ambulatório e nas clínicas de diálise.

Anterior à pandemia, o Setor contava com quatro estagiárias na modalidade de estágio obrigatório, que sob supervisão, auxiliavam no acompanhamento psicoterapêutico de pacientes em hemodiálise. Os estágios na instituição foram suspensos desde março de 2020 e as atividades do Setor de Psicologia tiveram que ser reorganizadas com objetivo de atender às demandas já existentes e as impostas pela pandemia.

Procedimento

Trata-se de um estudo descritivo, tipo relato de experiência, elaborado a partir da vivência do Setor de Psicologia da Fundação Pró-Renal na sua adequação e reformulação diante da pandemia de COVID-19. O presente relato compreende o período de março a julho de 2020, sendo que foi realizado um registro diário no primeiro mês de trabalho exclusivo em home office. A apresentação foi organizada conforme a cronologia dos acontecimentos entremeada pelas reflexões e adaptação do Setor. 

Resultados e discussão

Para garantir a segurança de pacientes e colaboradores, a Fundação Pró-Renal adotou medidas preventivas em relação à disseminação da doença. Ao longo do mês de março foram emitidos comunicados sobre a possibilidade de interrupção de atividades, cuja confirmação se deu junto ao Decreto Municipal 230 de 30 de junho de 2020 (Curitiba, 2020).

O início das atividades remotas ocorreu no dia 23 de março. O Setor de Psicologia manteve o trabalho remoto por 28 dias corridos, agregando estratégias para atendimento às demandas das clínicas e maior tempo de dedicação para a reorganização das atividades de pesquisa e extensão.

Devido ao contexto emergencial, a transição aconteceu de forma rápida e com poucas horas de preparação para a mudança de modalidade de trabalho. A maioria dos pacientes não puderam ser abordados presencialmente para que fossem informados sobre a situação. As explicações do fluxo de atividades foram mediadas pelos canais de comunicação externa da instituição (redes sociais) e por repasses verbais da equipe essencial. As(os) Médicas(os), Enfermeiras(os) e Técnicas(os) de Enfermagem ficaram responsáveis por explicar a ausência de parte da equipe no serviço de Terapia Renal Substitutiva (Diálise e Hemodiálise), e as secretarias e demais funcionárias(os) da Instituição (inclusa a equipe multiprofissional) orientavam por telefone os pacientes sobre a suspensão dos atendimentos ambulatoriais, sem retorno previsto. As atividades de estágio da Psicologia também foram suspensas, conforme indicação da portaria nº 343 do Ministério da Educação de 17 de março de 2020 que suspendeu as práticas profissionais de estágio (Brasil, 2020).

O trabalho em home office seguiu duas vias principais: o contato telefônico com pacientes e familiares, colocando o atendimento on-line à disposição; e a possibilidade de acolhimento à equipe de saúde – considerada linha de frente no cuidado.

O protocolo de atendimento do Setor de Psicologia também foi adequado. Ao oferecer o teleatendimento ou atender às demandas enviadas pela equipe multidisciplinar, observou-se desafios, como: a falta de recursos materiais para subsidiar as intervenções (telefone, sinal de internet, ambiente propício para o atendimento, etc) e/ou dificuldades específicas dessa parcela da população que são decorrentes da doença e do tratamento (déficits auditivos, visuais e/ou cognitivos). As estratégias encontradas contemplam o compartilhamento dos recursos disponíveis na instituição (como aparelhos celulares), otimização do sinal de internet para oferecer alternativas acessíveis aos pacientes e o auxílio da equipe para manejo dos materiais eletrônicos, bem como o recrutamento da rede de apoio familiar e/ou social dos pacientes, que foi orientada sobre possíveis alterações de humor e comportamento dos pacientes, deixando-os cientes da possibilidade de intervenção presencial em casos graves.

Um grupo de mensagens on-line foi criado pela equipe interdisciplinar para facilitar a comunicação junto aos pacientes e familiares. Nele, foram compartilhados informativos sobre disponibilidade de atendimento e materiais de orientação sobre os impactos psicológicos em tempos de pandemia. Com o aumento de casos suspeitos e confirmados, esse mesmo canal de comunicação serviu para orientação dos novos fluxos das clínicas, tais como: a alteração na rota de entrada e saída de pacientes, os horários de lanches, as estratégias de isolamento e as orientações sobre higienização.

