Revista CadernoS de PsicologiaS

Atuação do Psicólogo Judiciário durante a pandemia:
um relato de experiência

Carolina Ribeiro Ambrozio Vaz
Tribunal de Justiça do Estado do Paraná

Psicóloga (CRP-08/10226). E-mail: carolambrozio@yahoo.com.br
Sidney Shine
Psicólogo (CRP-06/18950). E-mail: sidneyshine1@gmail.com
#Relatos_de_Experiência

Resumo: A doença causada pelo novo coronavírus tornou-se uma emergência de saúde pública. O Poder Judiciário mudou radicalmente seu funcionamento. No Paraná, os fóruns permanecem fechados até 15 de setembro de 2020. Este artigo apresenta um relato de experiência de uma família atendida remotamente em uma comarca do Paraná. A metodologia utilizada pressupõe entrevistas remotas somente com os adultos. A contextualização da dinâmica familiar foi suficiente para que houvesse um desfecho provisório para o caso. O artigo não visa esgotar o tema da realização de estudos de caso no contexto forense por meio das tecnologias de informação e comunicação (TICs), mas a apresentação de uma metodologia possível e as reflexões que acompanharam sua realização e avaliação. Sugere-se que o psicólogo enfrente os desafios da avaliação psicológica pericial on-line, frente à necessidade de atendimento dos jurisdicionados e dos operadores do direito.

Palavras-chaves: Psicologia Jurídica; tecnologias da informação e comunicação; COVID-19.

The acting of the Judiciary Psychologist during the pandemics: an experience report

Abstract: The illness caused by the new coronavirus has become an emergency for public health. The Judicial Power has radically changed its operation. In Paraná, the courts of law have been kept closed until the 15th of September 2020. This article presents a case study of a family that was remotely assisted in a county in Paraná. The used methodology presupposes adult-only remote interviews. The contextualization of the family dynamics was enough to provide means for a provisional sentence for the case. This article doesn’t intend to address all the topics on information and communication technology (ICT) use in forensic contexts. It is rather an example of a possible methodology and the thoughts elicited in its accomplishment and assessment. It is suggested that the psychologist faces the challenges of forensic psychological online evaluation to meet the needs of the families and those of the legal professionals.

Keywords: Forensic Psychology; information and communication technology (ICT); COVID-19.

Actuación del Psicólogo Forense durante la pandemia: un informe de experiencia

Resumen: La COVID-19 se volvió una emergencia de sanidad pública. El Poder Judicial cambió de forma significativa su funcionamiento. En el Estado brasileño de Paraná, los juzgados permanecerán cerrados hasta septiembre de 2020. Este artículo presenta un relato de una familia asistida remotamente en un distrito judicial de Paraná. La metodología utilizada presupone entrevistas remotas exclusivamente con adultos. La contextualización de la dinámica familiar fue lo suficiente para que hubiera un desenlace provisorio al caso jurídico. Este artículo no se propone a finalizar el tema de la realización de análisis de caso en el contexto forense por medio de las TICs, sino a presentar una metodología posible y las reflexiones que acompañaron su realización y evaluación. Se sugiere que el psicólogo enfrente los desafíos de la evaluación psicológica pericial en línea, ante la necesidad de asistencia de la demanda de los pertenecientes a la jurisdicción y de los juristas.

Palabras clave: Psicología Jurídica; tecnologías de la información y la comunicación (TIC); COVID-19.

Introdução

O surto da doença causada pelo novo coronavírus (Sars-Cov-2), batizado de COVID-19, tornou-se uma emergência de saúde pública de relevância internacional (Organização Pan-Americana da Saúde/Organização Mundial da Saúde, 2020). Com isso, o Poder Judiciário mudou radicalmente seu modo de funcionamento. O Conselho Nacional de Justiça (CNJ) publicou a Resolução no. 313, em 11 de março de 2020, que estabeleceu o regime de plantão extraordinário; a suspensão do trabalho presencial de magistrados, servidores, estagiários e colaboradores nas unidades judiciárias nos tribunais; o atendimento dos usuários por meio de recursos tecnológicos e a suspensão dos prazos processuais.

No Paraná, os fóruns permanecerão fechados até o dia 15 de setembro de 2020 com a publicação do Decreto Judiciário no. 397/2020, sendo a primeira determinação de fechamento ocorrida em 16 de março (Decreto Judiciário no. 161/2020).

