#Relatos_de_Experiências
ERRATA: Na versão impressa deste artigo, os títulos dos resumos em inglês e espanhol foram omitidos inadvertidamente. A versão digital, que segue a padronização estabelecida, deve ser considerada como referência. Lamentamos o inconveniente e agradecemos pela compreensão.
Resumo: O relato de experiência e a articulação teórica manifestado aqui tem como base epistemológica a Abordagem Centrada Na Pessoa de Carl Rogers, retratando o desenvolvimento da formação clínica em psicologia. As ações realizadas foram baseadas na teoria Rogeriana não diretiva e centrada na pessoa (Manual De Counseling, 2000), explorando o desafio da oposição à prática diretiva instruída/adestrada/condicionada durante toda a graduação. O estágio ocorreu nas dependências do Centro de Psicologia da Universidade Positivo, as sessões de psicoterapia ocorreram semanalmente, assim como os encontros de supervisão. Através da linha teórica foi possível verificar a importância do espaço clínico não diretivo, a relação dialética proposta na clínica e as condições do psicólogo clínico necessárias para atuação transformadora da relação, apontando novas direções na clínica para repensar o formato breve, a partir do aconselhamento psicológico, resgatando um modelo que não é hegemônico nas universidades.
Palavras-chave: Psicoterapia Breve; Prática clínica; Aconselhamento Psicológico.
PSYCHONEPHROLOGY: CONSIDERATIONS ON PROFESSIONAL PATH AND THE CONSTRUCTION OF CLINICAL PRACTICE
Abstract: The regulation of Health and Hospital Psychology is recent in Brazil. Assistance guidelines for the patient with Chronic Kidney Disease include the psychologist in multidisciplinary staff, considering the psychological and emotional impact of the diagnostic and impositions of the disease, thus, support for the individual and the family during pre-dialytic treatment and follow-up to renal replacement therapy is understood. The present experience report described the attributions and perceptions of the psychologist in Nephrology. Psychologists who previously worked in the specialized care for the renal patient in a third sector institution in Curitiba-PR were invited to share their professional career in Psychonephrology. The statements were permeated by concerns, challenges and gratitude in structuring the service, activities done with the patient and the team. The construction of professional practice, outline and intersection between Psychology and Nephrology were considered.
Keywords: Psychonephrology; Chronic Kidney Disease; Health Psychology.
PSICONEFROLOGÍA: CONSIDERACIONES SOBRE LA TRAYECTORIA PROFESIONAL Y LA FORMACIÓN DE LA PRÁCTICA CLÍNICA
Resumen: La reglamentación de la Psicología de la Salud y Hospitalaria es reciente en Brasil. Las directrices de asistencia al paciente con Enfermedad Renal Crónica incluyen la(al) psicóloga(o) en equipo multidisciplinario, considerando el impacto psicológico y emocional del diagnóstico y las imposiciones de la enfermedad, así se comprende el apoyo al individuo y a la familia durante el tratamiento prediálisis y el acompañamiento a la terapia de reemplazo renal. El presente relato de experiencia describió las atribuciones y percepciones de la(del) psicóloga(o) en Nefrología. Se invitó a psicólogas que actuaron anteriormente en la atención especializada al paciente renal en una institución del tercer sector en Curitiba-PR para compartir su trayectoria profesional en Psiconefrología. Los discursos fueron permeados por preocupaciones, desafíos y gratitud en la estructuración del servicio, actividades realizadas con el paciente y el equipo. Se consideró la construcción de la práctica profesional, el contorno y la intersección entre la Psicología y la Nefrología.
Palabras-clave: Psiconefrología; Enfermedad Renal Crónica; Psicología de la Salud.
O graduando de Psicologia em sua formação é atravessado por inúmeras perspectivas do que é a clínica psicológica, um campo que, de acordo com o censo de 2022 do Conselho Federal de Psicologia (Bastos e Soares, 2022, p. 19), emprega cerca de 73,1% dos profissionais da classe. Esse dado se reflete nas disciplinas oferecidas ao longo do curso. Na Universidade Positivo, por exemplo, a grade curricular inclui disciplinas focadas em diferentes abordagens teóricas, como Psicanálise, Psicologia Comportamental, Psicologia Humanista (incluindo a Psicología Analítica), Psicología Socio-histórica e Terapia Cognitivo-Comportamental.
