Resumo: Buscou-se com este relato de experiência apresentar à categoria e sociedade o que encorajou a formação de uma comissão de mulheres no âmbito do Conselho Regional de Psicologia do Paraná. Embasadas pela literatura, com o livro “A Criação do Patriarcado” de Gerda Lerner, a comissão surge a partir de inquietações com relação a organização da sociedade e a necessidade de espaços de discussão teóricos, práticos e de acolhimento sobre a temática da desigualdade entre os gêneros. De forma coletiva e junto de outras comissões, esse grupo de mulheres se fortalece e fortalece a profissão enquanto ciência e profissão.
Palavras-chaves: comissão de mulheres; psicólogas; dororidade.
WOMEN’S COMMISSION OF THE CRP OF PARANÁ: MAKING A COLLECTIVE CONSTRUCTION
Abstract: This experience report sought to present to the category and society what encouraged the formation of a committee of women within the scope of the Regional Psychology Council of Paraná. Based on literature, with the book “The Creation of Patriarchy” by Gerda Lerner, the commission arises from concerns regarding the organization of society and the need for spaces for theoretical, practical and welcoming discussion on the theme of inequality between genres. Collectively and together with other committees, this group of women strengthens itself and strengthens the profession as a science and profession.
Keywords: women’s committee; psychologists; dororidade1;
COMISIÓN DE MUJERES DEL CRP DE PARANÁ: HACIENDO UNA CONSTRUCCIÓN COLECTIVA
Resumen: Este relato de experiencia buscó presentar a la categoría y a la sociedad lo que impulsó la formación de un comité de mujeres en el ámbito del Consejo Regional de Psicología de Paraná. Basándose en la literatura, con el libro “La creación del patriarcado” de Gerda Lerner, la comisión surge de preocupaciones sobre la organización de la sociedad y la necesidad de espacios de discusión teórica, práctica y acogedora sobre el tema de la desigualdad entre géneros. Colectivamente y junto a otros comités, este grupo de mujeres se fortalece y fortalece la profesión como ciencia y profesión.
Palabras-clave: comité de mujeres; psicólogos; dororidade;
Introdução: A criação da Comissão
“Sonhar fazendo e fazer sonhando”.
Movimento de Mulheres Negras de Pernambuco
A partir da ocupação de espaços políticos da Psicologia nacional, ao diretoria do XV Plenário do Conselho Regional de Psicologia do Paraná, composta por quatro mulheres, constatou na prática o que as teóricas feministas afirmam sobre a violência sofrida por mulheres quando estas ocupam cargos de poder.
Em seu discurso de entrega de mandato, ainda como presidenta do Conselho Federal de Psicologia, a psicóloga Ana Sandra Fernandes lembrou que, dos 19 plenários do Conselho Federal de Psicologia, ela foi apenas a quinta mulher a presidir essa autarquia sendo a primeira nordestina a ocupar a posição. “Em uma profissão composta por mais de 80% de mulheres, é preciso entender que também a Psicologia reflete desigualdades que precisam ser estrategicamente enfrentadas e vencidas” (CFP, 2022).
No Paraná a história se repete. A autarquia paranaense possui 43 anos de existência e 15 plenários constituídos, sendo que apenas quatro plenários foram compostos por mulheres no cargo da presidência, sendo a primeira indicada pelo Conselho Federal de Psicologia e as últimas três eleitas pela categoria. Destaca-se que após a nomeação de Ana Júlia Trevisan pelo CFP em 1979, foi somente em 2013 que Cleia Oliveira Cunha, a segunda mulher a ocupar esta função, foi eleita pela categoria. Em 2019 o Paraná elegeu a psicóloga Célia Mazza de Souza como sua presidenta e em 2022, com a eleição do XV plenário, a categoria escolheu sua primeira presidenta negra da história da autarquia, Griziele Martins Feitosa2. Essas histórias retratam o domínio da heterocisnormatividade branca em nossa sociedade.