Diante deste cenário, os psicólogos judiciários foram compelidos a refletir sobre novas estratégias de atuação: possibilidades e limitações das avaliações psicológicas on-line; adaptação de técnicas psicológicas ao contexto remoto; desenvolvimento de novas técnicas de coleta de dados e elaboração de documentos com os cuidados necessários durante o período de fechamento dos fóruns dos tribunais de justiça. Neste novo contexto de atuação dos psicólogos há um duplo desafio: a interação com os usuários e com os profissionais de outras categorias no mundo virtual.

Esse texto tem como objetivo apresentar um relato de experiência do atendimento de uma família em disputa de guarda de filho atendida remotamente pela primeira autora com a supervisão on-line do segundo autor, durante o período de fechamento do fórum em uma comarca do Paraná. Apresentamos os procedimentos realizados para o estudo de caso com a utilização da tecnologia de informação e comunicação. Discutimos sobre as dificuldades encontradas, as limitações técnicas enfrentadas e as reflexões éticas realizadas.

O atendimento psicológico on-line no Brasil: breve retomada histórica

O atendimento psicológico remoto no Brasil, também conhecido como prestação de serviços por meio de Tecnologias de Informação e Comunicação (TICs), possui uma construção histórica com a publicação de seis documentos pelo Conselho Federal de Psicologia (Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº. 02/1995, nº. 03/2000, n°. 12/2005, nº. 11/2012, nº. 11/2018 e nº. 04/2020).

A primeira Resolução, datada de 1995, vedava o oferecimento de serviços de tele aconselhamento por entender que tal prática não atendia os critérios mínimos científicos estabelecidos no campo da Psicologia na época.

Os avanços tecnológicos da informática e da internet permitiram um aumento dos recursos para o oferecimento de serviços de psicologia à distância. A Resolução do Conselho Federal de Psicologia nº. 03/2000 autorizava o atendimento psicoterapêutico mediado pelo computador bem como as orientações psicológicas, os processos de seleção de pessoal, as consultorias a empresas, a utilização de testes psicológicos informatizados e a reabilitação cognitiva, ainda em caráter experimental.

Em 2005, o Conselho Federal de Psicologia (CFP) instituiu uma comissão nacional de credenciamento de sites de psicologia e permitiu a cobrança de honorários na prestação de serviços psicológicos mediados pelo computador desde que não psicoterapêuticos

A quarta resolução do CFP sobre o tema autorizou a realização de supervisão de psicólogos, de forma eventual ou complementar à formação profissional presencial, e acrescentou a possibilidade da oferta do serviço a crianças e adolescentes.

A Resolução CFP nº. 11/2018 é um marco no Brasil para os serviços de psicologia on-line, pois há o reconhecimento científico dessa modalidade de atuação na Psicologia. Segundo o Art. 2º.  da Resolução CFP nº. 11/2018:

Art. 2º – São autorizadas a prestação dos seguintes serviços psicológicos realizados por meios tecnológicos da informação e comunicação, desde que não firam as disposições do Código de Ética Profissional da psicóloga e do psicólogo a esta Resolução:

I. As consultas e/ou atendimentos psicológicos de diferentes tipos de maneira síncrona[1] ou assíncrona[2];

II. Os processos de seleção de pessoal;

III. Utilização de instrumentos psicológicos devidamente regulamentados por resolução pertinente, sendo que os testes psicológicos devem ter parecer favorável do Sistema de Avaliação de Instrumentos Psicológicos (SATEPSI), com padronização e normalização específica para tal finalidade.

IV. A supervisão técnica dos serviços prestados por psicólogas e psicólogos nos mais diversos contextos de atuação.

§ 1º. – Entende-se por consulta e/ou atendimentos psicológicos o conjunto sistemático de procedimentos, por meio da utilização de métodos e técnicas psicológicas do qual se presta um serviço nas diferentes áreas de atuação da Psicologia com vistas à avaliação, orientação e/ou intervenção em processos individuais e grupais. (Conselho Federal de Psicologia, 2018, p. 2)

