Resumo: Este trabalho tem como objetivo identificar as imagens oníricas durante a pandemia COVID-19 através de um grupo teórico vivencial, realizado via online, entre os meses de maio e junho de 2020. Frente ao cenário atual e mundial da pandemia e as diversas implicações que o novo contexto imprime no inconsciente pessoal e coletivo, é imprescindível olhar para manifestações do inconsciente. Como se sabe, os sonhos são uma das mais importantes linguagens do inconsciente, amplamente estudada pela psicologia analítica. Apesar de a temática dos sonhos ser estudada com frequência, a proposta do grupo dos sonhos propõe uma intervenção não tão usual da interpretação dos sonhos: grupal e à distância. A partir desse ensaio, pode-se observar que as imagens trouxeram temas, sentimentos, emoções e imagens mitológicas similares entre os participantes. Pode-se concluir, que as imagens oníricas durante a pandemia, são de natureza coletiva e arquetípica, mesmo num evento inédito na vida consciente.
Palavras-chave: sonhos; COVID-19; psicologia analítica.
The oneiric images during the Covid-19 pandemic
Abstract: This article aims at identifying the images that came up in dreams during the COVID-19 pandemic through data collected in a theoretical experiential group, conducted online between the months of May and June 2020. In the present world scenario of the pandemic and the various implications that this new context imprints on the personal and collective unconscious, it is essential to look at manifestations of the unconscious. Dreams are one of the most important languages of the unconscious, widely studied by analytical psychology. Although the theme of dreams is studied frequently, the dream group format is an unusual intervention design for the interpretation of dreams. Throughout the group exchanges, it was observed that the images that emerged in the participants’s dreams pointed to similar themes, feelings, emotions and mythological images. From these findings, it can be concluded that , despite this pandemic being an unprecedented event in conscious life, oneiric images during t this period are of collective and archetypal nature.
Keywords: dreams; COVID-19; analytical psychology.
Las imágenes oníricas durante la pandemia Covid-19
Resumen: El trabajo tuvo como objetivo identificar las imágenes oníricas que surgieron por parte de un grupo teórico vivencial, entre los meses de mayo y junio de 2020, durante la pandemia de la COVID-19. Frente al escenario actual y mundial formado por la pandemia y las diversas implicaciones que el nuevo contexto imprime en el inconsciente personal y colectivo, resulta imprescindible mirar hacía las manifestaciones del inconsciente. El sueño, medio importante por lo cual el inconsciente se manifiesta, es bastante estudiado por la psicología analítica. Apesar de esto la propuesta del grupo visa una intervención interpretativa nada usual: grupal y a la distancia. El presente ensayo evidenció que las imágenes oníricas trajeron temas, sentimientos, emociones e imágenes mitológicas semejantes entre los participantes. Concluyese que las imágenes oníricas que surgieron durante el periodo de la pandemia, son de naturaleza colectiva arquetípica, aunque surjan en un acontecimiento de la vida consciente.
Palabras clave: sueños; COVID-19; psicología analítica.
Frente ao cenário mundial da pandemia do COVID-19 e as diversas implicações que o novo contexto imprime no inconsciente pessoal e coletivo dos indivíduos, percebeu-se nos relatos clínicos e na experiência pessoal que as imagens oníricas deste momento se manifestaram com maior intensidade e frequência e ao despertar, diferentes emoções e sentimentos foram constelados. A partir disto, surgiu naturalmente a oportunidade de criar um espaço virtual em que as imagens oníricas pudessem ser identificadas.
Os sonhos têm papel fundamental para a psicologia analítica, sendo, inclusive o embasamento do trabalho científico de Jung, juntamente com as fantasias, como coloca no prólogo de Memórias, Sonhos e Reflexões (Jung, 1987).
O sonho é a fonte de todo conhecimento humano sobre simbolismo, pois como se pode observar nos sonhos, os símbolos são produções espontâneas de nossa psique. (Jung, 1971/2013a). Sendo assim, a psicologia analítica compreende os sonhos simbolicamente, considerando os conteúdos da psique como representações do aspecto pessoal (complexos) e dos aspectos coletivos (arquétipos). Os sonhos, para a psicologia analítica são, portanto, uma “representação simbólica do estado da psique” (Hall, 1986, p.121).
