Revista CadernoS de PsicologiaS

CadernoS de PsicologiaS entrevista: equipe da Associação de Saúde Mental Dr. Regis Viola - Araucária/PR

#Relatos_de_experiência

#Entrevista

As estratégias de reabilitação psicossocial têm no componente de geração de renda e associativismo seu ponto alto de efetivação da Luta Antimanicomial. Com base nesse panorama, o Conselho Editorial da CadernoS de PsicologiaS enviou uma entrevista para a Associação de Saúde Mental Dr. Regis Viola, em Araucária/PR, uma vez que esta entidade trabalha com a inserção social dos usuários no mercado de trabalho.

A terapeuta ocupacional Tatiana Telles, a assistente social Elisiane Fernandes da Rosa e o psicólogo Eliseu Hiromiti Matubara intermediaram a coleta das respostas via e-mail junto às(aos) demais usuárias(os) da mesma e, com isso, apresentamos a entrevista com importantes colocações sobre o papel da associação, seu contexto histórico e, de quebra, com dicas e estímulos para que outras associações do tipo possam ser fomentadas.

Gostaríamos de agradecer às(aos) usuárias (os) que estão na construção desta entidade há alguns anos: Elias Lourensi Perassolle, Neuza Oliveira dos Santos, Maria de Fátima Teles, João Maria Passos dos Reis e Monica Aleixo Silvestre e que hoje fazem parte da diretoria.

Relato de experiência da Professora Lucineia

CadernoS de PsicologiaS Para começar, gostaríamos que vocês introduzissem às(aos) leitoras(es) da CadernoS de PsicologiaS como surgiu a associação, quais os principais obstáculos superados até o momento e como vocês “funcionam” (qual a dinâmica das reuniões, produtos e-ou serviços, etc). 

Associação Dr. Regis ViolaA Associação de Saúde Mental Dr. Regis Viola, nasceu da inquietude de uma profissional durante seus anos de formação. Os questionamentos permeavam a pouca informação sobre inserção no mercado de trabalho das pessoas portadoras de transtornos mentais. Foi durante atendimentos nas oficinas e grupos terapêuticos no Ambulatório de Saúde Mental do Município de Araucária, onde os usuários traziam o desejo em voltar ao mercado de trabalho e o medo do preconceito que poderiam sofrer, que conhecemos uma usuária que era presidente de uma associação da cidade que produzia vassouras. Ela nos contou da experiência e como os associados resgataram sua autonomia e cidadania. Isso fez ressurgir a possibilidade de colocar o projeto de inserção no mercado de trabalho em prática. Mas não entendemos nada de associação nem do terceiro setor. Então fomos pesquisar e estudar conforme as informações que essa paciente me deu. Durante essas pesquisas, envolvemos os usuários que ficaram bastante empolgados e trouxeram histórias em relação às associações de moradores que conheciam. Então explicamos qual era a ideia de montar uma Associação de Saúde Mental no Município, com o principal objetivo de fortalecer o grupo e futuramente um projeto de economia solidária e geração de renda. 

Foi lindo de ver os olhos brilharem com a possibilidade de poderem produzir, trabalhar e gerarem a própria renda. Mas sabíamos que seria um caminho longo, pois a parte burocrática era extensa. Claro que essa reunião gerou muitas expectativas e alguns familiares procuraram o serviço para tentar entender do que se tratava. Então decidimos reunir as famílias para explicar nossas ideias. Ficamos surpresos com a participação de todos e com a receptividade para com nosso projeto. E foi ali que percebemos que essa Associação só teria forças com as famílias envolvidas. Fizemos algumas reuniões até todos entenderem qual era o objetivo, e cada vez mais, víamos as famílias participando e trazendo ideias para a construção deste projeto, que despertou grande interesse a aproximou mais os usuários e seus familiares do tratamento e estreitou os laços afetivos entre eles. Então juntos, familiares e usuários escolheram o nome da associação, que foi dado em homenagem ao profissional que além de ser muito querido por alguns pacientes que já eram antigos no serviço, também foi um dos responsáveis pelo início do tratamento em saúde mental no Município. Ele foi o primeiro psiquiatra da cidade e havia falecido. Usuários, familiares e funcionários trouxeram histórias a respeito dos atendimentos, do carinho e cuidado que tinha com cada paciente, um profissional dedicado e que amava o que fazia. Nessa tarde nasceu a Associação de Saúde Mental Dr. Régis Viola. 