Historicamente, apesar de todas as conquistas feministas das últimas décadas, o mundo em geral ainda sofre com o sistema patriarcal enraizado nas sociedades. Que outra estrutura explicaria a realidade apresentada no relatório mais recente da ONU, que aponta que 137 mulheres são mortas por dia no mundo por um membro da própria família? Em 2017, de todas as mulheres assassinadas no planeta, 58% foram mortas por algum familiar. Além disso, três bilhões de mulheres vivem em países nos quais o estupro dentro do casamento não é crime. Ao mesmo tempo, ainda se vende a ideia de que o ambiente doméstico é onde a mulher está protegida e de que lutar contra essa proteção é coisa de “feministas mal-amadas” que querem acabar com a família tradicional e com o sistema patriarcal, “tão benéfico para as mulheres” (Lerner, 2019, p. 18-19).
A violência impingida contra a mulher é compreendida como violência de gênero (Saffiotti, 2004). Ela representa um instrumento de submissão, de subordinação, de dominação, de discriminação e de controle sobre a mulher, para assegurar a supremacia masculina. É uma forma de violar e de limitar o pleno gozo de direitos e liberdades fundamentais das mulheres. Constitui um problema público e político que afeta diretamente a estabilidade econômica dos povos e constitui um atentado ao princípio de igualdade de oportunidades das sociedades democráticas. Este fenômeno complexo é produzido e mantido socialmente por um sistema de crenças e de valores da ideologia do patriarcado. Na cultura do patriarcado, a coexistência humana é determinada por um sistema que atribui valor ao poder, à competitividade, às lutas, às guerras, aos relacionamentos hierarquizados, ao controle da natureza e ao controle emocional (Maturana & Verden-Zöller, 2004, citado por Maturana, 2009).
Consciente dessas situações, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná criou um espaço de fortalecimento das mulheres e suas lutas e contribuindo para o enfrentamento destas violências estruturais. A comissão3 de mulheres tem como compromisso a intersetorialidade, a sororidade, a “dororidade”4, a interseccionalidade, a constitucionalidade, a Ética e a valorização dos Direitos Humanos, assim como tem como objetivo fomentar em suas participantes a reflexão sobre suas potências, condição e importância de participação nos espaços políticos de poder e decisão, sejam eles dentro ou fora da autarquia.
Para além de ser um compromisso desta gestão, o momento histórico-político que se vive possibilita que as mulheres apresentem o seu “lugar de fala”, seja essas mulheres brancas, negras, indígenas, trans, quilombolas, em situação de rua, PCD, neurodivergentes, LGBTQIAPN+, entre outras.
Referencial teórico: O que é ser “mulher”?
Entre as pluralidades do ser mulher, algumas considerações a seguir ilustram esse tema, mas não têm a pretensão de exaurir a discussão, e sim de ampliar a linha de pensamento para contemplar marcadores sociais, desnaturalizando o ‘ser mulher’. María Lugones (2019) discute colonialidade, destacando a opressão moderna em termos de dicotomias hierárquicas e categorização lógica e propõe entender a colonialidade dos gêneros como “uma complexa interação de sistemas econômicos, raciais e atribuídos de gênero, na qual toda pessoa no encontro colonial pode ser entendida como um ser vivo, histórico e plenamente descrito” (p.363). A autora (Lugones, 2019) explica que o feminismo “não nos dá apenas uma análise sobre a opressão de mulheres. Ele vai além da opressão, fornecendo materiais que permitem que as mulheres entendam sua situação sem sucumbir a ela” (p. 363).
Segundo Joan Scott (2017, p.75), gênero pode ser definido como “uma categoria social imposta sobre um corpo sexuado”. Complementando esta noção Glória Anzaldúa (1987, apud Miguel, 2014, p. 27) afirmou que “a mulher não é definida nem por seus
hormônios nem por instintos misteriosos, mas pela maneira pela qual ela recupera, por meio de consciências alheias, seu corpo e sua relação com o mundo”.
