Resumo: O presente trabalho tem como objetivo apresentar como uma instituição vincula ao SUS e que tem como referencial teórico a psicanálise desenvolveu suas atividades institucionais, mantendo as mesmas modalidades clinicas do formato presencial durante a pandemia do Covid 19 na forma online. O Centro Interdisciplinar de avaliação e Tratamento dos Problemas do Desenvolvimento – Espaço Escuta, atende na atualidade 90 crianças e suas famílias, neste momento de pandemia desenvolve um novo dispositivo, o atendimento online para atender as determinações governamentais de isolamento físico e social, apoiado no código de ética dos conselhos de classe. São atendidos bebês, pequenas crianças e seus familiares com diagnostico médico de autismo, hiperatividade, síndromes, prematuridade e riscos psíquicos para o desenvolvimento global. São crianças que não falam, não brincam e não tem o interesse pelo brincar e famílias que diante de um diagnostico tão delicado paralisam no seu saber e função parental. O resultado é surpreendente.
Palavras-chaves: COVID 19; Psicanálise; Saúde Pública.
Interdisciplinary team online assistance in an institution linked to SUS – Espaço Escuta
Abstract: The main goal of this article is to show how an institution linked to SUS and with psychoanalysis theorical reference developed its institutional activities, maintaining the same presential clinical modalities during Covid-19 pandemic on a digital way. The Interdisciplinary Center of Evaluation and Development Problems Treatment – place called Espaço Escuta, nowadays attends 90 children and their families. In this pandemic moment develops a new dispositive, the online assistance complying the governmental determinations about physical and social isolation, supported by code of ethics of class councils. Children, babies and their relatives with medical diagnostic of autism, hyperactivity, syndromes, prematurity and psychic risks for global development are attended. They are children who doesn’t speak, doesn’t play and doesn’t have any interesting playing and families that when faces a diagnosis so deliciated like this paralyze in their knowledge and parental function. The result is amazing.
Keywords: COVID-19; Psychoanalysis; Public Health.
Asistencia online en equipo interdisciplinario en una institución vinculada al SUS – Espaço Escuta
Resumen: El objetivo de este artigo es presentar como una institución vinculada al SUS y que tiene como referencial teórico el psicoanálisis ha desarrollado sus actividades institucionales, manteniendo las mismas modalidades clínicas del formato presencial durante la pandemia de Covid-19, pero haciendo online. El Centro Interdisciplinario de Evaluación y Tratamiento de Problemas del Desarrollo – llamado como Espaço Escuta, atiende actualmente a 90 niños y sus familias. Que, en este momento de la pandemia, desarrolló un nuevo dispositivo, la asistencia online para cumplir con las determinaciones gubernamentales de aislamiento físico y social, sustentado en el código de ética de los consejos de clase. Los bebés, los niños pequeños y sus familias con diagnóstico médico de autismo, hiperactividad, síndromes, prematuridad y riesgos psicológicos para el desarrollo global son tratados allá. Son niños que no hablan, no brincan y no hay ningún interés en brincar y familias que cuando enfrentan un diagnóstico tan delicado paralizan sus conocimientos y función parental. El resultado es sorprendente.
Palabras clave: COVID-19; Psicoanálisis; Salud pública.
A Organização Mundial de Saúde (OMS) declarou, em março de 2020, a existência da Covid-19, uma pandemia causada pelo novo coronavírus. Pandemia é o termo utilizado pela comunidade médica para indicar que há uma nova doença afetando várias regiões do mundo. Essa disseminação, que é mundial, se espalha rapidamente com transmissão sustentada de pessoa para pessoa.
Diante deste novo cenário pandêmico, o Centro Interdisciplinar de Avaliação e Tratamento dos Problemas do Desenvolvimento – Espaço Escuta, uma Organização da Sociedade Civil de Interesse Público (OSCIP), fundado em 2001, que contribui com o Município de Londrina desde 2007, com o convênio DI-TGD[1], firmado com a Autarquia Municipal de Saúde, atende atualmente 90 crianças e suas famílias por meio de abordagem psicanalítica que passou a fazer os atendimentos online.