Em virtude da pandemia de COVID-19 e das recomendações sanitárias, o CFP publicou a Resolução CFP nº. 04/2020 em 26 de março de 2020, suspendendo de forma excepcional e temporária os artigos 3º, 4º, 6º, 7º e 8º da Resolução CFP nº. 11/2018. Com a suspensão desses artigos, o CFP tornou mais ágil o cadastro de psicólogos no e-Psi (site do Conselho Federal de Psicologia[3]), requisito obrigatório para o profissional se utilizar das TICs, em sintonia com a necessidade emergencial da utilização de tal recurso. Além disso, possibilitou o atendimento com uso das TICs, de forma extraordinária durante a pandemia, de pessoas e grupos em situação de violação de direitos ou de violência. Estes são os casos que chegam aos tribunais de justiça, cuja atuação profissional do psicólogo judiciário é demandada.

A realidade do atendimento on-line no Brasil

A Resolução CFP nº. 11/2018 possibilitou uma nova configuração do atendimento psicológico com um novo setting terapêutico, sem consultórios, cadeiras ou divãs. No entanto, no Brasil, esta modalidade de prestação de serviço é ínfima se comparada as experiências internacionais, inclusive quanto à regulamentação, diretrizes e publicações científicas (Pieta & Gomes, 2014; Pires, 2015; Feijó, Silva, & Benetti, 2018).

Halberg e Lisboa (2016), numa pesquisa realizada com 155 psicólogos brasileiros, concluíram que as TICs estão significativamente presentes na vida dos psicoterapeutas, mas são pouco utilizadas no âmbito profissional. Os psicólogos declararam que acessavam diariamente a internet para a realização de atividades relacionadas à comunicação interpessoal, busca de informações em geral e pesquisas relacionadas ao aprimoramento profissional. Em contraposição, apenas 21,2% dos participantes afirmaram prestar ou já ter prestado algum tipo de serviço psicológico via web.

Importante ressaltar que esta pesquisa ocorreu na vigência da Resolução CFP nº. 11/2012, quando o atendimento psicológico on-line era de caráter experimental e havia exigências específicas para o desenvolvimento de pesquisas na área.

Observa-se, ainda, que a formação em Psicologia, em níveis de graduação e pós-graduação, oferece poucos recursos para o desenvolvimento de habilidades profissionais do psicólogo no mundo virtual (Stoque, Scotton, Lisboa, & Neufeld, 2016; Feijó, Silva, & Benetti, 2018). Pires (2015) alerta que a revisão da literatura nas bases de pesquisa on-line demonstra que muito pouco se escreveu sobre os tratamentos psicoterápicos e analíticos à distância por telefone, via Skype ou e-mails.

Se existe carência na formação e produção científica quando se pensa na psicoterapia on-line, na área da avaliação psicológica on-line a realidade não é diferente. Um exemplo disso é a escassez de testes psicológicos favoráveis do SATEPSI que preveem a aplicação on-line, havendo apenas quatro instrumentos de avaliação que preenchem tal requisito (Marasca, Yates, Schneider, Feijó, & Bandeira, 2020).

O atual contexto nacional exige a priorização ao máximo de atendimentos na modalidade on-line e a suspensão de atendimentos presenciais (Peuker & Almondes, 2020), assim resta avançar na produção científica na área de avaliação psicológica on-line.

Avaliação psicológica on-line: uma atividade para os psicólogos judiciários?

Diante das incertezas da atuação profissional no contexto da pandemia, em maio de 2020, o CFP divulgou o Ofício Circular no. 63/2020/Gtec/CG/CFP. Neste documento, o CFP recomenda que o uso de tecnologias de informação e comunicação no âmbito do Sistema de Justiça se restrinja aos procedimentos da atuação profissional que não levem a conclusões técnicas ou qualquer outra forma de decisão. Ou seja, indica a realização de reuniões com profissionais da rede de serviços, discussões de casos com assistentes técnicos, agendamentos, planejamento das intervenções, indicação de diligências, quando possível etc. Além disso, recomenda que, quando possível, os questionamentos dos operadores do direito sejam respondidos por meio de parecer psicológico, documentos não decorrentes de avaliação psicológica, explicando às autoridades e partes envolvidas sobre as limitações momentâneas para responder à demanda por meio de avaliações e atendimentos presenciais. Também, sugere que sejam utilizadas as TICs para orientação e acompanhamento dos casos já iniciados pelo profissional, os quais foram atendidos anteriormente, de forma presencial. Por fim, recomenda que os documentos psicológicos produzidos neste período assinalem a observação quanto à sua elaboração, em situação de excepcionalidade, por conta da pandemia de COVID-19.