Já tínhamos o nome, um propósito e o envolvimento de muitos com um grande desejo de que desse certo. Mas precisávamos formalizar e não fazíamos ideia por onde começar. Então fomos até uma associação em Curitiba, Arnaldo Gilbert, que nos recebeu muito bem e compartilhou conosco seu estatuto, para termos uma base do que fazer. Durante algumas semanas nos reunimos para ler e pensarmos juntos como estruturar o nosso próprio estatuto e tivemos a ajuda de uma advogada muito bacana do Município, que abraçou a causa e nos deu toda e assessoria. Foram muitas tardes digitando o estatuto, pois na época não tínhamos muita prática com o computador. Realizamos uma reunião com os usuários, familiares e funcionários e muitas ideias surgiram para aprimorar o estatuto, que finalmente ficou pronto e aprovado. O próximo passo era fazer a eleição da diretoria. Foi emocionante ver o envolvimento de todos em querer saber dos cargos, funções e como se dividiram para formar esse grupo que seria porta-voz de toda uma comunidade. Realizamos muitas reuniões para estruturar a diretoria e para que cada um se apropriasse de seu cargo para poder se apresentar diante do grande grupo, no dia da eleição. E, no dia 13 de novembro de 2003, numa tarde ensolarada, com a sala repleta de usuários, familiares, funcionários, realizamos a apresentação de cada candidato para membro da diretoria, que além de trazerem propostas, também trouxeram muito desejo de lutar e fortalecer a saúde mental do Município. Agora a Associação estava legalmente constituída da união dos usuários, familiares e trabalhadores da Saúde mental, com a finalidade de apoiar as pessoas com sofrimento psíquico em suas necessidades econômicas, políticas e culturais, contribuindo para a diminuição do preconceito e viabilizando o exercício da cidadania. Podermos vivenciar toda aquela construção, envolvimento e empoderamento nos emocionou e nos fez ter certeza de estarmos no caminho certo, rodeada de pessoas que acreditavam em suas potencialidades, mesmo que por muitos anos tivessem ouvido o contrário. Pois era um grupo formado por pessoas com histórias de muitos internamentos psiquiátricos, algumas cronificadas pela doença, com perda da autonomia, dignidade e cidadania. Um grupo que renasceu e se redescobriu através do desejo de existirem como sujeitos desejantes e produtivos. 

Hoje a associação já completou 18 anos e durante essa caminhada tivemos muitas conquistas e muitos tropeços, mas nunca desistimos. Temos um grupo fortalecido, com reuniões quinzenais, uma cadeira no COMUSAR (Conselho Municipal de Saúde), com direito a voz e voto e parceria com a Secretaria Municipal de Trabalho e Emprego. Participamos de eventos com outras associações, conferências (Municipais e Estaduais), audiências públicas e feiras de eventos relacionados à saúde mental. Ainda não temos uma sede própria e usamos uma sala cedida pelo CAPS II, bem como já conseguimos realizar algumas reuniões no salão paroquial de igreja central, e no NEPES (Núcleo de Educação Permanente e Eventos em Saúde), mas sempre com muita dificuldade em conseguir um local fora do serviço de saúde mental. Mas foi através do envolvimento dos associados, familiares e amigos da Saúde Mental e do fortalecimento da Associação que surgiu o Projeto de Economia Solidária Arausol. Um sonho que só foi possível realizar com a soma de desejos de outros profissionais, usuários e familiares, que abraçaram a causa e acreditaram que juntos poderiam concretizar esse projeto que transforma vidas. 

CadernoS de PsicologiaS Gostaríamos também que vocês comentassem sobre as singularidades do Município de Araucária e a importância da Arausol na Luta Antimanicomial local. 

Associação Dr. Regis ViolaNa trajetória do trabalho em saúde mental no Município de Araucária, vários empreendimentos ligados à geração de trabalho e renda foram desenvolvidos. Todavia, mesmo com o apoio da Associação de Saúde Mental Regis Viola, infelizmente por falta de investimento, esses experimentos sempre se demonstraram frágeis e de pouca sustentabilidade se restringindo ao modelo de oficina terapêutica. Diante dessa realidade e constatando que um dos grandes desafios identificados no campo da saúde mental ainda se constitui a inserção ou reinserção social por meio do trabalho, sempre foi um desejo dos usuários e trabalhadores da saúde mental do Município de Araucária um projeto que não ficasse restrito ao espaço do CAPS II e que pudesse gerar trabalho e renda para os seus envolvidos. 