A missão do Espaço Escuta, desde sua fundação, é de identificar precocemente indicadores de risco para o desenvolvimento infantil, visando prevenir a instalação e evitar o agravamento de distúrbios globais de desenvolvimento. Oferecer atendimento gratuito interdisciplinar a gestantes, mães/bebês, crianças e seus familiares. Ofertar cursos e espaços de discussão com profissionais das áreas de saúde, educação e social, buscando formar multiplicadores e promotores da saúde mental.
Durante os 19 anos de existência da instituição algumas modalidades de atendimento foram consolidadas como o trabalho em dupla de profissionais das áreas estruturais e instrumentais, ou das mesmas áreas, grupo de mães, grupo de irmãos, grupo de pais e o Espaço Amarelinha.
“Nós diferenciamos os aspectos estruturais (como a maturação neurológica. O desenvolvimento cognitivo, a constituição do sujeito psíquico) dos aspectos instrumentais (como as aquisições psicomotoras; o domínio da linguagem; a aprendizagem da produção gráfica; a dissociação das variáveis objetais e de espaço e tempo, bem como as relações logicas e classificatórias; a aquisição de hábitos, tais como higiene, alimentação, sono e vestuário; o brincar, que consideramos uma atividade fundamental, através da qual a criança elabora suas relações com sua realidade familiar e cultural; a socialização, que se constitui na aquisição de reconhecimento recíproco dentro de um grupo e na capacidade de dividir e participar” (Brandão & Jerusalinsky, 1990, p. 55-56).
Desse modo, o Espaço Escuta, por conta da pandemia, teve que desenvolver mais uma modalidade de atendimento, um novo dispositivo – o atendimento online.
Para desenvolver esse dispositivo o Espaço Escuta busca sustentação nos Conselhos Federais e Regionais das diversas categorias dos clínicos que atuam na instituição
Em caráter emergencial o uso do teleatendimento, entendendo aqui que o trabalho clínico passaria a ser mediado por tecnologias da informação e da comunicação, estando o terapeuta e o paciente em espaços geográficos distintos, passou a ser discutido e implantado, apoiado sempre nos decretos estaduais e municipais que orientavam sobre a necessidade do distanciamento e isolamento social e no código de ética de cada categoria profissional.
A equipe administrativa e clínica da Instituição, ao receber a informação dos decretos do isolamento social, se reuniram para considerar o que seria possível fazer neste momento. Concomitantemente os pais já passaram a avisar que não trariam seus filhos para os atendimentos já que estavam receosos com a pandemia.
Esse primeiro momento foi impactante, pois tomar decisões de algo que ainda era tão obscuro, sem informações concretas do que realmente seria o coronavírus e as consequências reais para quem fosse infectado pelo vírus, além de ter que seguir orientações da Secretaria Municipal de Saúde do Município de Londrina/DRAS[2], fez que suspendesse por dois dias os atendimentos presenciais, mantendo por videoconferência a reunião clínica que acontece semanalmente e convocando reunião extraordinária da direção clínica e administrativa para reativar as atividades de atendimento clínico. A Instituição realiza uma reunião semanal com toda equipe com duração de 2 horas para estudo e discussão de casos clínicos, oferece oito horas de supervisão clínica semanal em horários estabelecidos, onde os profissionais agendam os casos.
Durante essa reunião clínica semanal, que sempre tem a duração de 2h, teve neste dia 3h, com uma proposta diferente sendo ofertado como um espaço de supervisão, pois neste momento não foi possível pensar só nas novas diretrizes de atendimento, mas sim como um momento de acolhida aos profissionais, que estavam fragilizados diante do novo cenário. Foi um espaço de desabafo de todos para todos. No final ficou decidido que informações sobre as possibilidades de atendimento seriam repassadas às famílias das crianças atendidas. Cada profissional da área da psicologia enviaria mensagem pelo WhatsApp[3] , explicando que diante do cenário atual frente a um vírus desconhecido, os profissionais se colocavam à disposição para manter os atendimentos, de forma virtual e que nos mesmos dias e horários das sessões os profissionais entrariam em contato para o encontro. E que poderiam escolher a melhor forma para estes encontros: mensagens de texto, chamadas de vídeo, chamada telefônica, juntos encontraríamos uma maneira propícia para dar continuidade a descontinuidade que o coronavírus havia provocado.