Além das disciplinas teóricas, a prática clínica é enfatizada nos estágios obrigatórios do quinto ano, que incluem as abordagens da Psicanálise, Psicologia Analítica, Psicologia Comportamental e Terapia Cognitiva Comportamental. Para os estudantes do quarto ano (7º e 8º períodos), há ainda alternativas dentro da ênfase clínica, como a Triagem e a Psicoterapia Breve Humanista. A última, se configura a partir de atendimentos com pacientes da fila do Centro de Psicologia, realizados por uma dupla de estagiários, sem um número pré definido de sessões com duração aproximada de um semestre. As atividades foram supervisionadas pelo professor Pablo de Assis, onde estagiários se reuniram de forma coletiva e trabalharam a partir de suas experiências e impressões, suas relações com seus pacientes, articulando em conjunto da leitura semanal do livro Manual do Counselling de Carl Rogers e John L. Wallen (2000).
Nos primeiros três anos da graduação, é comum que os estudantes sejam imersos em um conjunto de expectativas e crenças sobre o que é o fazer clínico, mesmo que seja evidente que cada abordagem teórica possui um viés epistemológico distinto. Disciplinas como Psicanálise, Terapia Cognitiva e Psicopatologia, por exemplo, influenciam fortemente uma visão clínica de um processo direcionado à resolução de conflitos internos do paciente, nessa direção acabamos adotando muito do pensamento médico mesmo sem ter a base de pensamento da medicina. Desse modo, consolidam-se ideias sobre diretividade, foco interventivo, afastamento profissional e a percepção do psicólogo como um resolutor de problemas, em um modus operandi que é indiferente à abordagem teórica adotada.
Carl Rogers (Rogers & Wallen, 2000) vai na contramão desse modelo de pensamento ao incorporar como pilar de seu método de trabalho, a atitude da não diretividade, desafiando a compreensão hegemônica do papel do terapeuta na clínica. Ele transfere para o cliente, e não para o terapeuta, o controle e a responsabilidade pela direção, formato e condução do processo terapêutico. Essa diferença fundamental já havia despertado dúvidas, inquietações e anseios dos estagiários desde o primeiro contato com suas ideias, que eram recebidas de forma polarizada pelos discentes por destoar consideravelmente de grande parte das perspectivas apresentadas em outras disciplinas do curso, ao menos se tratando de clínica.
As supervisões do estágio iniciaram-se em 8 de março de 2024, com a liberação dos atendimentos presenciais ocorrendo três semanas após essa data. O processo de identificação e contato com os pacientes foi realizado a partir da lista de espera do Centro de Psicologia. Na ausência de pacientes na lista de psicologia breve, a transição para a lista de psicologia individual foi adotada como medida alternativa. Devido a cancelamentos e a problemas da organização do Centro de Psicologia (com disponibilidade de salas e horários), muitos estagiários enfrentaram atrasos significativos no início de suas práticas, o que impactou negativamente no número total de atendimentos realizados. A curta duração de um semestre, associada à dificuldade enfrentada por diversas duplas em agendar pacientes nas primeiras semanas, representou um desafio crítico. Essa situação levanta a questão de como é possível proporcionar um atendimento eficaz ao cliente em um período tão restrito, especialmente quando comparado ao número ilimitado de sessões em clínicas particulares, ou em comparação ao número de atendimentos disponíveis dentro dos planos de saúde, justificando, assim, o estágio em psicoterapia breve.
O objetivo central era possibilitar que o cliente vivesse e enfrentasse as questões de sua vida de maneira autônoma, ou nas palavras de Rogers (2000), a assumir a responsabilidade por si mesmo como pessoa. Contudo, essa autonomia não poderia ser diretamente oferecida pelo terapeuta, cabia a ele dar as condições para que o cliente encontrasse esse espaço de acolhimento, por meio da mudança e consolidação de suas atitudes, permitindo que o cliente experiencie um relacionamento dotado de aceitação e permissividade, onde é possível viver como protagonista de sua própria vida (Rogers, 1957). Nesse contexto de aconselhamento, não havia a intenção de tratar possíveis psicopatologias, solucionar problemas ou modificar comportamentos desadaptativos.