Neste mesmo sentido, Monique Wittig (2019) sinaliza a importância de desassociar a classe feminina do mito político e ideológico da mulher, rompendo com uma noção naturalizada, destacando a produção social do ser mulher. Outro aspecto relevante é ressaltado por Audre Lorde (2019) quando aponta que mulheres brancas ignoram o privilégio decorrente de serem brancas e definem a ideia de mulher a partir de suas vivências privilegiadas, tratando mulheres de cor como forasteiras e não possíveis de serem compreendidas.
É ressonante o que diz Vilma Piedade (2017) quando esta afirma que “um dos problemas do pensamento feminista foi perceber o movimento como um projeto único, moldado para uma mulher branca, ocidental, de classe média e instruída” (p.12). Angela Davis (2011, n.p.) enunciou que “[…] é preciso compreender que classe informa a raça. Mas raça, também, informa a classe. E gênero informa a classe. Raça é a maneira como a classe é vivida. Da mesma forma que gênero é a maneira como a raça é vivida”. Essa ideia é complementada com a de Audre Lorde, ao afirmar que “não existe hierarquia de opressão” (2019b, p.236).
Ao retomar Kimberlé Crenshaw e Patricia Hill Collins, Carla Akotirene (2019) ressalta que a interseccionalidade visibiliza a coalizão entre estruturas e a considera como um “sistema de opressão interligado” (p. 21) de produções de subjetividades, que perpassam o racismo, cisheteropatriarcado e o capitalismo. Ou, dito de outro modo, “Em vez de somar identidades, analisa-se quais condições estruturais atravessam corpos, quais posicionalidades reorientam significados subjetivos desses corpos, por serem experiências modeladas por e durante a interação das estruturas, repetidas vezes colonialistas, estabilizadas pela matriz de opressão, sob forma de identidade” (Akotirene, 2019, p. 43-44). Ademais, “o pensamento interseccional nos leva a reconhecer a possibilidade de sermos oprimidas e de corroborar com as violências” (Akotirene, 2019, p. 45).
A ligação entre homens é aceita na cultura patriarcal, enquanto a ligação entre mulheres não é possível, segundo bell hooks5 (2018, 2019). O movimento feminista criou um contexto para a conexão feminina e na perspectiva da sororidade há importância do diálogo entre mulheres sem competição. A sororidade se torna, então, uma ferramenta contra a opressão sexista e está calçada no comprometimento com a luta, na superação da alienação
através da construção de uma consciência feminista que permita romper com as ligações do sexismo. Assim, retoma bell hooks (2018, p. 35), “o pensamento sexista nos fez julgar sem compaixão umas às outras. O pensamento feminista nos ajudou a desaprender o auto-ódio feminino. Ele nos permitiu que nos libertássemos do controle do pensamento patriarcal sobre a nossa consciência”. Ademais, a autora afirma que “o sexismo, o racismo e a ideologia de classe separam as mulheres umas das outras” (hooks, 2019, p. 104) e que:
As mulheres não precisam eliminar suas diferenças para construir vínculos de solidariedade. Não precisamos viver sob a mesma opressão para combatermos a opressão em si. Não precisamos sentir hostilidade contra os homens para nos unirmos, tão grande é a riqueza de experiências, culturas e ideias que podemos compartilhar umas com as outras. Podemos ser irmãs unidas pelo compartilhamento de interesses e crenças, unidas em nosso apreço pela diversidade, unidas em nossa luta para acabar com a opressão sexista, unidas na solidariedade política (hooks, 2019, p.109).
Lorde (2019) complementa que “recusar-se a reconhecer a diferença torna impossível enxergar os diferentes problemas e armadilhas que nós, mulheres, enfrentamos” (p.243). Compreendendo a importância da sororidade como conceito que une a luta de mulheres, valorizando as trocas entre as diferentes experiências de ser mulher e celebrando a diversidade, é importante trazer a noção de dororidade, conceito cunhado pela autora brasileira Vilma Piedade (2017), como complemento à discussão.