O acolhimento à equipe de saúde foi pensado a partir da leitura científica, articulada à Saúde Mental e COVID-19. Nesse período as revistas científicas iniciavam as publicações de trabalhos de outros países que enfrentavam o pico da pandemia e os estudos referiam a necessidade de especial atenção à saúde mental da equipe de saúde (Lai et al, 2020).

Sá-Serafim et al. (2020) corroboram que além de pacientes e familiares diagnosticados com COVID-19, outros grupos devem receber atendimento da Psicologia Hospitalar em tempos de pandemia. Sobretudo pessoas sem diagnóstico de COVID-19, mas com demandas psicológicas devido à hospitalização, adoecimento e tratamento (onde se enquadram o grupo de pacientes já atendidos pelo Setor de Psicologia), e ainda, trabalhadoras (es) da saúde.

Diante disso, foi importante considerar o posicionamento ético pregresso à pandemia.  O Setor de Psicologia recebeu encaminhamentos de gestores para atendimento psicoterapêutico aos funcionários, além de demandas e buscas diretas dos colaboradores com o pedido de auxílio e acompanhamento psicológico. A conduta adotada foi oferecer acolhimento e encaminhar para a psicoterapia de profissionais não vinculados à Instituição, visto que conforme o artigo 2º do Código de Ética Profissional da(o) Psicóloga(o) (CFP, 2005), o vínculo estabelecido nas relações de trabalho pode interferir negativamente no processo psicoterapêutico. Da mesma forma, houve o posicionamento do Setor em respeitar as atribuições firmadas no contrato entre as(o) Psicólogas(o) e a instituição, de modo que as demandas associadas à Psicologia Organizacional não são absorvidas.

Conforme a descrição da especialidade da Psicologia da Saúde, considera-se que este profissional “desenvolve ações de promoção da saúde, prevenção de doenças e vigilância em saúde junto a usuários, profissionais de saúde e ambiente institucional, colaborando em processos de negociação e fomento à participação social e de articulação de redes de atenção à saúde” (CFP, 2016, p. 2). Posto isso, em momentos pontuais, o Setor organizou atividades de acolhimento e psicoeducação sobre a Saúde Mental. Porém, é interessante que diante das necessidades específicas impostas pela pandemia e do afastamento físico da equipe, as demandas de saúde mental, em alguns momentos, pareciam represadas no cenário emergente da aquisição de novos hábitos, treinamentos, rotinas e protocolos.

Ainda no período de home office, foram realizadas visitas pontuais às clínicas de hemodiálise para verificação de demandas e abordagem aos pacientes que não respondiam às tentativas de teleatendimento. Observou-se reações diversificadas dos trabalhadores em relação à Pandemia. Alguns sentiam-se mais expostos que outros. As(os) Técnicas(os) de Enfermagem foram especialmente afetadas(os) pelo estresse.

Realizou-se uma roda de conversa sobre sentimentos e sensações relacionados ao período pandêmico. Os temas mais presentes entre Tec. de Enfermagem foram: o medo de não cumprir aos protocolos com a devida eficácia, o receio em contaminar-se e colocar a família em risco pela forte probabilidade de contágio. Infere-se que as reações diferenciadas são expressões da subjetividade pessoal de cada funcionária(o), somada a sua representação construída sobre a Psicologia. 

Em outros momentos, obteve-se relatos de afirmação sobre o bem-estar da equipe, contudo, eles se contrapõem-se às alterações de comportamento, como: maior agitação e necessidade de controle, queixa de cansaço físico e emocional pelo uso dos equipamentos de proteção. Infere-se que a reprodução do discurso de bem-estar atue como mecanismo de compensação em resposta ao evento estressor na tentativa de equilibrar os meios subjetivo, interno e social externo. Saúde psicológica se encontra no pólo oposto do distúrbio emocional (Ziegler, 2003), portanto, afirmar bem-estar significa refutar qualquer tipo de desequilíbrio ou ameaça. Consoante à teoria adleriana, o fortalecimento do meio social parece garantir um ganho pessoal por abranger o bem-estar de todos (Ziegler, 2003).