Frente a esse enorme desafio, em meados do ano de 2018 um grupo de usuários e trabalhadores formaram uma parceria com a Secretaria de Trabalho e Emprego que emprestou três máquinas de costura reta possibilitando assim o “nascimento” do projeto Arausol. Tendo como matéria-prima principal os resíduos têxteis descartados pelas indústrias da região, a princípio começamos com a confecção de estopas. No ano de 2019, com a doação de tecidos não compatíveis para a produção de estopas, mas de boa qualidade, iniciamos a linha Pet. Com a experiência da linha pet, no segundo semestre de 2019 começamos com a confecção de outros produtos. Também ganhamos um prêmio da Campanha Solidária Condor que viabilizou a aquisição de cinco máquinas de costura industriais. 

Iniciamos o ano de 2020 com 30 usuários inseridos e com demanda de novos interessados, porém, devido a pandemia de Covid-19, em março de 2020 o projeto suspendeu suas atividades por vários meses. Esse foi um período bastante difícil. Ao longo dos meses vários usuários nos procuravam e relatavam que mesmo temerosos com o vírus sentiam falta das atividades da Arausol. Alguns deles inclusive pioraram o quadro de adoecimento psíquico por ficarem somente em casa. Percebendo a importância do projeto como estratégia de cuidado, principalmente para aqueles mais vulneráveis, avaliamos os prós e contras e decidimos em setembro de 2020 retomar as atividades, respeitando os protocolos da pandemia. Com estabilização da pandemia, estamos aumentando gradativamente o número de usuários e retomamos nossa reunião mensal. 

Nessa trajetória de quase 4 anos acreditamos que o projeto Arausol contribui imensamente com a luta antimanicomial da atualidade. Mesmo com todas as dificuldades e desafios, tentamos, em conjunto com todos os envolvidos no projeto, desenvolver novas formas de cuidar que favoreçam tanto a autonomia dos usuários, contribuindo com a quebra de paradigmas, quanto a capacidade laborativa das pessoas com transtornos mentais. 

CadernoS de PsicologiaS Gostaríamos que vocês comentassem a importância das ações da Economia Solidária ou Geração de Renda no contexto da saúde mental: trata-se de um mero acessório das terapêuticas do CAPS ou essa é a “cereja do bolo” do modelo da atenção psicossocial? 

Associação Dr. Regis ViolaNeste período de funcionamento, a equipe técnica do CAPS II de Araucária pode constatar como o projeto Arausol auxiliou significativamente na reabilitação psicossocial de seus participantes, assim como, fomentou o enfrentamento de preconceitos e estigmas relacionados à pessoa com transtorno mental. 

Em momento de crise econômica, sabemos que a competitividade no mercado de trabalho se torna cada vez mais acirrada. Neste sentido, as pessoas com transtornos mentais acabam ficando em desvantagem devido aos vários fatores biopsicossociais que criam barreiras, fazendo com que a inserção no mercado de trabalho formal se torne extremamente difícil. Assim, acreditamos que projetos terapêuticos que buscam seguir os princípios da economia solidária são excelentes estratégias para efetivar o direito ao trabalho e consequentemente a reabilitação psicossocial de pessoas com transtornos mentais. 

CadernoS de PsicologiaSQuando analisamos o atual momento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, encontramos autores que afirmam estarmos diante de uma “contrarreforma”, com a guinada das políticas públicas e entendimentos conquistados com muita luta para uma direção que privilegia, novamente, o Hospital Psiquiátrico e suas instituições correlatas como centro do modelo. Como vocês analisam esse cenário? 

Associação Dr. Regis ViolaAo analisarmos o atual momento da Reforma Psiquiátrica no Brasil, observamos a efetiva intensificação da “contrarreforma”, fato indubitavelmente associado ao momento político vivenciado no País, marcado pela intolerância à diferença e, por extensão, à diversidade de possibilidades de vida e existência. 

Este fato pode ser observado em sua faceta mais “ruidosa” – escandalosa até – que se traduzem em políticas públicas que favorecem a segregação, à partir do fortalecimento de modelos hospitalocêntricos e biologizantes, incluindo-se a clara opção pela alocação de recursos para Comunidades Terapêuticas – que, quando associado à sua frágil fiscalização – traduz-se em condições perversas para o exercício de práticas em descompasso com princípios fundamentais do SUS, bem como também, para o descumprimento de direitos básicos da pessoa portadora de transtornos mentais, conquistados a partir da formulação da lei 10.216. 