A natureza da grande maioria dos símbolos é coletiva, expressando sempre mais do que é possível compreender de imediato. “Eles têm um aspecto abrangente ‘inconsciente’ que nunca se deixa exaurir ou definir com exatidão” (Jung, 1971/2013a, par. 417).
A pandemia da COVID-19 é um evento inédito historicamente, mas sabe-se que situações coletivas carregam imagens arquetípicas, sem que necessariamente os indivíduos daquele tempo se percebam disso (Hall, 1983). Assim, pode-se pensar que as emoções despertadas pela pandemia, como: medo, angústia, ansiedade e incerteza são imagens arquetípicas do nosso tempo.
Via de regra, quando o inconsciente coletivo se torna verdadeiramente constelado em grandes grupos sociais, a consequência será uma quebra pública, uma epidemia mental que pode conduzir a revoluções, guerra ou coisa semelhante, tais movimentos são tremendamente contagiosos, eu diria inexoravelmente contagiosos, pois quando o inconsciente coletivo é ativado, ninguém mais é a mesma pessoa. (Jung, 1971/2013a, par. 93).
Diante do cenário atual, é imprescindível olhar para manifestações do inconsciente, e como se sabe, os sonhos são uma das mais importantes linguagens do inconsciente, “O modo específico de o inconsciente se comunicar com o consciente é o sonho.” (Jung, 1971/2017, par.317), por este motivo, a escolha de olhar para os sonhos frente a pandemia do COVID-19.
Apesar de a pandemia da COVID-19 ser um evento sem precedentes, em outros momentos históricos, como guerras e gripe espanhola, também se pode observar a presença de sonhos que causavam medos e insegurança nas pessoas daquela época. No livro “Sonhos no terceiro Reich” de Charlotte Beradt (2009) a autora coletou sonhos de diferentes pessoas na época do Nazismo.
Sempre houve, em qualquer época, sonhos terríveis, cujas origens não estão apenas nas tensões internas de indivíduos altamente sensíveis (poetas como Hebbel e Lichtenberg tiveram sonhos infernais) ou em uma situação ameaçadora particular vivida por uma pessoa comum, mas sim em uma situação ameaçadora coletiva (Beradt, 2009, p.37).
Mais do que teorizar, o foco foi priorizar pela experiência vivida através dos relatos dos sonhos ao compartilhar estas imagens dentro grupo. A partir deste compartilhamento, portanto, foi possível aproximar, ampliar e estabelecer a relação com as imagens do inconsciente coletivo, de acordo com abordagem da psicologia analítica.
A temática dos sonhos é bastante presente e estudada na psicologia analítica, principalmente pelo viés individual em contexto clínico. A proposta do grupo dos sonhos deste ensaio propõe uma intervenção não tão usual da interpretação dos sonhos: grupal e à distância.
Se o sonho é formado por material pessoal, faz se necessário o recuso a associações individuais. Mas se sua estrutura for basicamente mitológica, a diferença é óbvia logo à primeira vista, a linguagem então será universal, e tanto você quanto eu podemos traçar paralelos com quais contexto será construindo, supondo-se sempre que tenhamos o conhecimento necessário para o trabalho (Jung, 1971/2013a, par. 249)
Método
O trabalho foi realizado através de um grupo de teórico vivencial realizado online, na plataforma do aplicativo Skype, formado por 09 pessoas de diferentes regiões do Brasil, idades e gênero, todos psicólogos, porém em campos, linhas de abordagem distintas e foi mediado por duas psicólogas de abordagem analítica.
O grupo vivencial teve como objetivo oferecer acolhimento, suporte e espaço para que os participantes entrassem em contato com as imagens oníricas, tanto pessoais, quanto coletivas, focalizando especialmente a relação destas imagens com o contexto atual da pandemia do COVID-19. Devido a atual situação de saúde da pandemia em questão o distanciamento social se fez necessário, sendo, portanto, adotada a modalidade on-line para a realização dos encontros semanais do grupo de sonhos.
A divulgação se deu por meio da internet, principalmente pelas redes sociais e contatos das mediadoras. Os interessados, primeiramente, entraram em contato com uma das mediadoras, preencheram um formulário de inscrição e por fim aceitaram os termos de condições para participar do grupo.
O grupo foi estabelecido por 05 encontros online com duração de uma hora e trinta minutos cada encontro e a acontecia todas as quintas feiras no período da noite entre os meses de maio e junho de 2020.
