#Estilhaços
ERRATA: Na versão impressa deste artigo, a seção “Como citar este texto” foi inadvertidamente omitida e inserida no texto “Segue teu destino: reflexões sobre o uso das redes sociais na construção do futuro da psicologia enquanto profissão”. A versão aqui apresentada, que segue os padrões editoriais estabelecidos, deve ser considerada a referência oficial para citações em ABNT ou APA, tanto na versão impressa quanto digital. Lamentamos o equívoco e agradecemos pela compreensão.
Curitiba, 27 de agosto de 2024.
Comecei a escrever este texto no nono período da faculdade de Psicologia, quando o contato com pacientes na clínica se tornou um mergulho profundo na fragilidade da psique humana – não apenas da fragilidade do Outro, como da minha própria fragilidade. Era o início dos estágios obrigatórios e, coincidentemente, época em que a Psicologia é celebrada no Brasil, num dia todo dedicado a ela. Exatamente um ano depois, ao escrever essas linhas, no dia da psicologia, celebro não apenas a profissão e o início da prática profissional, mas também a resiliência que me permitiu abraçar com acolhimento os desafios de humanizar esse outro que me permitiu saber quem eu fui e agora sou.
Curitiba, 27 de agosto de 2023.
Última aula da noite de sexta-feira: o professor pediu por uma voluntária e orientou que ela trouxesse uma demanda para ser trabalhada de forma interativa, ali na frente de todos. A aluna trouxe uma questão pontual e ao mesmo tempo geral, que atravessa grande parte da turma e, honestamente? Me atravessava, me atravessa e acredito que também impacta meus colegas de estágio. A angústia dos próximos passos dentro da faculdade. O que tenho para oferecer aqui é mais um caos intimista, uma confusão estranha disfarçada de uma enumeração organizada. Sei que cito palavras fortes: caos, confusão e estranheza, mas estão atreladas a um contexto que considero otimista. Talvez, minha chuva de ideias possa ser útil para alguém. Escrever pode ser terapêutico às vezes. Minha intenção aqui não é me colocar em uma posição de que sabe tudo e quer aconselhar como a voz da experiência. Primeiro, eu não sei de nada. Segundo, minha experiência é de exatos vinte e três dias úteis. Meu propósito é acolher a angústia do estudante de Psicologia, sendo uma estudante de Psicologia angustiada. Me sinto esgotada, exausta, exaurida e todos os es possíveis que caracterizam o cansaço, mas, ao mesmo tempo, me sinto contemplada. Penso que psicóloga posso ser pelo resto da vida, graduanda do curso, já sou por tempo suficiente, porém, ser estagiária – do período obrigatório – de psicologia só acontece por um momento curto e único. Escutei uma vez que a escrita de uma crônica é a tentativa de perpetuar um momento presente por meio das palavras. Existe uma certa promessa de que o final da faculdade será um período conturbado, mas, surpreendentemente, se mostrou ser o oposto disso. Então fica aqui minha tentativa de eternizar essa experiência que tem sido fascinante.
Começo citando algumas leituras obrigatórias da graduação: O Abuso do Poder na Psicoterapia de Adolf Guggenbühl-Craig (para as aulas de Analítica) e Cartas a um Jovem Terapeuta de Contardo Calligaris (para clínica psicanalítica). São livros ricos que levantam questões acerca do papel do psicoterapeuta dentro da psicoterapia clínica. São livros excelentes, mas me trazem uma sensação de distanciamento do leitor. Ambos os autores possuem uma grande bagagem de atuação como psicoterapeutas e me parece que eles conversam com o leitor como se estivessem em uma vertical que não se contesta. Logo, Calligaris, estivesse vivo, será que o senhor se lembraria da constante angústia que é ser estagiário? Escrevo, então, uma carta a um velho terapeuta. Nos livros de Guggenbühl-Craig e de Calligaris, o tópico gira em torno de como o psicólogo/psicoterapeuta/analista deve agir frente ao paciente. Neles, existem falas explícitas de como não ser um charlatão, de como não ser o cara que detém o poder de cura ou o que acha que a psicoterapia ocupa um lugar superior no escopo da saúde – de panaceia. Mas fica a pergunta: e a angústia da profissão? Percebo (me percebo) meus colegas de sala aflitos e lembro-me quando estava no último semestre teórico, eu estava desesperada, angustiada, questionando se eu deveria realmente seguir com a Psicologia ou se deveria largar tudo e terminar minha graduação de Química. A Psicologia é aquele curso que, por mais que você estagie durante a trajetória acadêmica, ninguém realmente se sente pronto para o que nos aguarda no último ano – o fazer psicoterapêutico. Digo, no sentido daquele terapeuta tradicional que senta frente ao paciente em uma ambiência preparada e escuta angústias, vê fragilidades e faz o acolhimento necessário para o momento. A Psicologia não é como o curso de administração ou das áreas de tecnologia da informação que você pode vir a ser CLT antes mesmo de ter passado no vestibular. No nosso caso, só se pode ser psicólogo quando tiver um CRP, e para ter um CRP é preciso, necessariamente, ter concluído a graduação. E para terminar a graduação, é inevitável passar pelos estágios obrigatórios que, por fim, só se chega lá depois de estar no curso por no mínimo quatro anos.