A Psicoterapia, tradicionalmente concebida como um processo conduzido por um único clínico, foi modificada por fatores institucionais que levaram à formação de duplas de estagiários para assumir as cadeiras da clínica. A introdução desse elemento distinto, com dois terapeutas em formação trabalhando conjuntamente, alterou significativamente a dinâmica do processo e acrescentou uma camada adicional de complexidade no ofício clínico que, historicamente, nasce de uma prática individualizada através do aconselhamento psicológico e sua aproximação com a psicoterapia (Scorsolini-Comin, 2014, p.3): como o processo é focado em um indivíduo e centrado na pessoa (Scorsolini-Comin, 2014, p.4), não há necessidade de mais de um profissional trabalhando em cada atendimento, principalmente porque essa prática é herdeira do modelo médico de atendimento individualizado (Velloso, 1982, p.22).
Rogers em suas formulações teóricas faz um convite para pensarmos a clínica de uma outra forma, seja a partir do Aconselhamento Psicológico, Terapia Centrada no Cliente ou da Abordagem Centrada na Pessoa (Amatuzzi 2012). O livro manual do counselling, título original “Counselling with returned servicemen”, escrito em 1946, deu ferramentas para profissionais fora da medicina auxiliarem ex-combatentes, oferecendo as condições para que a autonomia do sujeito para lidar com seus problemas esteja presente, em uma relação onde eles possam ser quem eles realmente são, a partir do acolhimento e aconselhamento psicológico. Embora o aconselhamento psicológico tenha sido inicialmente desenvolvido nesse contexto específico, seus fundamentos teóricos possuem potencial para servirem de base a uma perspectiva de clínica ampliada. A orientação proposta para a realização do estágio era poder repensar a Psicoterapia Breve a partir dessa ótica, mesmo não sendo obrigatório por parte dos estagiários se desvencilhar de uma linha teórica/abordagem psicológica caso já estabelecida.
O referencial teórico adotado para as práticas e discussões em supervisão deu base para a percepção da clínica humanista, ao modelo teórico não diretivo e dialético/dialógico. A abordagem não diretiva como orientação foi um ponto de divergência entre os estagiários, nas primeiras supervisões houve uma certa apreensão em compreender o modelo teórico proposto por Carl Rogers (Rogers & Wallen, 2000), alguns alunos se sentiram mais confortáveis em seguir os pressupostos enquanto outros estavam mais apreensivos. Paradoxalmente, alguns relataram sentir-se incapazes de agir, ficando presos a uma percepção que os impedia de fazer questionamentos. Para eles, a única maneira de interagir com o cliente parecia ser por meio da paráfrase da escuta ativa, podando a expressividade de suas personalidades, o que se tornou um obstáculo na construção da relação entre cliente e terapeuta, algo que Rogers (1957) apresenta como sendo atitude necessária na relação terapêutica, que para ser estabelecida é preciso haver um contato psicológico mínimo entre ambas as partes.
O vínculo terapêutico é fundamental na perspectiva rogeriana. Segundo Carl Rogers (Rogers & Wallen, 2000), um relacionamento eficaz entre cliente e terapeuta não é uma abstração, mas a própria essência da terapia. A experiência vivenciada na Clínica Breve Humanista proporcionou não apenas um entendimento teórico dessa condição tão importante, mas também uma compreensão empírica. Durante as supervisões, os estagiários compartilharam diversos relatos sobre o impacto da relação terapêutica ao longo das sessões. Para eles, essa condição foi percebida como o elemento fundador do vínculo e o ponto de partida para a criação de um espaço seguro, acolhedor e que promove a autonomia do cliente.
Além da relação terapêutica, outra condição necessária é o estado do cliente, ou incongruência (Rogers, 1957). Rogers descreve a incongruência como a base de sua teoria, afirmando que sem ela não há terapia. A incongruência ocorre quando a experiência real do indivíduo entra em contradição com o seu self ideal. Esse conflito entre a idealização e a realidade vivida gera sofrimento e angústia, que seria, como Rogers (2009) define a incongruência.