Ao considerar os estudos que apontavam para a vulnerabilidade da saúde mental dos trabalhadores que compunham a linha de frente de combate ao COVID-19, o Setor de Psicologia percebeu a necessidade de intervir e auxiliar a equipe a enfrentar a situação estressora. Buscou-se então compreender os recursos psíquicos utilizados nesse período e para tal foi elaborado um questionário Google Forms, contendo o Inventário de Estratégias de Coping de Folkman e Lazarus, traduzido por Savóia, Sanata e Mejias (1996). O inventário tem como objetivo compreender as estratégias de enfrentamento adotadas pelas pessoas quando se confrontam com situações estressantes, ou seja, em situações julgadas como desafiadoras ou ameaçadoras. A escolha deste inventário se justificou pela possibilidade de avaliar os pensamentos e ações que os profissionais utilizaram para lidar com demandas internas e externas causadas pela pandemia, evidenciando fatores protetivos e fatores de risco para a saúde mental do trabalhador e também para os demais envolvidos no processo de cuidar, uma vez que as reações a um evento estressor podem impactar em vários elementos para além do próprio sujeito, como pacientes, colegas de trabalho, familiares, dentre outros.

Os resultados obtidos através do inventário serão publicados assim que finalizado o acompanhamento longitudinal que o Setor tem realizado. Não contempla aos objetivos deste relato de experiência a apresentação dos dados da pesquisa nos seus pormenores, mas é interessante compartilhar que foram identificados padrões de enfrentamento entre os participantes, os quais estavam classificados entre profissão e clínica de atuação.

Feito isto, outro questionamento: como acolher uma equipe de aproximadamente 100 pessoas, sem que isso interferisse na sua rotina de trabalho cujo fluxo tem se intensificado? O ideal seriam atividades individuais ou grupais? Como planejar ações grupais quando as recomendações de aglomerações definitivamente não são recomendadas? A alternativa para foi organizar pequenos grupos de psicoeducação para alguns profissionais que pudessem disseminar as intervenções em outros funcionários, bem como pensar em ações remotas que atingissem todos os funcionários.

Foram elaboradas duas ações: a produção de um vídeo com orientações sobre estratégias de enfrentamento e reações diante do estresse, acessível a todas(os) funcionárias (os), e a segunda foi a programação de encontros com 5 grupos pequenos (aproximadamente 5 pessoas em média) de funcionárias(os) da linha de frente, especialmente Enfermeiras(os) e Assistente Administrativas(os). Neste último, a estratégia foi utilizar a psicoeducação para abordar temas relacionados ao estresse, estratégias de resolução de conflitos e comunicação, acolhimento e técnicas de relaxamento em situações de crise, totalizando três encontros com cada grupo que, por sua vez, poderia auxiliar os demais membros da equipe no gerenciamento de crise. Sá-Serafim et. al (2020) reforçam que no contexto da pandemia a psicoeducação é uma das possibilidades de atuação da(o) psicóloga(o) porque é uma forma de instrumentalizar os indivíduos a lidarem com sentimentos e sensações associados ao COVID-19.

Abordar temas como a resolução de problemas e estratégias de enfrentamento associados à situação de estresse causada pela pandemia, buscou gerar reflexões nos participantes sobre suas habilidades e potencialidades, corroborando com Sá-Serafim et. al (2020), que afirmam sobre a relevância das pessoas reconhecerem os pontos protetores da sua saúde mental, bem como aqueles promotores da saúde mental de uma equipe, a qual precisava se ajustar a uma nova rotina de cuidados. Sá-Serafim et. al (2020) ressaltam que outro tema importante é instrumentalizar a equipe com técnicas de relaxamento ou meditação para auxiliar no manejo com ansiedade, e esse tema também foi proposto ao grupo, não somente com vivências, mas também com a distribuição de materiais que pudessem ser compartilhados com outros membros da equipe.

Abordar sobre comunicação assertiva teve como objetivo conduzir a reflexão sobre a importância de solidificar uma rede de suporte entre as (os) funcionárias (os), considerando a comunicação o ponto-chave para que a equipe reconheça, entre os seus membros, o alento e o acolhimento tão necessários nesse momento. As atuações confluem aos temas levantados pela literatura porque reforçam a relevância das(os) funcionários(as) em reconhecerem pessoas dispostas a acolher e suprir algumas necessidades, sejam de ordem subjetivas (apoio e alento), ou práticas, como orientações e instrumentos de trabalho (Sá-Serafim et al, 2020; Inter-Agency Standing Committee – IASC. Reference group for Mental Health and Psychosocial Support in Emergency Settings, 2020).

No final de Julho, quando os casos suspeitos e/ou confirmados foram ganhando representatividade expressiva nas clínicas, pacientes e familiares passaram a demonstrar de forma enfática as suas preocupações e questionaram condutas de cuidado e segurança da instituição. O Setor de Psicologia compreendeu o seu papel de mediação e propôs, por meio da produção de um material gráfico (folheto informativo), explicar aos pacientes e familiares as medidas tomadas pela equipe de saúde na garantia de cuidado e segurança de todos. Foram as(os) próprias(os) psicólogas(os) que distribuíram este material, em espaço de acolhimento e orientação sobre novos fluxos, reforçando o compromisso mútuo (pacientes, familiares e equipe) na garantia da segurança de todos.