Desde a metade do curso, me percebi navegando pelas abordagens psicodinâmicas. Até agora, não decidi qual será minha visão de mundo dentro da clínica psicoterápica. Porém, pelo posicionamento fenomenológico, escolhi – por ora – a psicanálise. Se a Psicologia tem sua fundação teórica pelos estudos de Sigmund Freud, então preferi retornar à sua origem para futuramente entender as críticas, considerações e contraposições postas pelas abordagens que surgem em seguida. Por enquanto, prefiro estar aberta para as diferentes visões teóricas, abdiquei de guardar certezas a respeito da Psicologia e usufruo da minha licença de graduanda para experimentar aquilo que nos é proposto – com a suspensão dos meus próprios pré-conceitos. Exemplo: faço análise em analítica, o que me faz ser uma entusiasta em assuntos que explicam o sujeito dentro da visão de mundo junguiana, da mesma forma que me percebo cativada pela lógica gestáltica e ainda me aventuro em compreender o fenômeno de práticas terapêuticas alternativas. Abrir-se durante esse período enriquece o próprio entendimento de mundo.
Quando o relógio estava próximo das 14 horas, meu coração disparou. Não foi um disparo de ansiedade, aquele que se manifesta antes de dar início a uma palestra, a uma apresentação de um trabalho importante. Também não foi aquele tipo de disparo que aparece antes de sair da coxia para entrar em um palco dançar — falando como bailarina. Foi um disparo que eu nunca havia sentido antes, simplesmente veio, aconteceu. E, quando comecei o atendimento, foi como se ele nunca tivesse existido. A recepcionista veio até a sala anunciar que a paciente havia chegado. Disse que tinha ideia de que eu estava nervosa (ela sabia que era meu primeiro atendimento) e que era para eu focar no paciente porque ele estaria tão nervoso quanto eu. Ainda sinto-me aflita antes de começar uma sessão. Hoje mesmo, antes de atender, repassei na cabeça inúmeras vezes possibilidades de falas que poderiam guiar o atendimento. Minha decisão final foi deixar a sessão nas mãos do paciente e os minutos foram se desenrolando junto com as palavras associadas livremente. Toda aquela minha tagarelice monológica e repetição compulsiva de pensamentos foram em vão. E honestamente? Que bom que essa reverberação interna minha foi completamente desnecessária, porque foi lindo ver o desdobramento clínico natural da pessoa que estava frente a mim.
Cometi inúmeros erros nesses últimos meses, tanto com pacientes, quanto nos estágios obrigatórios, mas tenho aprendido boas lições, mais do que com os acertos. Erraram comigo também. Tive que lidar da pior forma com a frustração – interna e externa. Com isso, aprendi a ser flexível comigo e com o outro. Sempre me cobrei academicamente, queria gabaritar as provas, acertar todas as respostas nos trabalhos e completar todos os critérios específicos postos nos OSCEs (Exame Clínico Estruturado e Objetivo). Hoje percebo que as notas altas serviram mais para fortalecer meu ego do que de fato para ensinar algo. As maiores lições que aprendi durante essa etapa final foi quando falhei e olhei para o erro sem juízo de valor. Aceitei o que havia acontecido e refleti acerca para entender o que poderia ser feito de diferente nas próximas vezes. Quando aquilo que é esperado é feito, a chance para discussão diminui. Já quando o erro emerge, abre-se um grande espaço para aprendizado e discussão, é nesse momento que é possível exercitar o processo reflexivo. O erro é um convite para pensar, elaborar e compreender. Eu, que nunca me permiti errar, agora vejo a importância de acolher, com carinho, aquilo que sempre evitei.