Além da relação terapêutica e do estado do cliente, Rogers (1957) destaca mais três atitudes que o clínico deve adotar para promover uma mudança terapêutica: autenticidade, empatia e aceitação positiva incondicional. A autenticidade é um aspecto central na clínica humanista; o clínico deve ser livre e congruente com sua experiência na relação, ou seja, deve ser ele mesmo. A aceitação positiva incondicional fortalece o vínculo entre terapeuta e cliente, uma vez que não há condições impostas para a expressão da relação. Toda a verdade do cliente é aceita pelo clínico, permitindo que este tenha um olhar atento à individualidade do cliente, que possui seus próprios sentimentos e experiências. A empatia permite ao clínico vivenciar o mundo privado do cliente, compreendendo sua raiva, angústia, medo, entre outros sentimentos. Dessa forma, o mundo do paciente se torna suficientemente claro para o terapeuta, possibilitando expressões genuínas da experiência. Em outras palavras, o clínico está presente na relação e nos processos subjetivos do cliente.
A última condição é a percepção que o cliente tem do clínico, reconhecendo a aceitação incondicional e a empatia que o terapeuta demonstra na relação. Portanto, se essas condições necessárias do clínico não forem percebidas, o processo terapêutico não terá se iniciado (Rogers, 1957).
É inegável que os estagiários carregavam um viés pré-estabelecido de que o clínico deveria ser responsável por fazer algo sobre o cliente. Logo nas primeiras supervisões, mesmo com a leitura dos textos, surgiram dúvidas sobre como aplicar aquele conhecimento dentro de um cenário prático. A mudança para uma postura rogeriana parecia tão radical que foi necessário adiar o contato inicial com os pacientes e a busca nas listas de atendimento por uma semana. Em votação unânime, os estagiários expressaram que não se sentiam preparados naquele momento e pediram ao professor supervisor por uma sessão simulada antes de iniciar os atendimentos.
Estar na posição de um clínico em formação é inquietante. A inexperiência sobre o que fazer e como fazer, a tensão de um primeiro encontro cara a cara e o desconhecimento sobre o que dizer geram insegurança. A sensação de controle e previsibilidade está ausente em cada encontro, pois cada atendimento pode ser completamente diferente do outro, sem ter como prever o que será dito ou como isso impactará os clínicos. Não temos controle sobre nossos sentimentos; os experienciamos junto com os pacientes. Para Rogers, (1957), esses sentimentos devem fluir livremente. Mas, se o clínico se emociona, ele deve chorar? E, se a emoção for tão intensa, ele conseguirá conter as lágrimas ou disfarçá-las?
Rogers (Rogers & Wallen, 2000), no capítulo 9, destaca como até mesmo uma conversa de 15 minutos, de contato breve e não planejado, pode ter um potencial terapêutico se as atitudes necessárias estiverem presentes, mesmo em situações casuais. O vínculo entre clínico e cliente é a relação mais importante para promover uma transformação terapêutica. Durante o estágio, foi possível vivenciar a força que essa relação exerce nos encontros; a transformação que ocorre advém dessa dialética, em que o clínico se transforma tanto quanto o cliente. Essa forma de compreensão é análoga a visão trabalhada dentro da clínica junguiana que pode servir como um olhar complementar a esse fenômeno (Jung, 2013). Embora não se trate de teorias que se influenciaram diretamente ao longo da história, existem pontos de convergência e reflexões que permitem estabelecer um diálogo entre esses dois corpos teóricos, ao menos se tratando de suas similaridades situadas dentro de um contexto clínico, reconhecidas inclusive por colaboradores de Jung, como Marie-Louise Von Franz e Wolfgang Hochheimer, que “assinala com acerto que essa abordagem [de Jung] tem algo em comum com o método ‘não-diretivo’ de Rogers” (von Franz, 1975, p. 59).