Bosnak (2014), afirma que a vantagem do trabalho em grupo é que a imagem de um sonho é remetida ao sonhador por diversos ouvintes, fazendo aparecer mais perspectivas. Sendo que a tarefa de todos é manter o sonhador concentrado sobre as imagens. O autor também orienta que é preferível limitar o trabalho a mais ou menos uma hora por semana, para evitar que as imagens íntimas possam emergir.
Para estimular o envio dos sonhos, um formulário “diário dos sonhos” foi criado, para que os participantes ao recordarem dos sonhos, pudessem relatar e enviar para as mediadoras realizarem um estudo. Após os envios da semana, as mediadoras escolhiam dois sonhos e apresentavam ao grupo no próximo encontro, para que a troca coletiva pudesse acontecer.
O esquecimento é um processo natural dos sonhos, em que certos conteúdos perdem a energia quando desvia-se a atenção deles. O que não significa que deixam de existir (Jung, 1971/2013b). Bosnak (2014) sugere algumas atividades para que se possa recordar dos sonhos, entre exercícios para memória, a observação do momento do despertar, o registro de sonhos e as conexões entre os elementos.
Hall (1986) também corrobora com esta perspectiva ao citar o esvaecimento dos sonhos logo após o acordar. O diário de sonhos, proposto por Hall, foi adaptado à demanda do grupo de sonhos, ressaltando a importância do registro dos sonhos com o máximo de detalhes e informações possíveis.
Sempre no dia anterior ao grupo, as mediadoras encontravam-se virtualmente para estudar e escolher os sonhos do próximo encontro. Foi definido que seriam apenas dois sonhos de sonhadores diferentes, para que o grupo pudesse ampliar com maior profundidade cada um dos sonhos.
Bosnak (2014) indica que cada um pode decidir, como membro do grupo, sobre quais sonhos trabalhar. Ou então pode ser designado um chefe para o grupo, permanente ou temporário, que estabelecerá a direção a tomar sobre determinado sonho.
Outro ponto, é que antes dos relatos dos sonhos, sempre era realizado um relaxamento que durava em torno de cinco minutos, para que os participantes pudessem se conectar com o presente, com seus sentimentos e sensações.
Antes de ouvir o sonho, escute como está seu corpo. Onde estão os blocos de energia, onde incomoda, onde está confortável? Comece pelos pés e mova-se lentamente para cima. Isto lhe dará possibilidade de observar se as sensações corporais mudam durante o relato do sonho, e como. (Bosnak, 2014, p. 34)
Os sonhos trazidos, sempre eram relatados duas vezes – uma vez por uma das mediadoras e a segunda vez pelo próprio sonhador – e após o relato, era solicitado para que cada participante anotasse suas sensações e emoções de cada sonho, para que os participantes compartilhassem as imagens que foram mais impactantes no sonho. As imagens de maior impacto eram ampliadas e por fim relacionadas à pandemia.
Bosnak (2014) sugere que para evitar uma interpretação relâmpago e oferecer uma audição pronta para suportar o confronto com a linguagem do sonho, este seja relato duas vezes. “O pedido de associações é uma das partes essenciais no trabalho com os sonhos” (Bosnak, 2014, p.26).
No último dia, foi realizado uma apresentação sobre o resumo dos conteúdos explanados nos encontros anteriores, juntamente com as imagens arquetípicas que se apresentaram nos sonhos e para finalizar uma conversa sobre o último formulário solicitado, cujo objetivo era um feedback sobre o grupo.
O sonho é um produto daquilo que era chamado de theatrum psychicum, o teatro do mundo interior. Quando todas as personagens são acuradamente descritas, as imagens são colocadas sob pressão, as emoções se aquecem e o sonho é cozido. (Bosnak, 2014, p. 43)
Análise dos resultados
Sobre os participantes e expectativas prévias
Os 09 sonhadores participantes do grupo tinham de 23 a 44 anos, sendo 8 mulheres e somente 1 homem, todos psicólogos das mais diversas áreas de atuação: clínica, escolar, organizacional e hospitalar.
Com relação a localidade dos participantes, a grande maioria, 6, residia em Curitiba ou região metropolitana, no estado do Paraná, 1 participante era do estado do Mato Grosso, 1 participante do Pernambuco, e 1 participante de Minas Gerais.