Piedade (2017) explica que o conceito de sororidade não nos basta uma vez que não contempla a questão da dor, afirmando que “dororidade, pois, contém as sombras, o vazio, a ausência, a fala silenciada, a dor causada pelo racismo. Essa Dor é Preta” (p.16). A autora complementa que
Quando eu argumentei que Dororidade carrega, no seu significado, a Dor provocada em todas as mulheres pelo Machismo, destaquei que quando se trata de Nós, Mulheres pretas, têm um agravo nessa Dor, agravo provocado pelo Racismo. Racismo que vem da criação Branca para manutenção de Poder… E o Machismo é Racista. Aí entra a Raça. E entra Gênero. Entra Classe. Sai a Sororidade e entra Dororidade (Piedade, 2017, p.46).
Método: Como a comissão funciona
A Comissão de Mulheres iniciou seus trabalhos a partir da leitura o livro “A Criação do Patriarcado”, de Gerda Lerner, para refletir sobre os princípios e os desenvolvimentos dessa estrutura que tanto prejudica as mulheres. Junto à leitura, as psicólogas que participam da comissão partilham situações reais, depoimentos e discussões sobre questões diversas às quais o livro lhes remete.
Após o convite para a constituição da comissão, as integrantes decidiram imprimir o ritmo de produção, no caso foi escolhida uma obra que tratasse da constituição do patriarcado como ponto de partida. A cada encontro uma integrante ou dupla é responsável por mediar a discussão por meio da partilha de destaques sobre a leitura de um ou dois capítulos. As reflexões propiciadas pelo texto são novamente disparadoras para discutir-se a constituição do ser mulher no mundo, no Brasil, no Paraná, em nossas cidades, em nossas práticas profissionais. Olhar para si, na identificação das violências vivenciadas, assim como debater as noticiadas, mobilizam também a necessidade de nos posicionarmos ante o que nossa sociedade insiste em normatizar.
E isto só foi possível ante a relevância de uma “rede de construção coletiva”: a comissão de mulheres do CRP Paraná é um semear de mais possibilidades de enfrentamento para o descaso frente a todo o nosso histórico de dor, de escravidão, da desigualdade, fortalecendo as(os/es) profissionais da Psicologia a combaterem um histórico de apagamento de memórias. Mas não basta combater, é necessário partilhar saberes e conscientizar sobre o quanto nós mulheres fomos caladas e apagadas do cenário do sistema patriarcal; esse descortinar-se, que na metáfora de Joan Kelly precisa dar um passo a mais: “quando usamos um dos olhos para enxergar, nossa visão tem alcance limitado e nenhuma profundidade. Ao adicionar apenas a visão do outro olho, nosso alcance aumenta, mas a visão continua sem profundidade. Apenas quando os dois olhos enxergam juntos é que obtemos total alcance de visão e percepção exata de profundidade” (Lerner, 2019, p. 37).
Assim como é a vida das mulheres em sociedade, também no andamento do grupo se evidenciam as dificuldades das mulheres, profissionais, representantes em conselhos de controle social, mães, companheiras, gestoras, desempregadas, estudantes, militantes: os afazeres se sobrepõem às várias funções que ocupamos, ou que nos são delegadas como exclusivamente ou predominantemente femininas, também nos impedindo ou de participar ou de estarmos inteiras nos encontros ou diante da leitura proposta. Sabe-se o quanto dói a necessidade de se ampliar a consciência e de descortinar-se. No grupo também aparecem as questões existenciais, que ultrapassam a vida de uma só – são feridas estruturais a serem curadas socialmente, ou seja, há necessidade de força coletiva para a construção ou a reconstrução do lugar da mulher. Na perspectiva da psicologia social, muito além do resgate individual, é na coletividade que o enfrentamento se fortalece, assim como em outras formas de viver. O trabalho vai além da comissão, com reflexos sociais de uma cura, de uma reconstituição, de movimentos de resistência.
Retomando a função do conselho de classe, a comissão se estabelece como um lugar de orientação, para uma práxis sustentada por uma reflexão crítica sobre o seu fazer e a construção de novas formas de pensar a profissão, que seja uma Psicologia feminista comprometida com os avanços sociais, chegando a todas as cidades do Estado.