A clínica é um diálogo que requer a participação de duas pessoas (Jung, 2013), mas isso não significa que o clínico tenha respostas prontas, conselhos, indicações ou um direcionamento a oferecer ao cliente. Foi possível experienciar como a dialética se manifesta além da teoria; sua prática fluida ocorre de maneira independente, e, com dois seres humanos frente a frente, ela se revela, fortalecendo os laços entre eles e ampliando o espaço já assegurado por questões éticas para um espaço repleto de significado, afeto e individualização. Jung (2013) também destaca que a personalidade do médico – ou neste caso, dos estagiários em psicologia clínica – é parte do fator de cura do processo terapêutico e objeto constituinte da relação: “O encontro de duas personalidades é como a mistura de duas substâncias químicas diferentes: no caso de se dar uma reação, ambas se transformam.” (2013, p. 85). O fenômeno foi constatado pelos estagiários em espaço de supervisão, onde relataram que a experiência do estágio foi tão enriquecedora para eles em termos pessoais quanto o próprio processo pelo qual o paciente passou.
Durante o estágio, o tempo limitado se mostrou um componente ativo para ambos (cliente e terapeutas), gerando um clima de desconfiança sobre a eficácia e os resultados de uma psicoterapia breve. Esse fator gerou dúvidas sobre o que poderia ser efetivamente alcançado em um número médio de 10 sessões, dentro do calendário disponível para os atendimentos do semestre letivo. Embora o estágio não tenha promovido uma transformação radical na vida dos clientes, ele possibilitou uma mudança significativa na forma como eles enfrentam e interpretam suas situações cotidianas. Para Rogers (2009, p. 77) a Psicoterapia tende a resultar em um desenvolvimento positivo na concepção de si mesmo do cliente, que passa a fundamentar sua existência de forma autônoma, ancorando suas decisões em sua própria experiência pessoal. Assim, apesar das limitações de tempo e da natureza breve do estágio, os resultados positivos obtidos podem ser compreendidos como um reflexo da capacidade de adaptação às condições vigentes.
O formato em duplas se mostrou uma condição interessante e única a se viver dentro do processo de formação, onde inicialmente as diferenças entre os clínicos, embora presentes, manifestaram-se de maneira sutil. No entanto, à medida que o processo avançava, tais distinções tornaram-se cada vez mais acentuadas, evidenciando uma transformação nas personalidades dos profissionais envolvidos. A maneira como cada estudante no estágio clínico conduzia as sessões, na forma de interagir com o paciente, a estruturação das perguntas, o retorno das falas e a comunicação empática, seja ela verbal ou não verbal, passou por mudanças significativas, refletindo um nível mais elevado de autenticidade.
Curiosamente, ao invés de se tornar um obstáculo, esse contraste serviu como um mecanismo para o fortalecimento do vínculo entre os envolvidos. As sessões, que poderiam ter se fragmentado devido à divergência intrínseca à personalidade dos clínicos, começaram a fluir de maneira mais natural e orgânica. O que de certa forma é uma evidência empírica do efeito da autenticidade enquanto condição necessária para a transformação da personalidade, a partir da observação de cada colega dentro de uma vivência e experiência conjunta.
O espaço de supervisão serviu como um ponto essencial para a percepção desse processo. Mesmo que não ocorresse diretamente na supervisão, o fato de precisar preparar os relatos e reflexões a respeito da prática para a discussão, deixava evidente as diferentes perspectivas dos estagiários de como o encontro afetou cada um de forma individual. Isso contribui para uma conscientização mais ativa por parte da dupla a respeito do papel de ambos na relação e nos processos clínicos, bem como no reconhecimento e valorização de suas individualidades, no lugar de um papel social e profissional que é imposto e esperado a ser cumprido.
As sessões desenvolveram um ritmo colaborativo único, no qual as falas dos clínicos se complementam, criando um fluxo contínuo em que as três partes, os dois estudantes e a pessoa atendida, participavam ativamente. Nesse contexto, as diferentes perspectivas e abordagens utilizadas pelos estudantes, cada um com seus estilos e preferências teóricas, resultaram em uma tríade composta por personalidades únicas. Essa interação proporcionou uma valiosa contribuição pedagógica, permitindo que cada estudante aprendesse com o outro, enriquecendo mutuamente a prática. Embora distinta, essa dinâmica se revelou igualmente rica e complexa em comparação com o processo ortodoxo de psicoterapia.