Assim, é importante destacar a vantagem do trabalho online ao pensar no grande alcance da divulgação, sendo possível construir um grupo de trabalho heterogêneo, diverso cultural, social e profissionalmente.
O questionário inicial, além de investigar o perfil sociodemográfico do grupo, também avaliou interesses e expectativas. Mesmo a divulgação sendo bem clara sobre o trabalho vivencial do grupo, a unanimidade das expectativas e motivações dos participantes era o conhecimento teórico sobre a interpretação dos sonhos pelo viés da psicologia analítica. Tendo em vista tal expectativa, no primeiro contato novamente esta questão foi trazida pelas mediadoras, ficando então, esclarecido que o conhecimento teórico comporia uma pequena parte do trabalho proposto.
Todos os participantes do grupo relataram bastante interesse e vontade de adentrar mais profundamente no mundo dos sonhos. Somente graças à esta motivação que o trabalho ao longo dos cinco encontros foi possível.
O trabalho de ampliação e aprofundamento das imagens oníricas foi sempre relacionado com o contexto externo, ou seja, a pandemia do COVID-19. Desta forma, por mais que as imagens retratassem aspectos íntimos e pessoais do sonhador, o foco era refletir e dialogar enquanto grupo: como tal imagem ecoa para cada um.
Para Jung (1971/2013a, par. 229) a interpretação de um sonho abissal, nunca será suficiente realizada na esfera pessoal, pois há uma imagem arquetípica, que indica que a situação psicológica pessoal se estende, o seu problema não e exclusivo, mas em algum ponto se estende e atinge toda humanidade.
Imagens, sentimentos e emoções diante dos sonhos
A cada encontro as ampliações e associações que surgiam davam o tom, traziam a tona sentimentos e emoções despertadas, apontando assim para os temas que estavam sendo constelado no dia.
Jung (1971/2013a, par. 45-46) descreve que “o sentimento consciente é uma função racional de discriminar valores”, já a palavra emocional surge há uma condição caracterizada por intervenções fisiológicas, que podem ser medidas ate certo ponto pelas condições físicas. Portanto a diferença para ele, é que “o sentimento não apresenta sintomas físicas ou fisiológicas tangíveis, ao passo que a emoção se caracteriza por uma condição fisiológica alterada”.
Os relatos dos sonhos se deram a partir do segundo encontro, com dois sonhos. Neste dia, ambos os sonhos traziam imagens ancestrais, de épocas passadas, “eu estava em um ginásio de esportes, desses comuns em escolas públicas. Tinham algumas mesas velhas espalhadas” (relato da primeira sonhadora) “eu estava com meu marido em uma pousada simples de praia, na Bahia, Morro de São Paulo… estou com meu marido caminhando dentro da água, como no fundo do mar igual ao desenho do Bob Esponja ou numa cidade subaquática.” (relato da segunda sonhadora); imagens das estruturas corpórea; “ela chegou perto de mim e disse que meu quadril estava estreito demais. E eu sem entender nada perguntei “como assim?”. Então ela me colocou contra a parede, com a barriga colada na parede e pegou com dois dedos na base da minha coluna” (relato da primeira sonhadora) e personagens que conseguiam transformar a dificuldade apresentada nos sonhos. “A senhorinha colocou no lugar meu osso, eu senti super ele se encaixando na base da coluna.” (relato da primeira sonhadora), “continuamos caminhando e ao final subimos uma escada e alguns sacerdotes católicos (padres, bispos) nos dão a mão e ajudam a subir a escada e nos entregam em um pacotinho uma hóstia com uma mensagem de fé.” (relato da segunda sonhadora). Os principais sentimentos que surgiram neste encontro foram de: nostalgia, desespero e esperança; e as emoções foram: enjoo, tensão e relaxamento.
No terceiro encontro mais dois sonhos foram compartilhados, mas desta vez traziam imagens mais densas, relacionadas à frustração “Ela não permitiu que eu fosse até a minha sala, ou às salas de aula (fiquei frustrado e irritado com isso) para não haver contaminação pelo coronavírus” (relato do primeiro sonhador), confronto, agressividade e injustiças. “O homem levanta enraivecido e começa a chutar e xingar a moto… Olho para o lado e vejo uma multidão de pessoas se aproximado, com espírito de reivindicação, dispostas a enfrentar a barreira de policiais e entrar no local” (relato da segunda sonhadora). Os principais sentimentos e emoções que surgiram aqui foram: raiva, indignação, insegurança, cansaço, já as emoções foram de: ansiedade e stress.