Mas, a “contrarreforma” apresenta-se também em sua faceta “silenciosa”, mortificante, que se concretiza na vivência cotidiana. A luta pela produção de Saúde Mental está inexoravelmente relacionada à defesa pelo direito do exercício criativo de novas formas – singulares, mas não necessariamente solitárias – de existência. Trata-se de uma aposta na vida que requer investimentos sociais, afetivos e efetivos. Assim, basta à contrarreforma o silêncio: que se concretiza em nível institucional através de práticas burocratizantes, pelo esgarçamento da tecitura social, pela exclusão inerente ao sistema capitalista e pelo desinvestimento de recursos públicos necessários à produção de Saúde Mental. 

É pois, no âmbito da realidade concreta que se encontra a verdadeira luta pela reforma psiquiátrica, no qual faz-se necessário o exercício cotidiano de reafirmação do compromisso historicamente assumido pela garantia de direitos ao cuidado em liberdade, no qual os portadores de transtornos mentais tenham “voz”, mas, que também tenham acesso à meios efetivos nos quais possam exercer de forma criativa e coletiva a busca pela satisfação de suas diversas necessidades. 

CadernoS de PsicologiaSNeste ano teremos a Conferência Nacional de Saúde Mental. Se vocês pudessem “aprovar” três propostas ou diretrizes para a Saúde Mental no Brasil, em âmbito federal ou local, quais seriam essas três recomendações? 

Associação Dr. Regis ViolaA pergunta pede somente 3 propostas, mas acreditamos que existem 4 propostas extremamente importantes para a Saúde Mental no Brasil. 

  1. Fortalecer a RAPS (Rede de Atenção Psicossocial) com a ampliação dos CAPS E SRT (Serviços Residenciais Terapêuticos) em especial os CAPS III, com financiamento e capacitação adequados e em articulação intersetorial, possibilitando o apoio aos familiares e evitando o agravamento dos quadros de sofrimento psíquico, de modo a garantir a desinstitucionalização.
  2. Implantar, fortalecer e ampliar as equipes de consultórios na rua, centros de convivência e cultura, unidades de acolhimento (adulto e infanto-juvenil), projetos de economia solidária, com articulação intersetorial e com as demais políticas públicas voltadas para o esporte, lazer, educação, trabalho e arte, para atendimento às pessoas em situação de rua e/ou vulnerabilizadas.
  3. Incentivar projetos que compõem parcerias envolvendo as três esferas de governo com a iniciativa privada para inserção dos usuários da Rede de Atenção Psicossocial no mercado de trabalho, contando com ações de orientação e capacitação profissional, bem como proporcionar a criação de Centros de Convivência e Cultura, destinado a infraestrutura, recursos humanos e materiais para o seu pleno funcionamento, voltado aos usuários assistidos pela RAPS para geração de trabalho e renda.
  4. Proporcionar processos de qualificação sobre a participação em movimentos sociais e populares aos cidadãos, conhecimentos sobre os seus direitos e deveres sobre saúde mental, visando fortalecimento das entidades e redes, ferramentas de controle social e grupos de apoio aos familiares. Garantir a implantação de conselhos locais ou conselhos gestores nos CAPS.

CadernoS de PsicologiaS Espaço aberto para comunicar às(aos) leitoras(es) da CadernoS de PsicologiaS aquilo que desejarem: 

Associação Dr. Regis ViolaGostaríamos de agradecer o convite para participar desta entrevista e poder compartilhar com todos(as) vocês a nossa experiência na construção deste espaço democrático que é a Associação de Saúde Mental Dr. Regis Viola, e convidar a todos os(as) leitores(as) para conhecerem nosso Projeto de Economia Solidária Arausol.

Como citar esse texto

APA – CadernoS de PsicologiaS entrevista: equipe da Associação de Saúde Mental Dr. Regis Viola – Araucária/PR. CadernoS de PsicologiaS, 3. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/cadernos-de-psicologias-entrevista-equipe-da-associacao-de-saude-mental-dr-regis-viola-araucaria-pr/


ABNT – CadernoS de PsicologiaS entrevista: equipe da Associação de Saúde Mental Dr. Regis Viola – Araucária/PR. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 3, 2022. Disponível em https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/cadernos-de-psicologias-entrevista-equipe-da-associacao-de-saude-mental-dr-regis-viola-araucaria-pr/. Acesso em __/__/___