Uma mudança de atitude não é o mesmo que a aplicação de uma técnica adquirida. Trata-se de um processo lento e gradual, aprendido e vivenciado simultaneamente na práxis clínica de Teoria-Prática-Supervisão. Enquanto uma técnica se aplica ao sujeito, a mudança de atitude diz respeito ao clínico. Jung (2013) defendia a importância de que o clínico passasse pelo mesmo processo que o cliente, ou seja, pela psicoterapia, e de que a experiência e conhecimentos ali vivenciados deveriam servir como base de atuação em sua prática, pois a transformação do clínico, não ocorre de forma isolada, mas é produto de sua abertura e envolvimento no mesmo processo que aplica. Podemos pensar também na necessidade de supervisão como um elemento complementar, visto que o esforço reflexivo e introspectivo do clínico sobre si mesmo também ocorre durante o processo (Jung, 2002, p. 123). Alguns estagiários, inicialmente relutantes em adotar uma postura não-diretiva, relataram uma mudança significativa em seu entendimento e aplicação da abordagem rogeriana ao longo do semestre, reconhecendo o valor de permitir que o cliente conduza o processo terapêutico. O estágio, portanto, explicitou o quanto a compreensão teórica e a formação do psicólogo se concretizam através da vivência e da prática da psicoterapia e que o trabalho a ser feito é sobre uma mudança de atitude do clínico. Logo é possível apontar que sem essa experiência do estágio, não haveria um entendimento pleno dos pressupostos rogerianos por parte dos estagiários.
Pensar a clínica à luz do do aconselhamento psicológico e da Abordagem Centrada na Pessoa (ACP) vai além de uma dimensão teórico-epistemológica, é também uma decisão ética, uma alteração no cerne da relação de ajuda (Amatuzzi, 2012). Ao reconhecer o cliente como sujeito autônomo e dotado de liberdade, a responsabilidade pelo curso da vida desse indivíduo é deslocada do clínico para o próprio sujeito, em paralelo, as barreiras que tradicionalmente distanciam o profissional do cliente perdem sua função, havendo uma substituição da lógica interventiva por uma lógica compreensiva, mesmo levando em consideração que tal atitude pode ser difícil para o profissional diante das várias inseguranças ainda vivenciadas (Boris, 2008, p. 169). Tal atitude demanda uma escolha de valores a serem defendidos no futuro, priorizando a escuta, a aceitação e a valorização da personalidade e da autenticidade do outro, permitindo-se viver esse encontro junto da pessoa.
Rogers via sua teoria como um conjunto de ideias que agregam valor às abordagens psicológicas e a todos os terapeutas e/ou conselheiros (Amatuzzi, 2012). Sua influência no Brasil é evidente na prática do Centro de Valorização à Vida (CVV) (Prudente, 2005). Portanto, sua abordagem não apenas fundamenta o atendimento clínico tradicional de longo prazo, mas também amplia as possibilidades para a implementação de atendimentos breves, que podem ser integrados no CRAS e CREAS e nos Centros de Atenção Psicossocial (CAPS I, II, III e AD), tendo o potencial de serem amplamente difundidas dentro das políticas de matriciamento do Sistema Único de Saúde (SUS), tendo possíveis aplicações também na área da saúde de forma geral e na enfermagem em específico (Carneiro, 2008) e na formação de profissionais da saúde (Araújo e Vieira, 2013).