Para os profissionais que em sua prática clínica usam a psicanálise como fio condutor de suas intervenções com as crianças, tem os pais presentes nas sessões, pois entendem que: “o que marca o ritmo do desenvolvimento é o desejo do Outro que opera sobre a criança através de seu discurso” (Jerusalinsky, 2007, p.29) e também por considerar que “o sintoma da criança acha-se em condição de responder ao que existe de sintomático na estrutura familiar” (Lacan, 1969, p.369 citado por Mariotto, 2012, p. 61). Enfatizamos que na cena terapêutica, na visão da psicanálise no trabalho clínico, “os pais participam e são convocados a exercer a marca simbólica que trazem do seio familiar. Para tanto, o terapeuta deve sair do lugar do saber e permitir a construção da subjetividade da criança” (Almeida & Melo, 2012, p. 184-185). Faz parte do trabalho clínico também o uso de vídeos, pois permitem ampliar o olhar clínico, assim solicitamos aos pais vídeos caseiros que são para conhecer o paciente desde bebê. Observamos o material já na avaliação para ver como foram os primeiros meses de vida desta criança, assim possibilita avaliar o desenvolvimento, a relação familiar envolvendo os aspectos da linguagem, os hábitos de vida diária, a psicomotricidade, a relação do corpo no espaço durante o rolar, engatinhar, sentar, andar e questões da relação entre os pais e seus bebês (envolvendo as questões orgânicas e psíquicas). Durante o atendimento propriamente dito também filmamos a sessões com autorização por escrito dos pais, com vários objetivos, entre eles: assistir e discutir com os profissionais que atendem a criança e/ou com a equipe para avaliar e pensar o direcionamento do trabalho clínico, como também para avaliar a nossa atuação enquanto profissionais na cena terapêutica. Assistir em determinados momentos com os pais, pois eles também podem se perceber na relação com os filhos, assim juntos podemos elaborar os significantes que cada cena permite e possibilitar seu reposicionamento na relação com os filhos. Durante a alta da criança da instituição como um resgate de sua história nesta trajetória de superação de seus problemas de desenvolvimento.
Mas o mais importante é que o clínico de cunho psicanalítico são por excelência os escutadores do sofrimento psíquico e tem como meta primordial sustentar o desejo e não recuar diante das adversidades que parecem impedir o seu trabalho, segundo Lasnik (2013) [os terapeutas] podem “arregaçar as mangas e trabalhar em tarefas que não estejam circunscritas ao consultório e à metapsicologia”.
Assim não ficamos sem atender as nossas crianças, reinventando novas e possíveis formas de dar continuidade a direção do tratamento e mantendo as nossas modalidades de atendimento. Para construir esses momentos, buscamos levar para as sessões virtuais elementos que estavam sendo trabalhados em sessão presencial, inclusive alguns objetos/brinquedos que eram usados para que a descontinuidade promovida por uma tela não fosse impedimento de uma resposta por parte das crianças. Continuamos num compartilhamento pelo brincar com o que já trabalhávamos, mas também com algumas inovações, criando situações que têm sido surpreendentes.
