Deixamos aqui e trazemos conosco reflexões da transformação subjetiva que o pensar e o estar em coletivo nos proporciona. Dessa forma, rompendo com o que constantemente nos é imposto na academia, que nos submete a um processo formativo e, posteriormente, uma prática profissional centrada na individualidade, como reflexo da ciência que produz os moldes da colonialidade. Se opor a isso, e vivenciar a psicologia tendo esse olhar vem nos transformando profundamente, revelando a potência da coletividade que nos lembra Sued Nunes na música “Povoada” que embora sejamos um ser individual, não andamos só.
No decorrer de nossa formação nos deparamos com uma estrutura que não permite nos reconhecermos na universidade, isso se expressa tanto pela grade curricular, quanto pela distribuição de docentes e organização de turnos que impossibilitam a conciliação do trabalho com os estudos. Neste sentido, a academia se mantém como um espaço no qual sentimos na pele os efeitos da colonialidade. Sentimos essa sistematização do racismo estrutural, no qual vemos uma gigantesca desproporção no número de docentes negros, negras e indígenas. É também refletido pela grade curricular que perpetua o epistemicídio que, como nos mostra Sueli Carneiro, é a total negação, invisibilização e precarização da intelectualidade de quem foge dos padrões hegemônicos da branquitude. Assim, como vemos com Geni Núñez (2022), a imposição de uma forma única de ser, pensar, sentir e se relacionar provoca o sofrimento, sendo esse fruto da colonialidade que impõe uma lógica de monuculturas, e isso se reflete na forma como a universidade nos impõe um não lugar.
Neste sentido, compreendemos necessário descolonizar essa concepção hegemônica de psicologia que, refletindo a colonialidade do saber, como traz Aníbal Quijano, impõe uma única forma de pensar embranquecida e individualizante. Sendo assim, compor o projeto de extensão “Ser Mulher, ser Território próprio”: Articulações entre a Coletiva Mulheres da Quebrada – BH, a Psicologia Comunitária e o Feminismo Negro proporcionou outro horizonte, ancorado na coletividade como ferramenta de potencialização. Essa experiência vem reconfigurando nosso modo de ocupar a psicologia, e para além disso, nosso modo de estar nesse mundo. Nos interpelando a romper com a noção extrativista de ciência psicológica, supostamente dita como neutra e impessoal, e com o pacto colonial cisheteronormativo e racista, produzindo uma práxis que pela construção coletiva pense as demandas das maiorias populares, impulsionando seu processo de emancipação (Martín-Baró, [1988]1990).
Pensando nisso, é importante situar que a ColetivA Mulheres da Quebrada, que nos proporciona a oportunidade de construir essa práxis ancorada na coletividade, foi fundada por quatro mulheres negras, sendo elas Scheyla Bacelar, Simone Sigale, Sandra Sawilza e Lídia Vieira. São mulheres que cresceram no Aglomerado da Serra, em Belo Horizonte, e se tornaram lideranças comunitárias, educadoras artísticas e culturais. Atualmente, apenas Lídia não atua na coletiva, entretanto, um dos muitos aprendizados que temos durante o projeto é, como demonstra Jurema Werneck (2009), que “nossos passos vêm de longe”, seguir essa lógica implica pensar que todas que em algum momento colaboraram com a construção da Coletiva são importantes para construir o que ela é hoje. A partir de diferentes eixos a CMDQ tem efetivado o cuidado, acolhimento, sociabilização e a construção de muitos caminhos possíveis para as mulheres que pela negligência do Estado não tiveram oportunidade de construir e cultivar sonhos ou projetos. São esses os eixos de comunicação, de editais, o gotas de cuidado, que é encarregado por promover saúde mental e psicossocial, composto por psicólogas voluntárias, além da realização de oficinas e mobilização de recursos para doações de alimentos e itens básicos.
A vivência coletiva nos lembra a todo momento que estamos em comunidade e, assim, nos manteremos fortalecidas, promovendo autodefinição, que segundo Patrícia Hill Collins (2019), é esse espaço seguro que dissolve as imagens controladoras que minam nossa autonomia e distorcem nossa autoimagem. Ressaltamos que essa vivência coletiva não deve ser pautada na mera tolerância e negação das diferenças, que como nos aponta Audre Lorde, seria o mais grosseiro dos reformismos. Mas, sim, considerar que nossas diferenças devem ser vistas “como reserva de polaridades necessárias, entre as quais a nossa criatividade pode irradiar como uma dialética” (Lorde, 2019; 138). Sendo assim, a construção é coletiva,
baseada nessa interdependência e isso torna tudo mais belo, e o fato de que aprendemos umas com as outras em um espaço seguro nos reafirma enquanto nossas identidades.
Assim, abraçamos a potencialidade de voltar-se a esse encontro enquanto forma de olhar para o outro para saber sobre si, e o que essa relação conta sobre nós. E, por meio dessa entrega, afetar e se permitir ser afetado se torna uma premissa fundamental para construir e potencializar os laços de coletividade, fazendo, aqui, a união dos princípios do Feminismo Negro de romper com a suposta impessoalidade e neutralidade do fazer científico tradicional, e da Psicologia Comunitária ao transformar a realidade dos sujeitos e promover sua autonomia e o protagonismo de sua história, bases que pautam nossa atuação na coletiva e nosso quefazer psicológico (Martin-Baró, 1997).