A ansiedade pré-atendimento é inevitável, mas é possível pensar em alguns pontos para reduzir essas preocupações. O paciente que está sentado frente a você não faz ideia do que você deve ou não fazer. Ele está ali para olhar para si, nervoso porque tem que vasculhar as profundezas da própria alma. Sua função ali é guiar, dar apoio e acolhimento, mas o principal de tudo é garantir que a escuta ativa seja efetivamente ativa. A partir do momento que você passa a pensar em si, será que cruzo a perna dessa forma?, será que ele percebeu que fiz isso?, o que será que ele está achando de mim?, são inseguranças que dizem respeito a você e não ao outro. Se você se percebe demais durante os atendimentos, algo está errado. Procure focar a atenção na fala do outro, essa é a única forma de não perder a linha de raciocínio daquele que está completamente vulnerável à sua frente. O paciente não sabe nada sobre você ou sobre o que você precisa fazer, logo, se você errar (fazer uma interpretação precipitada, por exemplo), o paciente não saberá. Ninguém perguntará que nota você tirou em determinada matéria, porque afinal, ninguém sabe quais matérias você teve na graduação. Se o sujeito entrou em uma lista de espera pela Clínica-Escola, ele sabe que será atendido por estagiários, e é por essa razão que ele está disposto a pagar o valor social. Então apenas esteja aberto para acolher e escutar.
Um dos princípios da psicoterapia é a imparcialidade, por isso, como posto no Código de Ética do Psicólogo, é vedado ao profissional estabelecer um vínculo de atendimento psicoterapêutico com amigos ou familiares. Não pontuo isso aqui por um acaso e existe uma razão bem fundamentada para esse distanciamento ser priorizado dentro da Psicologia. Dias atrás, uma amiga veio até mim para desabafar, ela estava passando por uma situação delicada em sua vida, era um momento genuíno de crise. Decidi acolher, usar da escuta ativa que a faculdade lapidou em mim. Passei um final de semana dando apoio, afinal, queria ser uma boa amiga. Segunda-feira, primeiro horário da manhã, eu tinha um paciente na clínica e me percebi cansada. Foi então que entendi a importância de saber “desligar” o lado psicoterapeuta fora do setting. Impossível oferecer uma escuta qualificada na ambiência terapêutica se tudo o que você faz fora dela envolve acolher e ajudar o próximo. Quando o cansaço se manifestou, reparei no quanto eu estava sendo injusta comigo mesma e, principalmente, com o paciente, aquele que estava vulnerável na minha frente, que estava precisando e que foi atrás de ajuda profissional. Naquele dia, eu cansei, e é bom descansar, ou melhor, estar descansada. Tenho aprendido aos poucos quando “virar a chavinha” de psicoterapeuta, que escuta e acolhe. Em alguns momentos, pessoas chegam querendo desabafar e eu acho (equivocadamente) que preciso salvar o mundo porque passei os últimos anos da minha vida em uma graduação que ensina a lidar com o caos e as vicissitudes da subjetividade alheia. É importante saber impor limites pela integridade da sua própria saúde mental. Às vezes, só quero conversar entre amigos, ser menos engessada, mais descontraída, não cuidar tanto com cada palavra. Queria ser mais espontânea, divertida e extrovertida.
Quando comecei as aulas de escrita, vi renascer uma vontade que sempre tive: escrever histórias. Confesso que um ponto fraco que tenho é inventá-las, mas percebi que tenho uma certa habilidade para descrever situações interpessoais ou falar sobre as pessoas. E como tem histórias de vida que são fascinantes! Ao transcrever a sessão dos pacientes, percebi que tenho feito aquilo que desejei fazer, escrever sobre as histórias dos outros. Tem uma autora – que também é psicóloga – de quem gosto muito e ela diz: impossível se interessar genuinamente pela história de vida dos outros e não se apaixonar por eles. Transcrever as sessões é uma forma de materializar, dar sentido, contorno e organizar as idiossincrasias e tenacidades da vida daquele indivíduo que decide se vulnerabilizar para você. Cabe a nós compreender o mundo deles por meio dessa narrativa e auxiliá-los a navegar na subjetividade que existe dentro de si.
Esses dias recebi uma notícia péssima vinte minutos antes de iniciar um atendimento. Minha primeira preocupação foi com a notícia que eu havia recebido, depois, o foco da preocupação mudou: como atender sem deixar ser impactada pelo externo? Não tenho resposta para isso, mas esteja avisado de que um dia pode acontecer. E foi difícil. Antes de iniciar a sessão meditei, tomei consciência dos meus sentimentos para não projetá-los no paciente e respirei fundo. Quando iniciamos, foquei ao máximo em estar com ele, em escutar atentamente suas falas e abster o que era externo, o que era meu. Acho que ninguém está imune a uma circunstância como essa, que vem tão desavisada.