Atendemos pacientes que muitas vezes não fazem contato, troca de olhar, ainda não falam, precisam que os profissionais emprestem o corpo e a voz, bem como o imaginário e simbólico atrelado aos significantes familiares. Percebemos que foi necessário trabalhar, inicialmente, nossa resistência, imaginando que não seria possível convocá-los, via telas, com esses casos mais delicados, encontramos na convocatória pelas cantigas, jogos constituintes, esconde-esconde, armar com os pais cenas de bolas que rolam e brinquedos que caem uma maneira de nomear e emprestar sensações e compartilhar o prazer., um brincar constituinte que permite trabalhar também esse momento difícil, em que tudo se modificou e deixou de ter a continuidade que todos estavam acostumados. Foi necessário colocar palavras também nesse vazio causado pela interrupção brusca de não poder sair, ir para escola, para os atendimentos e conviver com as pessoas.
Com os maiores que estavam em outro momento, foi possível pensar em mais cenas no brincar, com esses recortes é possível compartilhar conquistas importantes.
Em uma sessão com a psicopedagoga e a psicóloga, um paciente de 7 anos que foi diagnosticado por um médico com autismo foi avaliado com um risco de psicose não decidida. Iniciou o tratamento com dois anos e sete meses e agora, após cinco anos de trabalho, está saindo desse risco de patologia grave. Esse menino, que até o segundo semestre do ano passado, ainda não se interessava pela aprendizagem, esse período de atividades da escola em casa preocupou a mãe e a nós também, em relação ao funcionamento da relação deles, mas nos atendimentos online com a mãe foi possível resgatar, elaborar, simbolizar e trabalhar questões referentes ao lugar que o filho ocupou no psiquismo materno desde o nascimento, diante da prematuridade, risco de vida, perda de alguém especial, sentimentos não elaborados, que levaram a preocupações e angústias de que nada faltasse ao seu filho.
Uma mãe não oferece seus objetos na dimensão dos parâmetros lógicos. O objeto materno não tem medida, ele não é um real, é da ordem do dom, a diferença entre o real e um dom é a diferença que vai do real ao simbólico (…). Por isso dizemos que transformar um real num dom é uma operação educativa fundamental que não tem a ver com aprendizagem, nem tem a ver com nenhuma operação pedagógica. (Jerusalinsky, 1995, p. 17-18)
Só fazendo essa transformação a mãe consegue deixar de saber tudo sobre ele e lançá-lo na aventura do desejo podendo desejar saber. Em uma cena que ele monta legos com dinossauros, começa naturalmente mostrar seus conhecimentos e seu interesse pelas questões escolares, diz que vai contar quantas peças de cada cor para cada dinossauro, divide, soma e multiplica, brincando, depois pega caneta para registrar, as quantidades e cores, pois já está lendo e mostra o desejo de escrever nos pedindo ajuda para saber as letras para o registro de cada coisa, muito encantado com suas descobertas. Esse mesmo menino, em outro atendimento agora, com um amigo como convidado, com quem participava de um grupo presencial, nos espera com desenhos de dinossauros para recortar, onde avaliamos sua coordenação, que melhorou muito. Ele havia montado com a mãe uma caixa de papel quadrada sem fundo no qual colocou um papel manteiga montando um palco para fazer um teatro de sombra, pegou uma lanterna e apagou a luz, consegue montar uma história, o outro colega em casa para entrar no clima, pegou uma lanterna e ficou assistindo atentamente, vale destacar que esse amigo veio com diagnóstico de hiperatividade.
Algumas crianças estavam resistentes às chamadas de vídeo e foi proposta outra forma de atendimento por meio de mensagens escritas, áudios e vídeo. Um recorte que ilustra bem essa outra possibilidade de atendimento é o de uma menina que no início do ano estava começando a falar alguns sons, sílabas, ainda não sustentava uma brincadeira, nem estava interessada nas letras e tinha iniciado apenas alguns traços de desenho. Já a mãe estava muito presa ao diagnóstico de autismo dado pelo médico e pensava que a filha não compreendia o que lhe era dito, em função disso, inicialmente, foi bem difícil para mãe lidar com as atividades da escola, sem saber se ela conseguiria acompanhar, se conseguiria ficar sentada, concentrada, nas mensagens começamos a reconhecer que nas sessões ela estava começando sentar para desenhar, ela mesma havia compartilhado fotos da paciente brincando de escolinha com a irmã, momentos que ficava um bom tempo sentada, mas ainda era difícil para ela reconhecer essa capacidade, pois o peso desse diagnóstico, em alguns casos impede os pais de olharem para o filho em sua singularidade e passa a ver o que os autistas podem ou não fazer.