Resultados: A força do estudo coletivo
Tem-se percebido, com o andamento da comissão, um resultado potente de ampliação de consciência, de fortalecimento das conselheiras e da apropriação feminista de ser e estar no mundo. Inclusive, não se limitou a questões surgidas na formação da comissão paranaense, havendo a troca de informações em parceria com a Comissão de Orientação – Mulheres e Questões de Gênero do Conselho Regional de Psicologia de Minas Gerais.
Em agosto de 2023 foi realizada a mesa intitulada “Violência Contra as Mulheres – Faces e Interfaces com a Psicologia” com a psicóloga coordenadora da Comissão de mulheres do CRP-MG, Liliane Cristina Martins, e com a vice-presidenta do Conselho Federal de Psicologia, Ivani Francisco de Oliveira, sendo mediada pela presidenta do CRP-PR e componente da Comissão de Mulheres, Griziele Martins Feitosa. Para este momento estiveram presentes mulheres que ocupam espaços de poder do Sistema Conselhos de Psicologia, presidentas, vice-presidentas, secretárias e tesoureiras de todo o país, debatendo de forma interseccional raça, classe e gênero, e as opressões do sistema patriarcal capitalista, o evento foi aberto para a categoria profissional e sociedade.
Assume-se que a criação e evolução do patriarcado são tópicos que requerem uma análise aprofundada e contextualizada, levando em consideração uma variedade de fatores culturais, sociais, econômicos e históricos, que não podem deixar de ser estudados, debatidos e aprofundados pelas profissionais da Psicologia, tal como demonstrado no presente relato de experiência.
Discussão: Violência e reparação
A discussão que a comissão promove, proporciona apropriação e ampliação de consciência sobre vários temas. Um dos questionamentos é sobre a crítica à tradução feita para “empowerment” como “empoderamento”, pois o termo sugere que a mulher sozinha precisa se dar tal poder, retirando a responsabilidade da coletividade nessa ação. Essa internalização do poder não é apenas uma prática pessoal, mas também política. Tal rede de construção coletiva vai contra a posição da sociedade capitalista que privilegia uma meritocracia individual. A comissão é de sororidade, de fortalecimento, de conexão com os pares.
Como diz bell hooks (2019, p. 169), “não haverá movimento feminista de massa enquanto as ideias feministas ficarem confinadas aos círculos das elites cultas”. É preciso ampliar a discussão dessas ideias a todas as profissionais da psicologia e às mulheres as quais elas atendem.
De acordo com o Censo da Psicologia de 2022, das 21.667 pessoas inscritas no Conselho Regional de Psicologia do Paraná, 18.825 psicólogas se identificam como do gênero feminino (CFP, 2022). Logo, a profissão de psicologia é uma profissão ocupada majoritariamente por mulheres e, mesmo assim, pouco vinha se discutindo sobre as questões de mulheres entre as colegas de profissão, tendo em vista que o Núcleo de Diversidades de Gênero e Sexualidades da Comissão de Direitos Humanos do CRP-PR – DIVERGES realiza as discussões de gênero há muitos anos.
Contudo, a problematização das questões de gênero relacionadas às especificidades do ser mulher foi criada apenas em 2023 com a presente Comissão de Mulheres. Buscar uma sociedade que respeite e valorize a mulher como ser humano capaz de exercer sua cidadania de forma livre, autônoma, sem exclusões, preconceitos e discriminações faz parte da proposta deste coletivo de psicólogas mulheres, organizado pelo CRP do Paraná.
A Psicologia precisa enfrentar as violências, discriminações e inúmeros sofrimentos vividos pelas mulheres na sociedade atual. A compreensão desta problemática, permite maior efetividade no atendimento psicológico às mulheres que buscam ajuda e com intenso sofrimento psíquico. Além do atendimento clínico em consultório, a profissão tem o compromisso de colaborar na educação e transformação social em relação à construção e implantação de políticas públicas capazes de mudar essa realidade no tratamento às mulheres e meninas. Com isso a Psicologia contribui socialmente na promoção da igualdade e equidade de gênero, promovendo ações que estimulem a mudança de comportamento machistas e violentos, provocando sofrimentos múltiplos e diversos, que repercutem diretamente na saúde individual e coletiva. Este trabalho, que inclui todas as pessoas componentes da sociedade, inclusive homens e meninos, buscando a quebra de paradigmas do patriarcado e da perpetuação da violência praticada contra mulheres e meninas, concorre na superação de comportamentos e atitudes que mantêm e sustentam a desigualdade de gênero e a misoginia.