Entendemos que tais recomendações do Ofício Circular no. 63/2020/Gtec/CG/CFP visam basicamente garantir o direito das pessoas avaliadas no que se refere ao sigilo, qualidade técnica-científica e preceitos éticos da atuação profissional. Assim como, também preservar o psicólogo de ser questionado técnica e eticamente quanto ao resultado de uma avaliação que ainda não possui uma fundamentação consolidada na comunidade científica. Esta recomendação se alinha com a compreensão de que o enquadre forense se distingue do enquadre clínico, pois “não é caracterizado pela voluntariedade do avaliando quanto ao procedimento, mas pela coercibilidade da tarefa pericial, já que o objetivo é a produção de provas e resultados avaliativos” (Conselho Federal de Psicologia, 2020b, p.2). Por conta disso, os autores se utilizaram de procedimentos pautados dentro dos limites assinalados acima para o atendimento de uma família em disputa de guarda numa comarca do estado do Paraná. A metodologia desenvolvida pelos autores demonstra que os atendimentos na área forense, durante a pandemia, podem ocorrer com a composição de entrevistas remotas e presenciais.

Relato de experiência: um caso de disputa de guarda

Para o relato de experiência, selecionamos um caso de pedido de guarda encaminhado para avaliação psicológica/estudo de caso pela equipe da Psicologia lotada em fórum de uma comarca do estado do Paraná.

Os autores tomaram o cuidado de obter a concordância por escrito dos pais envolvidos na lide, da magistrada responsável pelo caso e da autoridade administrativa do fórum em que o caso tramita. Além disso, os dados identificatórios tanto dos usuários quanto dos profissionais envolvidos foram suprimidos ao máximo.

O caso selecionado para atendimento remoto foi escolhido baseado nos seguintes critérios: 1) aceitação dos interessados na participação da entrevista remota e 2) ausência de instrumentalização da criança, pois supostamente, seria um caso de menor nível de litigiosidade, ou seja, apesar das divergências, havia uma preservação do filho em comum em algum grau. A família ainda não havia sido atendida pelo Setor de Psicologia onde está lotada a primeira autora. O atendimento da família, no cumprimento da determinação judicial, se iniciou com o atendimento remoto. Portanto, não se trata de um caso atendido para atualização dos dados.

Os pais disputavam a guarda de um filho do sexo masculino de 11 anos. A mãe de 49 anos, microempreendedora, solicitava a guarda unilateral e regulamentação da convivência entre pai e filho em finais de semanas alternados, além de visitas em três dias úteis das 18h às 22h. O pai de 52 anos, servidor público, almejava a guarda compartilhada, alegando que o filho se alternava entre as casas paterna e materna a cada três dias. Esta combinação se mantinha há quase um ano. Durante a pandemia, a alternância entre os lares continuou sem alterações.

A leitura dos autos permitiu, também, elencar os pontos principais a serem abordados numa entrevista. Nos autos do processo, normalmente, constam os telefones das partes e dos respectivos advogados. Esse foi o meio utilizado para abordá-los. Mais à frente explicamos o motivo desta escolha.

No decorrer dos autos, havia petições e diversos documentos (boletins de ocorrências, conversas de whatsapp, atas notariais, declarações escolares e anotações de agenda escola), os quais permitiram avaliar o grau de litigiosidade do caso. Uma vez em posse dos dados que dão um contexto histórico e institucional ao caso, passamos à realização das intervenções profissionais, propriamente ditas, por meio da realização da entrevista remota e do contato com uma psicóloga retratada como psicoterapeuta do menino. O último passo foi a discussão do caso e a elaboração do relatório psicológico por meio da supervisão em plataforma Zoom[4].

A separação foi de iniciativa da mãe, sendo recente (março de 2019), com a impetração de ação de divórcio, pedido de guarda, regulamentação de visitas e alimentos. O casal estava casado desde 2009, tendo havido uma crise anterior (pedido de divórcio consensual) em 2014, seguido de uma reconciliação. A gota d’água para a separação foi justificada por uma “agressão física”. Esta versão é contestada pelo, então marido, apontando testemunhas que esclareceriam o ocorrido. Ele solicita a guarda compartilhada do filho e abre-se a disputa pelo estabelecimento da residência fixa do menor.  