Começamos a compreender que se ela ficava sentada e concentrada na brincadeira com a irmã, mostrava sua capacidade e interesse e a mãe, apoiada nisso, começou a colocar as duas irmãs juntas para fazer as atividades. A paciente ao ver essa aposta e reconhecimento conseguiu sustentar e se reposicionar frente a esse desafio e a mãe foi se surpreendendo com a capacidade dela. Pelas mensagens, filmagens e fotos que ela mandava, fomos reconhecendo o potencial, primeiro, da mãe que não se sentia segura e capaz, já que foi possível demonstrar capacidades que nem ela sabia que tinha e seu encantamento e desejo foram o fio condutor de toda construção que a filha vem fazendo. A mãe nos disse, depois de dois meses, que agora sabe que sua filha compreende tudo. Jerusalinsky (2012, p. 74) “assim o Desejo da Mãe faz essa passagem à categoria de Significante. Cujo significado consiste na imaginarização de um sujeito que participa da insígnia fálica, que não é mais do que o Nome do Pai (Significante Primordial e Fundante) metaforizado”. Mostramos para ela que isso faz com que a filha se sinta autorizada a mostrar seu potencial, depois disso a paciente se mostrou ainda mais envolvida com as atividades e está aprendendo a escrever, construindo todos os requisitos para aprendizagem. Avaliamos nas mensagens e vídeos que o que tem sido fundamental é que, paralelo a isso, incentivamos a participação nas atividades da cozinha, onde ela vivencia, os conceitos de quantidade, a importância da leitura para ver as receitas, isso também tem feito ela provar coisas novas, tem se interessado por brincadeiras e já começa a criar uma narrativa nas histórias e sua expressão mudou, está começando falar frases. Aceita bem as atividades escolares e a mãe recebeu até reconhecimento da escola. Quando ela apresenta resistência à algumas atividades, a mãe inventa brincadeiras que envolvam questões que precisam ser trabalhadas. Nesse caso as mensagens e ligações com a mãe acolhendo suas angústias e reconhecendo seu potencial e a da filha, foram fundamentais.
Em todos os casos trabalhamos assim com os pais, mas esse, especificamente, por ter sido com mensagens teve um destaque ainda maior. Nesse recorte também confirmamos a importância de aprender pelo brincar, no qual algumas crianças têm pulado algumas etapas ao entrar cedo na escola, ficar em frente às telas, tem impedido a construção com conhecimento que deve ser realizado no brincar. Neste recorte clínico, vamos construindo possibilidades que já estavam dentro da direção de tratamento para ela e usando a brincadeira, que é o nosso instrumento de trabalho.
O brincar é o próprio trabalho de constituição do sujeito na infância, da inscrição da letra na borda entre gozo ao saber. […] No brincar, a criança não só posta em cena do inconsciente, mas a própria possibilidade, o próprio estabelecimento de inscrições constituintes do sujeito na infância. (Jerusalinsky, 2011, p.236)
Assim, o trabalho clínico, apesar da terapeuta, criança e mãe estarem em lugares distintos, a voz é capaz de modular e mudar um movimento, pois o clínico não deve se ocupar só em observar e analisar o brincar da criança, mas participar ativamente, através das palavras e modulação vocal, do interesse pelo o que acontece na cena terapêutica, permitindo que a criança simplesmente exercite o seu brincar, possibilitando que haja articulação entre o real, simbólico e imaginário.
Outro dispositivo da instituição é o trabalho em dupla, formadas por pacientes crianças que estão passando pelo mesmo período quanto a sua constituição subjetiva. Todas já são atendidas individualmente e recebem mais um atendimento em dupla e neste período conseguimos manter esse formato de trabalho. Mais um caso clínico, esse feito pelo WhatsApp, além das crianças também tinha uma dupla de profissionais, formada por uma fonoaudióloga e uma psicóloga.