Por fim, o quarto e último encontro de partilha de sonhos foi diferente do habitual. Nos dois encontros anteriores as mediadoras recebiam os sonhos através do formulário “diário dos sonhos” escolhiam e conversavam sobre eles previamente. Neste encontro, devido a ausência dos participantes que teriam o sonho compartilhado, surgiu a ideia de trabalhar sonhos que não haviam sido enviados pelo formulário. Assim, o quarto encontro foi surpreendente tanto para os participantes, quanto para as mediadoras.
Como um fechamento dos encontros, os sonhos deste dia tinham em comum vários desafios e contratempos dos personagens, e situações bastante contraditórias. “estava andando pela cidade de Luxemburgo, encontro um carrossel iluminado, passo por dentro de uma construção, encontro um urso grande e sinto medo, entro dentro de um barracão que tem um buraco, e lá dentro tem um dinossauro, porém não sinto medo” (relato da segunda sonhadora). “Eu estava em uma festa, dançando com três amigos e eu dou um beijo em um deles, é meu aniversário e estou feliz… há um tiroteio no meio da festa, mas o policial que é um menino diz que está tudo bem” (relato da segunda sonhadora). As principais imagens que surgiram como temas relacionados à jornada, os opostos e instinto, sendo que os principais sentimentos foram: otimismo, desejos, confiança e as emoções foram de: tensão e relaxamento.
Personagens e associações mitológicas
Assim como temas e imagens foram dando o ritmo e sensações vivenciadas no grupo, alguns personagens que apareceram nos sonhos despertaram associações mitológicas e ajudaram a compor a vivência experienciada em cada encontro.
Imagens mitológicas fazem parte da psique coletiva e muitas vezes de forma inconsciente, sendo, portanto, imagens arquetípicas. O arquétipo pode ser definido como “uma tendência de criar representações muito variáveis, mas sem perder seu modelo primitivo.” (Jung, 1971/2013a, par. 523). Os arquétipos emanam uma energia numinosa, despertando fascínio e encantamento.
No segundo encontro, o primeiro de partilha onírica, trouxe como principais personagens a Velha Sábia, Héstia, “a regência do interior, da interioridade, do interno, daquilo que consideramos lar, daquilo que chamamos de casa” (Barcellos, 2019, p. 95) no primeiro sonho, e Poseidon, “deus das águas, mas a princípio, e antes do mais, das águas subterrâneas” (Brandão, 1986, p. 322) e Perséfone, “rainha do Hades” (Brandão, 1986, p. 73) no segundo sonho.
O terceiro encontro, marcado pela raiva e sentimentos de injustiça evocou Ares, “deus da guerra, o deus do combate” (Barcellos, 2019, p. 47) e Atena, “a deusa da inteligência, da razão“ (Brandão, 1987a, p. 26) no primeiro sonho, e Minotauro preso no labirinto, simbolizando a ocultação da “vontade monstruosa no inconsciente: aprisionam o Minotauro no Labirinto” (Brandão, 1987b, p. 161) no segundo sonho.
O quarto encontro teve a imagem alquímica da coniunctio “um novo ponto de vista que permite a experiência dos opostos ao mesmo tempo” (Edinger, 1990, p.232) bastante presente, ao longo dos encontros, e Dioniso, que é “o êxtase, ou o entusiasmo (ter o deus dento de si): ele borra os limites” (Barcellos, 2019, p. 219), ambos no primeiro sonho. Já o segundo sonho, retratou a relação mãe-filha e também a presença de ursos, ilustradas com a Urso-Mãe da animação infantil “Valente”, e Perséfone e Core “uma junção muito frequente em Creta, de uma deusa mãe e de uma jovem (Core significa jovem) filha” (Brandão, 1986, p. 73).
“Os sonhos arquetípicos ou mitológicos têm um caráter especial, que força a pessoa instintivamente a contá-los. E esse instinto é perfeitamente explicável, já que tais fatos não pertencem à pessoa; pelo contrário, inserem-se no coletivo.” (Jung, 1971/2013a, par. 250)
Associações relacionada a pandemia COVID-19
O principal objetivo deste ensaio é relacionar as imagens oníricas com o momento histórico e coletivo. Assim, no final de cada encontro, experimentou-se aproximar estas imagens à consciência grupal e sentimentos, sensações e imagens pelo quais comuns ao atravessamento da pandemia COVID-19. A interpretação dos sonhos é menos uma técnica e mais um processo dialético entre as personalidades envolvidas (Jung, 1971/2013a), como proposto ao longo de todos os encontros e amplificações.