Um ponto importante quando se decide a guarda residencial é o acompanhamento competente da rotina escolar dos filhos. Os autos traziam anotações de que o garoto apresentava tarefas incompletas, perda de bilhetes escolares e comportamentos tais como sonolência (dormiu na aula algumas vezes) e agressividade (brigas com colegas).

A rotina do garoto na casa de ambos os pais e as atividades escolares se afiguravam, desde o início, como pontos importantes. Tal foco foi determinado pelo próprio despacho demandando a avaliação psicológica e social, ao qual se refere como “sindicância psicossocial”.

A determinação judicial permite discriminar os pontos controversos do processo aos quais caberá o psicólogo (e o assistente social) responder, a saber: a) atual contexto no qual o menor está inserido; b) modalidade de guarda que atenda seus interesses; c) medidas que os pais estão pondo em prática em relação aos problemas apontados na agenda escolar. Perceba o leitor que o juiz determina aquilo que a avaliação pericial deverá responder. Cabe ao profissional “traduzir” tal demanda em termos operacionais e conceituais de sua disciplina e buscar os métodos adequados para sua pesquisa/investigação.

Entendemos que a autoridade judiciária é quem demanda a perícia. Portanto, ela pode estipular o prazo para quando quer tal resultado; neste caso, 30 dias. Mas, o psicólogo é autônomo não só para escolher e decidir a melhor estratégia psicológica para cada caso, como também para adequar a avaliação à disponibilidade de tempo e recursos. Ao final, seu trabalho será valorizado a partir do que trouxer de elementos que elucidem os pontos controversos que importam ao magistrado.

Para o início das entrevistas remotas, as partes do processo foram contatadas, deixando-as a par da situação enfrentada pela equipe técnica, ou seja, da impossibilidade do atendimento presencial que normalmente seria feito em todos os casos. Na sequência, foram indagadas sobre a concordância quanto à participação na entrevista remota por meio de ligação telefônica. Com o aceite verbal, a primeira autora deu prosseguimento aos procedimentos previamente estabelecidos na supervisão on-line com o segundo autor. Importante esclarecer que a escolha da ligação telefônica foi pensada a partir das seguintes características: (a) acesso fácil à população[5]; (b) maior privacidade em relação à videochamada, pois as perguntas do entrevistador não são ouvidas por terceiros; (c) menor risco de instabilidade no sinal e interrupção da interação; d) facilidade e familiaridade do uso de aparelho celular, independente de faixa etária e nível sociocultural. Considerou-se também que mesmo com acesso à internet, nem sempre há qualidade e estabilidade de sinal para a realização de videochamadas ou videoconferências com utilização de plataformas tais como Zoom ou aplicativos como o Skype.

Com o objetivo de preservação do sigilo, a profissional mantinha-se no escritório de casa com as portas fechadas e utilizava fones de ouvido, restringindo o vazamento das respostas dadas pelos entrevistados. Destaca-se que a profissional fez uso do próprio número e aparelho de telefone, em seu ambiente doméstico, por conta do isolamento social ao qual também estava sujeita.

A primeira autora orientou que os entrevistados permanecessem, durante a ligação telefônica, em local silencioso, privado e sem pessoas próximas. Ainda, combinou-se que, caso houvesse interrupção do sinal, a profissional retornaria imediatamente a ligação telefônica. Orientou que os entrevistados interrompessem a conversa imediatamente, caso houvesse prejuízo do sigilo como, por exemplo, a entrada de uma criança no cômodo. Os pais foram informados que poderia haver a necessidade de procedimentos adicionais realizados na modalidade presencial, após a reabertura do fórum, caso esta fosse a compreensão técnica da profissional ou do magistrado. 

Para a realização da entrevista remota, utilizamos a entrevista semiestruturada (Bleger, 1998) com perguntas abertas que, partindo da contextualização da família de forma mais ampla, foi se afunilando para a questão da rotina escolar e das respectivas assistências paterna e materna.