Considerações finais

O COVID-19 produz um cenário de incertezas que requer constantes adequações de rotinas, fluxos e protocolos. O teleatendimento tem sido amplamente utilizado para atender às demandas de saúde mental. É importante ressaltar que essa modalidade de atendimento possui desafios, porque exige recursos materiais cuja falta pode reforçar as lacunas sociais e econômicas já postas neste contexto, tornando inacessível o atendimento à uma parcela da população mais vulnerável. Além disso, déficits auditivo, visual e/ou cognitivos podem interferir no manuseio das tecnologias. Considera-se que o atendimento on-line pode ser uma estratégia de caráter emergencial, mas que em algumas circunstâncias não substitui o atendimento presencial. Portanto, quando utilizada, é importante que se adotem alternativas para minimizar os desafios, ampliando o acesso à apoios e aparelhos, inclusive adaptados, às necessidades dos pacientes.

No momento em que parte da equipe multiprofissional passou a realizar trabalho em home office, as adequações e comunicados estiveram sob a responsabilidade de todos, especialmente dos membros que permaneceram presencialmente (Enfermagem, Medicina e Setor Administrativo). O suporte da equipe foi importante, mesmo porque o Setor de Psicologia buscou realizar contatos diários com a Enfermagem para investigar demandas e pedidos de consulta.

A atenção direcionada à saúde mental dos trabalhadores e as propostas de intervenção em pequenos grupos produziram momentos de reflexão, acolhimento e trocas de experiências. Não foram ofertados atendimentos psicológicos individuais aos colaboradores. Contudo, o efeito terapêutico das trocas no grupo trouxe elementos importantes para o fortalecimento da rede de apoio e motivação no ambiente de trabalho. As ações psicoeducativas se mostraram ferramentas de intervenção eficientes em situações de crise.

Os momentos em grupo foram importantes para observar a forma como os profissionais estavam lidando com a pandemia. Por um lado, ouviam-se discursos de cansaço, saudades da família e a intensa preocupação em realizar os protocolos de forma eficaz para garantir a segurança e bem-estar de todos. Enquanto por outro lado, observou-se trabalhadores que não se sentiam em risco. O tipo de atividade exercida parece ter influenciado sobremaneira a forma de lidar com o COVID-19. De modo geral, as (os) Técnicas (os) de Enfermagem manifestaram mais conteúdos de estresse e preocupação.

Por fim, ressalta-se que o COVID-19 trouxe às(os) Psicólogas(os) da Instituição momentos de reflexão e ressignificação do seu próprio trabalho e, em última instância, do papel da própria Psicologia. Tal qual um sujeito que precisa se redescobrir quando enfrenta o processo de adoecimento e tratamento, foi preciso flexibilidade e resiliência para rever os protocolos do Setor, abrir mão de processos e rotinas conquistadas às custas de investimento e estudos, para garantir a sobrevivência mínima do acesso à saúde mental à população atendida por meio do teleatendimento – uma modalidade que nunca fora registrada nesse contexto.

Esse período tem sido marcado pela necessidade do constante reforço com a equipe de saúde (uma questão que já parecia superada) sobre a importância de dedicar energias à saúde mental e valorização da subjetividade nesse momento em que o controle de sintomas físicos e as necessidades práticas de protocolos se sobrepõem. Com isso, concluímos que a Psicologia da Saúde deve seguir vigilante para a garantia do espaço da subjetividade, especialmente em momentos de crise, se constituindo como uma atuação – se não essencial, de grande relevância, para a equipe, pacientes e familiares na área da Nefrologia.

Referências

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Como citar esse texto

APA – Schmidt, D. B., Vilhena, E. R. M., Okumura, I. M., Walter, L. R. de S., & Rodrigues, L. C. (2020). A Psiconefrologia no enfrentamento à Covid-19: reflexões e (re)construções. CadernoS de PsicologiaS, 1. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-psiconefrologia-no-enfrentamento-a-covid-19-reflexoes-e-reconstrucoes.

ABNT– SCHMIDT, D. B. et al. A Psiconefrologia no enfrentamento à Covid-19: reflexões e (re)construções. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-psiconefrologia-no-enfrentamento-a-covid-19-reflexoes-e-reconstrucoes>. Acesso em: __/__/____ .