Uma tem sete e a outra tem nove anos, a proposta da sessão era o trabalho com o processamento auditivo, onde a partir de uma palavra, eles tinham que formar outras palavras. Iniciamos com o sobrenome de uma das crianças – Amaro -, nesta palavra podemos encontrar quatro palavras: ama, amar, mar e aro. Foi preciso demonstrar a forma como deveria executar a brincadeira e eles podiam usar a escrita como apoio visual. As outras palavras trabalhadas foram computador, luva, identidade. Mas o que é importante ressaltar aqui, enquanto trabalho clínico, além do processamento auditivo foram as questões psíquicas e emocionais que decorrem da brincadeira estruturante. Para a criança menor, não ser o ganhador gerou uma frustação, ele pôs se a chorar, não aceitando o fato de não saber sobre as coisas, com isso ele se desorganiza e tem dificuldade em escutar o outro neste momento. Foi preciso a intervenção da psicóloga apresentando que aqui não era ganhar ou perder, mas sim fazer uma troca com o seu amigo, estar atento as situações e poder falar sobre a sua frustação. Este fato foi retomado na sessão individual que ele teve com a psicóloga. Para a outra criança foi o contrário: ela não ficou angustiada por não saber, não buscou alternativas ou tentou aprimorar, ela acertou uma das palavras e foi o suficiente. Fato que também foi preciso trabalhar, pois esse seu posicionamento tem efeitos na sua aprendizagem escolar. Ele também teve a oportunidade de trabalhar as questões do desejo em saber, fazer construções e associar com a aprendizagem, durante seu atendimento individual.
As possibilidades de trabalho vão surgindo, a criatividade e o empenho do clínico não trazem surpresas, já que a equipe sempre foi compromissada com, sempre demonstraram domínio de que fazem, mas provam que quando se tem como base a psicanálise, o que se tem como norteador é
uma clínica que permita estabelecer a costura, alinhavar o tecido entre a rede simbólica que rodeia o bebê [e a pequena criança] a construção da imagem corporal, o estabelecimento do esquema e o modo de funcionamento das funções. Portanto é preciso uma clínica da primeira infância que se ancore em uma formação e interlocução interdisciplinar. (Jerusalinsky, 2008, p. 46)
Diante desta consideração vamos apresentar mais um caso (atendimento por uma fonoaudióloga e uma psicóloga): uma garota que tem uma síndrome, característica muito similar do seu tio e avô paterno. No atendimento presencial já estava sendo trabalhado que apesar das marcas físicas e orgânicas, ela era um sujeito diferente, com história diferente, com uma mãe que apostava nas suas possibilidades. Tivemos uma sessão ímpar quando o seu choro contido por tanto tempo apareceu para demonstrar o seu entendimento e sua busca por ser ela, apesar das características sindrômicas e, na sequência, um sorriso meigo e agradecido surge em seus lábios. A partir desta cena, o trabalho terapêutico torna-se mais dinâmico e ativo, o desejo de ser um ser desejante comparece. Na área da comunicação, ela já estava se fazendo entender pelos gestos, mas agora as palavras começaram a surgir, principalmente o nome de sua psicóloga, que permitiu esse encontro subjetivo. As questões motoras são reais, exemplo: ela passou a ter mais vontade de levantar-se sozinha. Surpreendentemente encontramos no atendimento virtual outro aliado do nosso trabalho clínico, só que agora num novo set, sua casa, que é em um sítio próximo à cidade. Numa das sessões onde o objetivo era o trabalho com equilíbrio e percepção corporal, as terapeutas pediram para a mãe colocar a música “Cabeça, ombro, joelho e pé”, as terapeutas também colocaram e contaram até três para que todos iniciassem a música juntos, que sessão divertida! Mãe e filha no quarto dançando, seguindo a instrução da própria música e cada terapeuta em sua casa, todas dançavam, no final a nossa garota pede “a um” (mais um), querendo repetir a atividade. Conseguimos acompanhá-la através do incentivo da fisioterapeuta com a colaboração da mãe ao subir e descer da porteira, aqui trabalhando também a noção de espaço, tempo e troca dialógica.