Apesar de as leis assegurarem o direito à cidadania e à igualdade, ainda a prática social invisibiliza e inferioriza a mulher, não a considerando um ser humano com os mesmos direitos e dignidade dos do gênero masculino. É somente com a luta e as reivindicações coletivas dos grupos feministas de mulheres que essas violências vêm sendo questionadas, investigadas e enfrentadas, com a promoção de políticas públicas específicas para mulheres.
Na cultura brasileira, a violência contra a mulher é um comportamento habitual, tolerado, arraigado na ideologia da supremacia masculina, como mostra o relatório “Visível e Invisível: a Vitimização de Mulheres no Brasil”, publicado pelo Fórum Brasileiro de Segurança Pública sobre o ano de 2022, que aponta que 18,6 milhões de mulheres sofreram algum tipo de violência ou agressão. Esse número equivale a 50.962 mulheres sofrendo violência a cada dia. Grande parte dos casos, cerca de 53,8%, aconteceram dentro de casa: no ambiente que deveria ser seguro e protetor, tanto para a mulher, quanto para seus filhos. Isso levanta a discussão de que a violência contra a mulher também é familiar, já que ressoa sobre seus dependentes, tanto pelas consequências de presenciar as agressões, como ser alvo destas (Bueno et al., 2023).
Ser mulher é um fator de risco para sofrer uma violência. Ainda, o relatório aponta que mais da metade dos casos de violência, ocorre com mulheres negras: 65,6%. Esse índice reforça a necessidade de olhar mais para as vivências e subjetividades dessas mulheres: compreender, acolher e combater, promovendo a dororidade. Corroborando, o levantamento apresenta que 72,4% consideram como importante ter acesso a uma psicóloga ou outro profissional de saúde mental para conversar, o que fortalece a necessidade de um preparo técnico, ético e humano para acolher essa demanda, assim como esse grupo se propõe a fazer acontecer (Bueno et al., 2023).
Consoante a isso, temos a Psicologia Comunitária com um papel mobilizador e potencializador do desenvolvimento pessoal e comunitário, através de “interações comunitárias pedagógicas e terapêuticas” (Góis, 2008, p. 106). Ao se propor a transformar as estruturas sociais, a Psicologia Comunitária se configura como uma Psicologia Política que trabalha no desenvolvimento e na promoção da cidadania, na conscientização e desideologização para o fortalecimento da sociedade civil. Ao buscar promover transformações no modo de vida das comunidades, as ações comunitárias contribuem para promover mudanças na integração das pessoas, interferindo nas relações assimétricas de poder (Monteiro, 2004), produzindo práxis que possam levar a comunidade a superar dificuldades e transformar a cultura, a identidade de oprimido e ideologias de resignação (Góis, 2008).
Para avançarmos, é necessário integrar conhecimentos produzidos nas diversas ciências, considerando a sensibilidade do tema, pois trata acima de tudo de uma violação dos direitos humanos das mulheres e meninas. A origem de tal violência envolve inúmeros e múltiplos fatores na construção sócio-histórica e cultural das relações de poder entre os gêneros. Assim sendo, depende da conscientização e transformação de indivíduos, famílias, comunidades, e da sociedade como um todo, para que os valores da cultura do patriarcado possam ser desconstruídos em todos os espaços sociais onde a violência contra a mulher é construída, naturalizada e legitimada (Schraiber e Oliveira, 2008).