O contato com a psicoterapeuta responsável pela criança foi feito após uma análise preliminar das abordagens mantidas com cada genitor. Por meio de documento escrito intitulado “Declaração” enviada por e-mail, a psicóloga forneceu dados referentes ao início do acompanhamento psicológico, número de sessões e participação dos pais. A profissional não adentrou nos aspectos relacionados à demanda inicial da psicoterapia e sua evolução, pois preferiu manter o sigilo nestas questões.        

Com relação ao atendimento psicológico on-line de crianças e adolescentes, o artigo 5º. da Resolução CFP no. 11/2018 define que poderá ocorrer “com o consentimento expresso de ao menos um dos responsáveis legais e mediante avaliação de viabilidade técnica por parte da psicóloga e do psicólogo para a realização desse tipo de serviço” (p.2). A profissional entendeu que era inexequível a realização da entrevista remota com a criança por conta: a) das características cognitivas e comportamentais de uma criança de 11 anos (Piaget, 2012); b) da dificuldade no estabelecimento de rapport por meio da interação remota; c) limitação na espontaneidade, uma vez que a conversa teria que ser mantida na casa de um ou outro genitor; d) impossibilidade de controlar o sigilo no ambiente dos pais; e) possibilidade de influência no discurso da criança pelos interessados no processo judicial (instrumentalização da vontade do filho).

Assim, consideramos que a entrevista com a criança deveria ocorrer na retomada das atividades presenciais no fórum. Esta sugestão foi feita no relatório encaminhado e aceita pela magistrada, que determinou, em despacho, que o menino fosse entrevistado presencialmente após a reabertura do fórum.

O relatório psicológico foi redigido conforme a Resolução CFP no. 06/2019 e encaminhado aos autos do processo. A produção do relatório psicológico no contexto de atendimento remoto durante a pandemia exigiu cuidados específicos, debatidos entre os autores deste texto e tomados pela subscritora do relatório.

Entendemos que, para a elaboração do documento psicológico, foi importante fundamentar a escolha da metodologia utilizada no caso atendido remotamente; apontar as limitações técnicas identificadas para o atendimento remoto, por exemplo, impossibilidade de realizar o atendimento on-line em função da faixa etária do menor; pontuar qual TICs foi utilizada na realização das entrevistas; explicar os objetivos do atendimento quanto à demanda da determinação judicial; e explicitar os cuidados técnicos e éticos utilizados para a garantia do sigilo e autonomia da pessoa na escolha pela participação da entrevista remota. Além disso, ao datar e assinar o documento, esclarecer que foi elaborado no período de pandemia.

O documento psicológico não foi impugnado pelos procuradores das partes, indicando concordância com a metodologia (formato remoto) quanto pelas indicações apontadas. Cumpre dizer que houve decisão judicial pela guarda compartilhada provisória aos pais, mantendo-se a rotina já estabelecida da alternância entre os lares. Entendemos que a contextualização da dinâmica familiar realizada por meio remoto foi suficiente para que a magistrada pudesse, mesmo que de forma provisória, dar uma decisão para o caso.

Considerações finais

Embora haja previsão legal para o atendimento on-line na área da Psicologia há cerca de vinte anos, a produção científica é escassa. A situação da pandemia do Coronavírus, com a necessidade do isolamento social, provocou urgência em se refletir sobre os limites técnicos e éticos para o uso das Tecnologias de Comunicação e Informação (TICs).

Com o fechamento dos fóruns e a manutenção do teletrabalho, há a necessidade de pensar nos limites e alcances da avaliação psicológica on-line em contexto forense, ressalvando-se as diferenças entre o enquadre clínico e forense.

Tendo em vista esta necessidade, os autores desenvolveram uma metodologia de estudo de caso que pressupõe a realização de entrevista remota para os adultos e entrevista presencial das crianças, quando esta for possível. O relato desta experiência se restringe a um caso específico atendido pela primeira autora sob supervisão do segundo autor. Os casos de Vara de Família têm a sua especificidade enquanto uma prática pericial sob o escrutínio dos procuradores legais e assistentes técnicos dos adultos examinados. Importante destacar que este texto não visa esgotar o tema da realização de estudos de caso no contexto forense durante a pandemia, mas apresentar uma metodologia que pode auxiliar na atuação de profissionais de Psicologia que atuam no Poder Judiciário. Sugere-se que o psicólogo enfrente os desafios da avaliação psicológica pericial on-line, frente à necessidade de atendimento dos jurisdicionados e das demandas dos operadores do direito.