Ao final destes três meses de atendimento online, encontramos uma garota mais sorridente, com menos coceiras no rosto (tinha muito esse movimento diante de suas dificuldades), com muitas palavras novas surgindo, ampliando seu sistema linguageiro e, o mais bacana, relação mais carinhosa entre mãe e filha. A diminuição da frequência das atividades que ela participava – escola, atendimentos clínicos, formação religiosa, massagem, natação -, liberou mais tempo para essa mãe e filha compartilharem momentos prazerosos.
Mas nem tudo é efetivo e eficaz, muitas famílias não tem os recursos necessários para receber todos os atendimentos e algumas crianças ainda não estão preparadas para o atendimento online.
A pandemia atinge a todos, mas não igualmente, temos variáveis que interferem de modo acentuado na vida das pessoas, como a vulnerabilidade social e a infecção do vírus em detrimento a idade e as comorbidades. Algumas famílias, com poucos recursos, não tem acesso à internet ou até tem, mas os celulares não tem todos os recursos facilitadores para esses encontros e os atendimentos ficam limitados a escuta dos familiares, pelo telefone ou mensagens de texto, mesmo assim os resultados podem surpreender, como o garoto que no presencial tinha atendimento da fonoaudióloga e da psicóloga e a mãe apresentava uma timidez que dificultava sua comunicação quando se tratava de dar voz aos seus sentimentos e vivências. No atendimento online, somente a psicóloga tem atendido, o celular da mãe não tem WhatsApp e o pai sai com o dele para o trabalho. O garoto não gosta de ficar diante da câmera quando o pai está em casa, ele só dá oi e sai de cena, então o atendimento tem sido a escuta para a mãe, que tem trazido dados riquíssimos que corrobora com o entendimento da dinâmica familiar, a psicóloga aproveita esse momento para dar voz à mãe, que traz como resultado a desenvoltura que o filho tem apresentado neste período. Lacan (s/d citado por Alfredo Jerusalinsky, 1998, p. 41) diz que “o Outro para a criança não pode ser anônimo. Nisso reside à importância da mãe, e esse enredo – no sentido teatral – constitui a pregnância de seu fantasma na vida de todo o sujeito”.
A dinâmica da instituição se manteve, assim continuamos com os horários das reuniões administrativas e clínica, organizamos horários para que mais supervisões e grupos de estudo acontecessem, pois sabemos que neste momento é necessário um plano de trabalho para dar sustentação ao cotidiano e como disse Julieta Jerusalinsky em uma live[4] (28/05/2020) os clínicos são como o GoogleMaps que precisam recalcular as rotas para dar continuidade ao trabalho neste momento em que as crianças passaram a conviver com adultos preocupados com o rumo que a vida vai tomar e com pais que passam a conviver com o desconhecido de sua casa, além do enfrentamento do medo e da insegurança que a pandemia trouxe. Assim as supervisões clínicas ajudam a ressignificar e a organizar o trabalho, refazendo e criando estratégias de atendimento.
Também organizamos dois horários de estudo teóricos e participamos de discussões com equipes de outras cidades e estados buscando mantermos atualizados e mais preparados para o trabalho clínico. Agora não mais de forma presencial, mas virtual.
A pandemia da Covid-19 tem se apresentado como um dos maiores desafios sanitários deste século e o conhecimento científico ainda é insuficiente para apresentar formas adequadas para enfrentá-la. A saúde pública frente à alta velocidade de disseminação do novo coronavírus e a sua capacidade de provocar mortes em populações vulneráveis está num momento da ressignificação da saúde pública, principalmente no que se refere à saúde mental no Brasil e no mundo.