No primeiro e segundo sonhos, o grupo trouxe que as imagens relatadas nos sonhos, traziam sentimento de saudades do mundo antes pandemia, daquilo que não é possível mais de se viver, dos encontros, do ir e vir sem medo. “Os sonhos históricos, bem como todos os outros, tem função compensatória” (Jung, 1971/2013a, par. 247), ou seja, uma forma de realizar uma autorregulação da psique, diante da polaridade vivida na vida consciente.
Também foi relatado medo tanto de ser contaminado pelo vírus quanto a quem confiar, a dor, o desespero e as incertezas do que o vírus é capaz de fazer com o corpo, mas também a esperança do encontrar uma saída, acreditar que há algo maior, e no que precisa-se aprender com a pandemia.
Nos terceiro e quarto sonhos, foi constelado no grupo sentimentos relacionado ao momento político frente a pandemia, sobre os conflitos e divergências de manejo governamental em relação a protocolos sobre o COVID-19, sobre a agressividade do estado, injustiças sociais. Também foi abordado sobre o ter que aprender o básico, por exemplo: lavar as mãos, e o acréscimo de tempo para realizar as mesmas atividades cotidianas, pela inserção de novas práticas de higienes, o quanto adaptar ao novo é cansativo, além dos sentimentos tristeza perante o impedimento dos hábitos que eram cotidianos na vida.
No quinto e sexto sonhos, a polaridade sobre os sentimentos foi constante durante todo o encontro, ao mesmo tempo que se falava em uma jornada longa, que causava a sensação de não ter fim, do cansaço, falava-se do sentimento de alegria, do se reinventar nos encontros com familiares, amigos no formato online, do paradoxo de se aproximar mesmo distante, proporcionando a possibilidade fazer coisas novas e de se experimentar em mundo novo.
Diante deste amplo acontecimento histórico e mundial, a pandemia do COVID-19, questiona-se muito sobre as possibilidades e responsabilidades coletivas, como políticas públicas, uso de máscara, distanciamento social e demais cuidados. Mas, para além disso, é necessário voltar a atenção para o cuidado interno: refletindo sobre o modo como a pandemia e seus efeitos tem deixado marcas psíquicas em nosso tempo. A proposta desse ensaio, portanto, foi pensar de que forma as imagens oníricas expressam tal momento, refletindo e discutindo coletivamente.
Frente a grandes crises e desafios externos, por vezes há o sentimento de impotência e paralisação. Afinal, o que cada um pode diante os grandes acontecimentos? Após a Segunda Guerra, Guerra Fria, construção do Muro de Berlim Jung afirmou que “a única solução para os acontecimentos aparentemente catastróficos no mundo era o indivíduo entrar em seu interior e resolver os aspectos individuais do conflito coletivo” (Jung, 2019, p. 9). Desse modo, olhar para as produções oníricas e relacioná-las com esse momento é uma maneira de fazer um trabalho psicológico, social e político.
Jung propôs uma psicologia que facilitasse e estimulasse o autoconhecimento, sendo a conexão com os sonhos e seus simbolismos uma ferramenta importante (Jung, 2019). Mesmo em um evento inédito na vida consciente, pode-se perceber que as imagens oníricas são de natureza arquetípica, coletiva e atemporal.
A psicologia do indivíduo corresponde à psicologia das nações. As nações fazem exatamente o que cada um faz individualmente; e do modo como o indivíduo age, a nação também agirá. Somente com a transformação de atitude do indivíduo é que começará a transformar-se a psicologia da nação (Jung, 1971/2013b, p.10).
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APA – Zerbatto, B. P., & Prestes, F. S. (2020). As imagens oníricas durante a pandemia Covid-19. CadernoS de PsicologiaS, 1. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/as-imagens-oniricas-durante-a-pandemia-covid-19.
ABNT – ZERBATTO, B. P.; PRESTES, F. S. As imagens oníricas durante a pandemia Covid-19. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/as-imagens-oniricas-durante-a-pandemia-covid-19>. Acesso em: __/__/____.