Notas

[1] Entende-se a comunicação síncrona, quando emissor e receptor interagem em tempo real. As mensagens emitidas pelo emissor são imediatamente recebidas e respondidas pelo receptor e vice versa. São ferramentas de comunicação síncrona: ligações telefônicas e chamadas de voz e videochamadas pelos aplicativos WhatsApp, Skype, Zoom.

[2] Na comunicação assíncrona, a interação entre emissor e receptor não é instantânea. São exemplos de ferramentas deste tipo de comunicação as mensagens de texto em aplicativos como WhatsApp e Skype, e-mails, chats de textos e SMS.

[3] https://e-psi.cfp.org.br/

[4] https://zoom.us/pt-pt/meetings.html

[5] Segundo o Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2020), em 2018, 93,2% dos domicílios brasileiros possuíam telefone móvel celular e 79,1 % dos domicílios tinham acesso à internet. Nos 14.991 mil domicílios em que não havia utilização da internet, os três motivos que mais se destacaram foram: 1) falta de interesse em acessar a internet (34,7%), 2) serviço de acesso à internet era caro (25,4%) e 3) nenhum morador sabia usar a internet (24,3%).

Referências

Bleger, J. (1998). Temas de psicologia: entrevista e grupos. São Paulo, SP: Martins Fontes.

Conselho Federal de Psicologia. (1995). Resolução CFP nº 02/1995. Brasília, DF. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/1995/02/resolucao1995_2.pdf.

Conselho Federal de Psicologia. (2000). Resolução CFP nº 03/2000.Brasília, DF. Recuperado de https://www.crprs.org.br/upload/legislacao/legislacao40.pdf.

Conselho Federal de Psicologia. (2005). Resolução CFP nº 12/2005. Brasília, DF. Recuperado de https://cadastrosite.cfp.org.br/docs/resolucao2005_12.pdf.

Conselho Federal de Psicologia. (2012). Resolução CFP nº 11/2012. Brasília, DF. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2012/07/Resoluxo_CFP_nx_011-12.pdf.

Conselho Federal de Psicologia. (2018). Resolução CFP nº 11/2018. Brasília, DF. Recuperado de h https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2018/05/RESOLU%C3%87%C3%83O-N%C2%BA-11-DE-11-DE-MAIO-DE-2018.pdf .

Conselho Federal de Psicologia. (2019). Resolução CFP nº 06/2019. Brasília, DF. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2019/09/Resolu%C3%A7%C3%A3o-CFP-n-06-2019-comentada.pdf .

Conselho Federal de Psicologia. (2020a). Resolução CFP nº 04/2020. Brasília, DF. Recuperado de https://atosoficiais.com.br/cfp/resolucao-do-exercicio-profissional-n-4-2020-dispoe-sobre-regulamentacao-de-servicos-psicologicos-prestados-por-meio-de-tecnologia-da-informacao-e-da-comunicacao-durante-a-pandemia-do-covid-19?origin=instituicao&q=004/2020.

Conselho Federal de Psicologia. (2020b). Ofício-Circular nº 63/2020/GTec/CG-CFP. Brasília, DF. Recuperado de https://site.cfp.org.br/wp-content/uploads/2020/05/SEI_CFP-0221879-Of%C3%ADcio-Circular.pdf

Decreto Judiciário nº 161. (2020, 16 de março). Dispõe sobre a prevenção ao Coronavírus (COVID-19) no âmbito do Poder Judiciário do Estado do Paraná. Curitiba, PR: Presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Recuperado de https://www.tjpr.jus.br/documents/18319/32915431/DJ+161-2020.pdf/0fd930a3-7606-834a-6aa7-362ee72b8350.

Decreto Judiciário nº 397. (2020, 6 de agosto). Prorroga, no âmbito do Poder Judiciário do Estado do Paraná, o regime de trabalho instituído pelo Decreto nº 227/2020 – D.M., alterado pelos Decretos nº 244/2020, nº 262/2020, nº 303/2020 e nº 343/2020. Curitiba, PR: Presidência do Tribunal de Justiça do Estado do Paraná. Recuperado de https://www.tjpr.jus.br/documents/18319/37963707/2020+08+-+Decreto+397+-+prorroga+15+de+setembro/1f46b918-f3eb-3e60-aafd-c5db6851476c.