O fato das pessoas ficarem mais em casa, sem o contato com seus semelhantes, sentindo saudades de estar com aqueles que lhe são importantes, as crianças sem a escola, sem os amigos, podem ficar embotados e desanimados diante de tantas mudanças bruscas que não foram anunciadas e que não encontram respostas para suas indagações e inquietações.
Um diferencial importante que favoreceu o bom atendimento por vídeo, foi o fato de que a filosofia de trabalho do Espaço Escuta atribui grande importância ao trabalho com os pais, tanto em sessão quanto em escuta individual e grupos de escuta com os pais, esse acolhimento e o reconhecimento de que os pais precisam ser parceiros no tratamento com os filhos possibilitou construir formas diferentes de cenas: às vezes eles no vídeo e sustentando nossa fala com as crianças que perambulavam pela sala, em outros momentos sentados com as crianças no chão ou sofás ou camas, com tinta, água, pecinhas, papéis e panos, às vezes no quintal ou armando sustentação na construção de histórias. Em casos que as crianças ainda não ficam sozinhas.
A experiência também no coletivo trouxe uma partilha de conhecimento através de debates virtuais, live e trocas entre os mais diversos profissionais que atuam direta ou indiretamente na saúde pública. E ao estarmos vivos, temos a oportunidade de criar laços e construir novos dispositivos de atendimento.
Como qualquer dispositivo, é uma ferramenta e, como usá-lo depende da pertinência e possibilidade clínica. É a partir da clínica que se decide, nunca na direção contrária. Daí que, enquanto clínicos, sempre estejamos abertos a refletir acerca de como produzir nossas práticas de acordo ao que seja possível para a equipe e necessário para o paciente. (Almeida & Melo, 2012, p.184)
[1] Convênio DI-TGD – contrato pactuado entre sete instituições que atendem crianças com Deficiência Intelectual (DI) e Transtornos Globais do Desenvolvimento (TGD) com o Município De Londrina para prestação de serviços de reabilitação, esse nome foi modificado, pois antes era Deficiência Mental e Autismo,(portaria que prevê esses atendimentos) O Espaço Escuta solicitou mudança, pois justifica que o autismo não é uma deficiência mental, e nem se restringe só a autismo o atendimento.
[2] DRAS- Diretoria de Regulação da Atenção à Saúde.
[3] WhatsApp – aplicativo de troca de mensagens e comunicação em áudio e vídeo pela internet, disponível para smartphones Android, IOS.
[4] Forma de transmissão bastante utilizada neste período de pandemia. Esta live citada aconteceu no dia 28-05- 2020 pelo YOUTUBE, num ciclo de encontros online que falou sobre A psicanálise com crianças em tempo de COVID 19 – o trabalho com famílias e crianças pequenas.
Almeida, C. J. C., & Melo, M. S. (2012). Considerações sobre a intervenção em dupla terapêutica na formação do clínico em estimulação precoce: uma construção clínica no enlace entre estrutural e instrumental. In M. C. M. Kupfer, L. M. F. Bernardino & R. M. M. Marioto (Orgs.), Psicanálise e ações de prevenção na primeira infância (pp. 175-200). São Paulo, SP: Escuta/Fapesp.
Brandão, P., & Jerusalinky, A. (1990). A trajetória da Estimulação Precoce à Psicopedagogia Inicial. Escritos da Criança, 3, pp. 55-66.
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APA – Almeida, C. de J. C., & Melo, M. de S. de. (2020). Atendimentos online em equipe interdisciplinar em instituição vinculada ao SUS – Espaço Escuta. CadernoS de PsicologiaS, 1. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/atendimentos-online-em-equipe-interdisciplinar-em-instituicao-vinculada-ao-sus-espaco-escuta.
ABNT – ALMEIDA, C. DE J. C.; MELO, M. DE S. DE. Atendimentos online em equipe interdisciplinar em instituição vinculada ao SUS – Espaço Escuta. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/atendimentos-online-em-equipe-interdisciplinar-em-instituicao-vinculada-ao-sus-espaco-escuta>. Acesso em: __/__/____.