Nesse âmbito, em nossa relação são priorizadas as questões interpessoais das mulheres e a comunidade, contrapondo a visão tradicional da Psicologia que individualiza o sujeito e suas questões. Aqui, a autonomia e o pensamento crítico são incentivados como ferramentas utilizadas para romper com esse paradigma, convocando a uma ressignificação do que é ser mulher através de abordagens afro-diaspóricas. É possível observar essa relação pelo lema da ColetivA que é “Ser Mulher, Ser Território-Próprio” compreendendo que a produção de nossa subjetividade e identidade, é indissociável do nosso território e nossa comunidade. Pensando o ser mulher enquanto território, um espaço de retomada de memória e comunidade ancestral, que não se faz de forma etérea e individual.
Logo, percebe-se que a escuta e a troca podem ser, e são, estratégias de transformação da realidade coletiva e política, quando esta ocorre por meio do encontro, sem a hierarquia da passividade ou atividade (Geni Núñes, 2022). Nesse ínterim, a coletiva é um espaço de reflexões, de (re)existência e luta, como também de acolhimento, de lazer e afeto. A combinação desses aspectos torna possível o cultivo à autenticidade de cada mulher ali presente, muitas vezes silenciada pelas amarras do racismo, machismo, capacitismo e do preconceito de classe enfrentados por elas diariamente. Apesar disso, a construção e solidificação desse espaço como um local de cuidado e acolhimento propicia o resgate da autenticidade, proporcionando em nosso encontro a potencialização da diversidade das formas de ser e existir. Com isso, então, há um horizonte de ruptura, das consequências oriundas das violências coloniais e a produção de bem-estar por meio da coletividade.
Essas escritas são estilhaços do que nos afetam e do que tem nos orientado até aqui. São também palavras de agradecimento àqueles que em seus mais complexos saberes nutriram a coletividade como sustentação da sobrevivência, aos que vieram antes de nós e tanto fizeram por nós, que nos lembram de quem somos e nos convocam a seguir adiante. Citando Abrahão Santos (2022), somos descendência da luz negra “Te verei vagando, ó estrela negra. Ó luz que ainda não rompeu. Eu te tenho no meu coração” (Nascimento, 1989 apud Ratts, 2006, p. 76) e isso nos impele a pensar como espalhar essa luz que se manteve desperta ao longo do tempo, com tantas forças a interpelando a se apagar.
É uma convocação para repensar outro projeto de psicologia, abrindo mão do individualismo herdado pela colonialidade e pelo neoliberalismo, fazendo reverberar uma psicologia que enxergue a potencialidade das vivências coletivas. E nesse sentido, trilhar caminhos decoloniais de pesquisa, de prática e de legitimação de intelectualidades, reconhecendo a importância da oralidade, apesar das tentativas da academia em negá-la, como aquela que permitiu que conhecimentos silenciados resistissem ao tempo e deve ser inscrita no campo do saber. Assim, que o imperativo seja viabilizar a construção coletiva de uma psicologia “feita junto a favela” (Abrahão Santos, 2022), que considere as diferenças enquanto potências, compreendendo que não é necessário o extermínio de múltiplos saberes em prol da legitimação de um (Geni Núñes, 2022).
Collins, P. H. (2019). Pensamento Feminista Negro: conhecimento, consciência e a política do empoderamento [Black Feminist Thought: Knowledge, Consciousness and the Politics of Empowerment]. São Paulo, SP: Boitempo Editorial. (Original publicado em 1990).
Lorde, A. (2019). Irmã outsider: Ensaios e conferências [Sister Outsider]. Belo Horizonte, MG: Autêntica Editora. (Original publicado em 1984).
Martín-Baró, I. ([1988]1990). Psicologia Política Latino-Americana. In F. Lacerda (Trad.), Psicologia Política, 13(28), Set-Dez 2013.
Martín-Baró, I. (1997). O papel do Psicólogo. Estudos De Psicologia (Natal), 2(1), 7–27. https://doi.org/10.1590/S1413-294X1997000100002
Núñez, G. (2022). Efeitos do binarismo colonial na Psicologia: reflexões para uma Psicologia anticolonial. In. Psicologia brasileira na luta antirracista. Conselho Federal de Psicologia e Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. — Brasília: CFP, 4
2022, v.1, p. 49-60.
Santos, A. de O. (2022). Epistemologias Negras: novas propostas para o ensino, a pesquisa e a extensão em Psicologia. In. Psicologia brasileira na luta antirracista. Conselho Federal de Psicologia e Comissão de Direitos Humanos do Conselho Federal de Psicologia. — Brasília: CFP, 2022, v.1, p. 345-359.
Werneck, J. (2009). Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo. In Vents d’Est, vents d’Ouest: Mouvements de femmes et féminismes (p. 151-164). Graduate Institute Publications.
ABNT — LISBOA, I. R., FRANÇA, K. C. M., CARVALHO, N. E. M., GONZAGA, P. R. B, CARVALHO, K. P. Aonde pisamos, de onde viemos e para onde nós queremos ir. CadernoS de PsicologiaS, n. 4. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/aonde-pisamos-de-onde-viemos-e-para-onde-nos-queremos-ir/. Acesso em: __/__/___.
APA — Lisboa, I. R., França, K. C. M., Carvalho, N. E. M., Gonzaga, P. R. B, Carvalho, K. P. (2023). Aonde pisamos, de onde viemos e para onde nós queremos ir. CadernoS de PsicologiaS, 4. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/aonde-pisamos-de-onde-viemos-e-para-onde-nos-queremos-ir/