Considerações e conclusões
A Comissão de Mulheres do CRP do Paraná é fruto de uma plataforma de campanha com um compromisso com a própria categoria. É necessário que a comissão permaneça durante todas as gestões e que se façam levantamentos para dados estatísticos, uma vez que a categoria profissional das psicólogas é composta majoritariamente de mulheres. Assim, é preciso discutir permanentemente os limites e violências do capitalismo patriarcal em apropriar-se dos corpos de meninas e mulheres.
A potência dos encontros tem refletido nas participantes um sentimento de acolhimento, de pertencimento, de calor, de força, uma sensação de importância política e social, e da formação de um laço e de uma rede de mulheres. É muito necessário que se promova nas psicólogas uma reflexão pessoal sobre a temática de gênero, sobre o ser mulher, e todas as suas singularidades. Não basta saber teórica e tecnicamente sobre o tema das discussões, sem perceber o quanto isso é presente na própria vida e na vida da população atendida, o quanto as questões do patriarcado estão internalizadas e são constantemente reproduzidas.
É necessário que se ocupem espaços diversos, uma vez que as mulheres participam no processo de sua subordinação quando internalizam a ideia de sua inferioridade. Como apontou Simone de Beauvoir, “o opressor não seria tão forte se não tivesse cúmplices entre os próprios oprimidos” (Lola Aronovich apud Lerner, 2019, p. 21).
Ao formar pares e compreender a importância de uma comissão de mulheres, espera-se que todas as gestões a mantenham como algo fundamental ao funcionamento do sistema. Além disso, já existem comissões regionais de mulheres em outras unidades federativas, sendo a mais antiga a do Estado de Minas Gerais, seguida da “Comissão de Mulheres e Relação de Gênero” da Bahia, da “Comissão de Mulheres” de Santa Catarina, e de alguns núcleos semelhantes no Pará, no Amapá e no Piauí. As comissões também possuem a missão de formar profissionais capacitadas a lidar com as questões do feminino junto a outras profissionais.
A falta de conhecimento das mulheres sobre a própria história de luta e conquistas é uma forma de as manter subordinadas. Lerner (2019, p. 38) relata que, mesmo as feministas engajadas no processo de criticar os sistemas tradicionais, ainda estão em atraso devido a estarem amarradas ao desconhecimento que foi gravado profundamente na nossa psique.
Assim, existir um espaço e um momento para se valorizar essas partilhas é uma forma de reverter essa disparidade na qual o gênero feminino é relegado a um plano inferior na estrutura patriarcal. Espera-se que essa experiência de uma Comissão de Mulheres formada por psicólogas seja perene, constante, libertadora e efetiva na transformação social.
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[1] Termo cunhado por Vilma Piedade, sem tradução para outras línguas.
[2] Como preconizado por Paulo Vitor Navasconi em suas produções teóricas, decidiu-se por negritar o nome das autoras negras em todo o texto, sempre que eles aparecerem, numa intencionalidade política de visibilizar seus nomes e lutar e contra os seus apagamentos.
[3] Comissões são dispositivos que visam agregar a categoria profissional da Psicologia, aproximando profissionais do Conselho, produzindo discussões, eventos, materiais, interação com a sociedade etc. Para mais informações pode-se verificar o link https://crppr.org.br/comissoes/
[4] A Comissão opta por utilizar os termos sororidade e dororidade, entendendo que o último conceito engloba a dor da mulher preta, sinalizando as marcas da intersecção do racismo e sexismo enquanto o primeiro carrega a noção da solidariedade entre mulheres.
[5] A autora bell hooks opta pela grafia de seu nome sem letras maiúsculas para que quem ler suas ideias preste mais atenção no conteúdo do que em sua pessoa
ABNT — COSTA, A. L. B., CASTILHO, A. C., COBALCHINI, C. C. B., OLIVEIRA, C. B., STRESSER, FEITOSA, G. M., F. A., FALCADE, I. A., NUNES, M. R. L., KOWALEK, V. Comissao das Mulheres do CRP do Paraná: o fazer uma construçao coletiva. CadernoS de PsicologiaS, n. 4. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/comissao-das-mulheres-do-crp-do-parana-o-fazer-uma-construcao-coletiva/. Acesso em: __/__/_____
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