Feijó, L. P., Silva, N. B., & Benetti, S. P. C. (2018) Experiência e formação profissional de psicoterapeutas psicanalíticos na utilização das tecnologias de informação e comunicação. Psicologia: Ciência e Profissão, 38(2), 249-261. doi: https://doi.org/10.1590/1982-3703003032017

Hallberg, S. C. M., & Lisboa, C. S. M. (2016). Percepção e uso de tecnologias da informação e comunicação por psicoterapeutas. Temas em Psicologia, 24(4), 1297-1309. doi: https://doi.org/10.9788/TP2016.4-06 

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (2020). Acesso à Internet e à televisão e posse de telefone móvel celular para uso pessoal 2018. Recuperado de https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101705_informativo.pdf.

Marasca, A. R., Yates, D. B., Schneider, A. M. A., Feijó, L. P., & Bandeira, D. R. (2020). Avaliação psicológica on-line: considerações a partir da pandemia do novo coronavírus (COVID-19) para a prática e o ensino no contexto a distância. Estudos de Psicologia (Campinas). 37(e200085). doi: https://doi.org/10.1590/1982-0275202037e200085

Organização Pan-Americana da Saúde Brasil/Organização Mundial da Saúde. (2020). Folha informativa COVID-19. Recuperado de https://www.paho.org/bra/index.php?option=com_content&view=article&id=6101:covid19&Itemid=875.

Peuker, A. C., & Almondes, K. M. (2020). Recomendações para o exercício profissional presencial e on-line da psicologia frente à pandemia de COVID-19. Ribeirão Preto, SP: Sociedade Brasileira de Psicologia. Recuperado de https://www.sbponline.org.br/enfrentamento-covid19.

Piaget, J. (2012). Seis estudos de psicologia. Rio de Janeiro, RJ: Forense Universitária.

Pieta, M. A. M., & Gomes, W. B. (2014). Psicoterapia pela Internet: viável ou inviável? Psicologia: Ciência e Profissão, 34(1), 18-31. doi: https://doi.org/10.1590/S1414-98932014000100003

Pires, A. C. J. (2015). Sobre os “tratamentos à distância” em psicoterapia de orientação analítica. Revista Brasileira de Psicoterapia, 17(2), 11-21. Recuperado de https://cdn.publisher.gn1.link/rbp.celg.org.br/pdf/v17n2a03.pdf.

Resolução nº 313. (2020, 19 de março). Estabelece, no âmbito do Poder Judiciário, regime de Plantão Extraordinário, para uniformizar o funcionamento dos serviços judiciários, com o objetivo de prevenir o contágio pelo novo Coronavírus – Covid-19, e garantir o acesso à justiça neste período emergencial. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça. Recuperado de https://atos.cnj.jus.br/files/original221425202003195e73eec10a3a2.pdf.

Resolução nº 314. (2020, 20 de abril). Prorroga, no âmbito do Poder Judiciário, em parte, o regime instituído pela Resolução no 313, de 19 de março de 2020, modifica as regras de suspensão de prazos processuais e dá outras providências. Brasília, DF: Conselho Nacional de Justiça. Recuperado de https://atos.cnj.jus.br/files/original071045202004285ea7d6f57c82e.pdf.

Stoque, F. M. V., Scotton, I. L., Lisboa, C. S. M., & Neufeld, C. B. (2016). Tecnologias da informação e comunicação e formação do psicólogo clínico. Revista Brasileira de Terapias Cognitivas, 12(2), 83-90. doi: https://doi.org/10.5935/1808-5687.20160015

Como citar esse texto

APA – Ambrozio Vaz, C. R., & Shine, S. (2020). Atuação do Psicólogo Judiciário durante a pandemia: um relato de experiência. CadernoS de PsicologiaS, 1. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/atuacao-do-psicologo-judiciario-durante-a-pandemia-um-relato-de-experiencia.

ABNT – AMBROZIO VAZ, C. R. V.; SHINE, S. Atuação do Psicólogo Judiciário durante a pandemia: um relato de experiência. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/atuacao-do-psicologo-judiciario-durante-a-pandemia-um-relato-de-experiencia>. Acesso em: __/__/____