#Estilhaços
Inúmeras reportagens veiculadas na TV e nos jornais têm mostrado pessoas enlutadas por perdas, devido à pandemia de Covid-19. Não é para menos, se pensarmos que o número de mortes no Brasil já se aproxima, cada vez mais rapidamente, dos 610 mil, enquanto elaboramos esse texto. Isto posto, há muito mais a ser discutido.
A literatura da área de tanatologia expõe que, para cada óbito, ao menos dez pessoas são diretamente afetadas, surgindo a necessidade de lidar com o luto daí advindo. Considerando dessa forma, perfaz-se já um contingente de mais de seis milhões de pessoas que choram por seus entes queridos, vítimas fatais de Covid-19. Isso se não forem inseridos no cálculo os parentes mais distantes, os amigos e os conhecidos, o que aumentaria sobremaneira esse contingente.
Famílias vivenciaram perdas múltiplas, sem nem mesmo o direito de se despedir adequadamente, sem acompanhar o portador de Covid-19 ao longo de sua hospitalização, conversar com ele ou externalizar um último gesto de carinho. Após a morte, as despedidas ocorreram sem o ritual dos velórios ou o consolo das rezas; sem o abraço e o afeto dos amigos durante o sepultamento. Caixões fechados, enterros rápidos, poucos ou nenhum acompanhante. Ao redor, no cemitério, a cena é a mesma. De poucos em poucos metros, mais um morto solitário.
Numa desabalada sucessão de contágios, o vírus não escolhe idade, gênero, etnia, nacionalidade ou classe social: recai, muitas vezes, com fúria sobre pessoas até então saudáveis, ao mesmo tempo em que poupa outras, aparentemente mais vulneráveis. Ora deixa alguns sem fôlego (literalmente), ora sequer deixa vestígios de sua passagem. A ciência ao redor do planeta se debruça sobre o punhado de informações já adquiridas, tentando formular parâmetros e criar vacinas.
Enquanto tudo isso acontece, seja em ritmo mais lento ou mais frenético, mais e mais vidas vão sendo ceifadas aqui e ali. Morre-se nos leitos de UTIs, nas enfermarias ou em casa, seja porque não conseguiram um leito de hospital, seja porque optaram por não buscar aquilo que sabiam ser quase impossível obter. Seja porque não acreditaram que sua doença era grave, seja porque acreditaram em falsas promessas de cura. Pais, mães, filhos, tios, avós, amigos, vizinhos… Uma lista de nomes e histórias de vidas engrossando as estatísticas diárias de óbitos por toda parte do globo.
Aqueles que se vão sempre fazem diferença na vida de alguém. São chamados de entes queridos, mas são pessoas queridas pelas pessoas ao seu redor e que vão deixar marcas indeléveis em muitas memórias e, quiçá, uma cadeira vazia à mesa. Serão lembrados por seus defeitos, qualidades, atitudes e até mesmo desafetos; serão pranteados por sua partida precoce, sofrida e sem tempo para um adeus. Estarão ausentes para prover a família, para fazer o almoço, para mandar uma mensagem, comemorar um próximo aniversário, encontrar os amigos, constituir uma família ou para abraçarem os seus.
Aqueles que ficam perdem-se a si mesmos, sobretudo quando as perdas se multiplicam e diversos familiares partem em intervalos de tempo tão exíguos, que mal há tempo para uma prece. Deixados sós, terão que reconstruir seus mundos, reinvestir em vínculos, expressar seu pesar, adaptar-se à ausência, lidar com sentimentos por vezes conflitantes. Ainda, ser-lhes-á exigido voltar às tarefas anteriores, cuidar dos que ficaram, elaborar seus lutos, recuperar seu autocontrole. Seus valores pessoais possivelmente passarão por mudanças profundas. Sua saúde mental sofrerá abalos. A pandemia deita por terra seu mundo presumido, aquela jornada antes pensada a longo ou médio prazo, em companhia de quem não se pode mais encontrar.
Crianças serão precocemente separadas de seus genitores; bebês não conhecerão o seio materno. Os pequenos pouco ou nada entendem do porquê seus pais, mães ou ambos não estão mais presentes; fica-lhes uma solidão irreparável, da qual muitos nem saberão falar ou reconhecer. Substituem-se pais por avós ou tios, os quais, ainda que dispostos a doar todo o amor possível, tinham até então outro papel no contexto familiar. E que, igualmente, lamentam as mesmas perdas. Em algumas situações mais extremas, nem mesmo haverá substitutos.
Quando falarmos da pandemia de forma tão distante como falamos hoje do terremoto do Haiti (2010) ou da queda das torres gêmeas (2001), as milhares de crianças órfãs da pandemia já terão crescido e se tornado adolescentes ou adultos, mas ainda permanecerão órfãos da pandemia. Suas histórias de vida conterão para sempre um questionamento, uma fragilidade, a dor da ausência daqueles que lhes foram tirados tão precocemente. Alijados de tal proteção, alguns ganharão resiliência; outros poderão desenvolver um profundo sofrimento psíquico, talvez com ecos transgeracionais.
Esses grandes desastres do passado, no entanto, nada são diante da catástrofe atual. Temos hoje, no Brasil, a queda de uma torre gêmea por dia! Simplesmente não há parâmetros conhecidos. Mais que lidar com a morte, aos sobreviventes caberá lidar com a vida, que precisará ser reinventada.
O futuro nos reservará, durante décadas, a assistência psicológica a essas crianças. Elas chegarão até nós, psicólogos, num primeiro momento trazidas pela mão de um professor ou outro adulto, mas, daqui a alguns anos, virão por sua própria escolha. Serão tão vítimas da pandemia como aqueles que guardam as sequelas da doença. Deveremos lhes assegurar acolhimento, escuta qualificada, bem como um auxílio de caráter excepcionalmente singular e respeitoso. Cientes de tal possibilidade nada remota, precisamos nos preparar desde já.
Em primeiro lugar, precisamos encarar nosso não saber. Saber que não sei abre as portas da mente para aprender o inesperado, em circunstâncias inesperadas, de mestres insuspeitos.
Precisamos também rever nossos saberes, descobrir se ainda são adequados à realidade que se transforma a cada dia. Rever nossos valores, nossas certezas.
A presença invasiva da morte nos leva a buscar nova e mais rica relação com a vida. Como nos lembrou Ailton Krenak, em sua entrevista no programa Roda Viva, precisamos perceber a vida em toda a sua completude. A Terra como um organismo vivo, no qual somos apenas pequenas células, a comunidade e o meio ambiente prevalecendo ao indivíduo.
Enfim, para estar presente nesse mundo que virá, precisaremos de uma nova Psicologia, inserida na natureza, formada por novos psicólogos, nós mesmos.
Como será o amanhã? Construiremos juntos.
APA – D’Espíndula, T. S., & Silva, M. O. C. (2021). Como será o amanhã? CadernoS de PsicologiaS, 2. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/como-sera-o-amanha/
ABNT – D’ESPÍNDULA, T.; SILVA, M. O. C. Como será o amanhã? CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 2, 2021. Disponível em:<https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/como-sera-o-amanha/>. Acesso em: __/__/____ .