A prática de estágio em Psicoterapia Breve Humanista proporcionou uma reconfiguração significativa das crenças e expectativas construídas ao longo dos três primeiros anos de graduação. A teoria, que inicialmente parecia distante, foi progressivamente introjetada na práxis psicológica à medida que as supervisões avançavam. O processo de formação clínica revelou-se não apenas como um aprendizado técnico, mas como uma profunda reflexão sobre o papel do psicólogo, suas atitudes e a construção de relações terapêuticas autênticas. Esse estágio, portanto, representou um momento crucial na formação profissional em psicologia, evidenciando a importância de uma prática clínica alinhada com valores humanistas e de suas consequências éticas, resgatando a obra Rogeriana que valoriza entre tantas coisas a autenticidade, a empatia e aceitação incondicional, propondo um foco de trabalho, onde o clínico volta-se para si mesmo promovendo uma maior horizontalidade na relação terapeuta-cliente, mostrando como a não diretividade e o tempo não são determinantes no resultado transformador da experiência, que possui um impacto nas vidas, especialmente do clínico. Ao considerar o papel da memória e da história, essa prática não apenas reconhece o passado, mas também abre novos caminhos para entendermos o papel do clínico e o que pode se expandir para além de um estágio de Psicologia clínica breve.
Amatuzzi, M. M. (2012). Rogers: Ética humanista e psicoterapia (2ª ed.). Editora Alinea.
Araújo, E. S. C., Vieira, V. M. O. Práticas docentes na Saúde: contribuições para uma reflexão a partir de Carl Rogers. Psicologia Escolar e Educacional, 17(1), 97-104.
Bastos, A. V. B., Oliveira, I. F. de, & Soares, I. S. D. (2022). O trabalho em psicologia: Em que áreas de atuação nos inserimos? In Conselho Federal de Psicologia (Org.), Quem faz a psicologia brasileira? Um olhar sobre o presente para construir o futuro: Condições de trabalho, fazeres profissionais e engajamento social (p. 13–31). Conselho Federal de Psicologia.https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2022/12/Censo_psicologia_Vol2-1.pdf
Boris, G. D. J. B. (2008). Versões de sentido: Um instrumento fenomenológico-existencial para a supervisão de psicoterapeutas iniciantes. Psicologia Clínica, 20(1), 165–180.
Carneiro, A. (2008). Teorias de Rogers e suas aplicações no campo da enfermagem. Revista Gaúcha de Enfermagem, 7(2), 265-274.
Jung, C. G. (2002). Memórias, Sonhos, Reflexões (A. Jaffé, Org.; D. F. da Silva, Trad.; 23a). Nova Fronteira.
Jung, C. G. (2013). A prática da psicoterapia (Vol. 16). Vozes.
Prudente, A. B. (2005). A construção histórica do modelo de relação de ajuda do Centro de Valorização da Vida na segunda metade do século XX: influências dos modelos de relação de ajuda da psicologia (Dissertação (Mestrado). Universidade de São Paulo, Ribeirão Preto.
Rogers, C. R. (1957). The necessary and sufficient conditions of therapeutic personality change. Journal of Consulting Psychology, 21(2), 95-103. In J. K. Wood (Ed.), Abordagem centrada na pessoa (1ª ed., p. 95-103). Editora Fundação Ceciliano Abel de Almeida.
Rogers, C. R. (2009). Tornar-se pessoa (6ª ed.). Editora WMF Martins Fontes.
Rogers, C. R., & Wallen, J. L. (2000). Manual de counselling. Encontro – Coleção Psicologia e Existência.
Scorsolini-Comin, F. (2014). Aconselhamento psicológico e psicoterapia: Aproximações e distanciamentos. Contextos Clínicos, 7(1), 02-14.
Velloso, E. D. (1982). Psicologia Clínica no Brasil. Arquivos Brasileiros de Psicologia, 34(1), Artigo 1.
Von Franz, M-L. (1975). C. G. Jung: Seu Mito em Nossa Época. Editora Cultrix.
ABNT — JACOMASSO, M. H. K.; MARINHO, J. de S.; ASSIS, P. de. Articulações sobre o estágio de psicoterapia breve a partir da obra rogeriana. CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/articulacoes-sobre-o-estagio-de-psicoterapia-breve-a-partir-da-obra-rogeriana/. Acesso em: __/__/___.
APA — Jacomasso, M. H. K., Marinho, J. de S., & Assis, P. de. (2024). Articulações sobre o estágio de psicoterapia breve a partir da obra rogeriana. CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/articulacoes-sobre-o-estagio-de-psicoterapia-breve-a-partir-da-obra-rogeriana/