Passamos anos em sala de aula iniciando nossas perguntas com “mas professor, e se…”. Durante o período teórico, hipotetizamos as situações mais absurdas que poderiam acontecer ao atender um paciente, mas, quando chegamos de fato na clínica, todas as teorias que um dia exigiram extrema criatividade sucumbem. Percebemos que as hipóteses convictas, são, na verdade, apenas fantasias que nascem do medo daquilo que é desconhecido. Essa ânsia desconfortante e fantasias carregadas de ansiedade são tentativas de aliviar as aflições em estar disposto a ver em minúcias a subjetividade humana. Por conta de incertezas como essas, sempre tive aversão pela prática psicoterápica, achei que nunca gostaria de atender ou que seria incapaz de, mas não é tão ruim quanto imaginava. É preciso lembrar que quem senta à nossa frente é tão humano quanto nós, quanto nossos amigos e familiares. Talvez você tenha um paciente que trará uma demanda parecida com o de alguém que é próximo de você, ou melhor (pior, talvez), traga uma demanda que é sua, que te atravessa e que te toca. O processo psicoterapêutico jamais será uma jornada unilateral, olhar para o outro é permitir que você também seja olhado de volta. Nós, no papel de terapeutas, fazemos um convite para o paciente olhar para si e, sem saber, fazem isso com a gente também. Não saímos intactos dessa relação, não quando nos permitimos ser tocados por narrativas alheias às nossas. Tiveram momentos que deixei o sentimento de impotência me consumir diante do sofrimento explícito, quis chorar na frente do paciente, me desesperei e fui rever minha técnica. A dor é uma sensação penosa e desagradável, mas antes de tudo, primitiva. Quando essa condição de primitivismo surge, é uma oportunidade de colocar nossa presença viva e tão humana quanto a do paciente em expressão: oferecer contorno psíquico, e não novas ideias; acolher com escuta ativa, e não com intervenções pensadas; oportunizar a fala, e não verbalizar as palavras certas. Quando aceitei que estaria atendendo na clínica, comecei a imaginar em como eu seria durante os atendimentos, até cheguei a fantasiar que seria tal como minha principal referência do momento, minha própria psicóloga. Eu achava que, ao entrar na sala de atendimento, estaria abdicando de mim, como se eu fosse incorporar um outro alguém. Me surpreendi quando deparei comigo mesma já nos primeiros atendimentos, essa realização foi definitivamente uma desconstrução. Durante um semestre inteiro, escutei de um professor que deveríamos “construir a própria gestalt” quando estivéssemos no papel de terapeutas, mas nunca fez sentido até chegar neste momento.
Impossível viver verdadeiramente a graduação de Psicologia e não sair mudado de alguma forma, parte de conhecer a si mesmo é se desconhecer. Confesso, comecei esse texto com um posicionamento otimista. Agora, já nem tanto. Questionei inúmeras vezes se a Psicologia realmente era para mim, me senti perdida, confusa e frustrada. Carreguei comigo o medo, o receio e a insegurança. Jurei que nada daria certo. Duvidei de mim, me cobrei excessivamente e ainda me pergunto quando vou me sentir psicóloga. Nesse tempo, a escrita veio para mim como uma possibilidade de me organizar psiquicamente nos dias que eu me cobrava. Essa materialização do aqui-agora me acompanhou durante meus primeiros cinco meses de estágio, voltei nesse texto e busquei ser mais gentil comigo mesma, afinal, eu só sou uma estagiária dando meus primeiros passos dentro da carreira de psicoterapeuta. Encerro parafraseando algo que uma professora disse uma vez: A angústia direcionada como pergunta é Psicologia. Direcionada para literatura, se transforma em arte – sublimação. Ainda assim, depois de toda a elaboração, digo, a angústia não passa.
ABNT — PALUDO, J. K. Da angústia ao fascínio. CadernoS de PsicologiaS, n6, edição impressa, 2024.
APA — Paludo, J. K. Da angústia ao fascínio. CadernoS de PsicologiaS, n6, edição impressa, 2024.
ABNT — PALUDO, J. K. Da angústia ao fascínio. CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/da-angustia-ao-fascinio/. Acesso em: __/__/___.
APA — Paludo, J. K. Da angústia ao fascínio. CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/da-angustia-ao-fascinio/