Revista CadernoS de PsicologiaS

Desbravando as narrativas: as psicologias na (re)construção e avanço do SUAS

Andressa Pires Martins Santana
Prefeitura Municipal de Paiçandu

Psicóloga (CRP-08/16324) — E-mail: andressapiresmartins@hotmail.com
Carine Suder Fernandes
Prefeitura Municipal de Guarapuava

Psicóloga (CRP-08/11346) — E-mail: carine.suder@gmail.com
Kaio Cesar Pacheco
Prefeitura Municipal de Ibiporã

Psicólogo (CRP-08/29517) — E-mail: kaiopacheco28@gmail.com
Larissa Schelbauer
Prefeitura Municipal de Guarapuava

E-mail: larischel@gmail.com
Luane Kafcka Sanzovo
Prefeitura Municipal de Inácio Martins

Psicóloga (CRP-08/36106) — E-mail: luane.kafcka@gmail.com
Mariane Ranzani Ciscon-Evangelista
Unicesumar e Prefeitura Municipal de Maringá

Psicóloga (CRP-08/17722) — E-mail: mariciscon@gmail.com
Simone Cristina Gomes
Prefeitura Municipal de Munhoz de Mello

Psicóloga (CRP-08/14224) — E-mail: simonecrgomes@gmail.com
Tiago Henrique Dolphine Alves
Prefeitura Municipal de Paiçandu

Psicólogo (CRP-08/15417) — E-mail: tiago.dolphine@hotmail.com
#Relatos_de_experiência

Resumo: Neste trabalho convidamos o(a) leitor(a) a acompanhar o relato de sete psicólogas(os) atuantes no Sistema Único de Assistência Social (SUAS) em áreas e municípios diferentes do Paraná. Usando metodologia qualitativa, composta por narrativas das experiências profissionais e de sua construção, chegamos a categorias comuns aos relatos. Na discussão exploramos, de forma inicial, duas dessas categorias, discorrendo sobre a identidade profissional da psicologia (e da(o) psicóloga(o)) no contexto do SUAS, bem como sobre o imperativo do aprimoramento técnico constante destas(es) profissionais. Deixamos a sugestão e o compromisso de realização de outras pesquisas que contribuam para a consolidação da identidade profissional, bem como sirvam de fundamentação para as psicólogas inseridas e/ou que venham a pertencer ao SUAS como universo de trabalho.

Palavras-chave: Psicologia; SUAS; atuação profissional.

EXPLORING NARRATIVES: PSYCHOLOGIES IN THE (RE)CONSTRUCTION AND ADVANCEMENT OF SUAS

Abstract: In this article, we invite the reader to follow the account of seven psychologists working in the SUAS in different areas and counties in the state of Paraná. Using a qualitative bug methodology composed of narratives of their professional experiences and their development, we arrived at common categories to the accounts. In the discussion, we explore, initially, two of these categories, discussing the professional identity of psychology (and psychologists) in the context of SUAS, as well as the constant imperative of technical improvement for these professionals. We leave the suggestion and commitment to carry out further research that contributes to the consolidation of professional identity and to serve as a foundation for psychologists already integrated into or planning to join SUAS as their working environment.

Keywords: Psychology; SUAS; professional practice.

EXPLORANDO LAS NARRATIVAS: LAS PSICOLOGÍAS EN LA (RE)CONSTRUCCIÓN Y AVANCE DEL SUAS

Resumen: En este trabajo, invitamos al lector a seguir el relato de siete psicólogas/os que trabajan en el SUAS en diferentes áreas y municipios de Paraná. Utilizando una metodología cualitativa, que consta de narrativas de experiencias profesionales y su construcción, llegamos a categorías comunes en los relatos. En la discusión, exploramos inicialmente dos de estas categorías, hablando sobre la identidad profesional de la psicología (y de la(o) psicóloga(o)) en el contexto del SUAS, así como sobre la necesidad constante de mejora técnica de estos profesionales. Dejamos la sugerencia y el compromiso de llevar a cabo otras investigaciones que contribuyan a consolidar la identidad profesional y que sirvan como base para las psicólogas insertadas y/o que vayan a formar parte del SUAS como ámbito de trabajo.

Palabras clave: Psicología; SUAS; Actuación profesional.

Introdução

Este artigo traz relatos de experiências vivenciadas por psicólogas(os) que desempenharam papéis cruciais no âmbito do Sistema Único de Assistência Social (SUAS), atuando em diferentes níveis de complexidade e equipamentos públicos dos municípios do estado do Paraná. Essas(es) profissionais atuam/atuaram em um contexto desafiador e essencial, onde as desigualdades sociais se manifestam de maneira contundente.

Para proporcionar uma compreensão de como a psicologia tem contribuído para o SUAS, inicia-se com uma contextualização histórica da política de Assistência Social no Brasil, explorando marcos legais e diretrizes que culminaram na criação do SUAS. Utilizando uma abordagem metodológica qualitativa, que se baseia nas narrativas de psicólogas(os) como uma maneira de explorar as múltiplas dimensões de suas experiências, permitindo uma compreensão mais profunda dos desafios, conquistas e lições aprendidas. Assim, examina, de maneira detalhada, a inserção da atuação da psicologia nesse contexto, destacando o papel essencial dessas(es) profissionais em uma prática ético-política comprometida com a defesa intransigente dos direitos humanos, bem como a necessidade de permanente aprimoramento teórico-metodológico embasando o fazer psi.

Referencial Teórico

No Brasil, em meados de 1930, houve um acirramento das desigualdades e conflitos sociais a partir da industrialização nacional e do êxodo rural. Até 1980, a resposta padrão do Estado era delegar o silenciamento da população às instituições sociais especializadas em coagir e persuadir por meio da força física, haja vista o interesse da classe política hegemônica em controlar essas questões sociais (Iamamoto; Carvalho, 1996). Neste cenário, a população se organizou, mobilizou e lutou pela construção e efetivação de um estado democrático de direito, tendo como eixo o controle da sociedade civil sobre o Estado, o contrário do que acontecia até então, fator fundante no qual se apoiou a Constituição Federal de 1988 (da Silva, de Medeiros; da Fonseca; & Pestano, 2009). A Lei Orgânica de Assistência Social (BRASIL, 1993) que reorganiza a lógica da Política de Assistência Social a partir dos princípios postos na nova Constituição Federal, reduz drasticamente o caráter coercitivo e assistencialista predominante até então e explicita o reconhecimento dos direitos sociais a todas as pessoas cidadãs, regulamentando as primeiras ações necessárias para minimizar os abismos sociais.

A partir do reordenamento da política de Assistência Social, a psicologia passou a ser uma das profissões necessárias para compor os diversos equipamentos da rede socioassistencial, conforme consta na Norma Operacional Básica Recursos Humanos do SUAS (NOB-RH/SUAS). A inclusão de psicólogas(os) na equipe é resultado do reconhecimento da importância da subjetividade como um elemento crucial para o pleno exercício da cidadania. À medida que o trabalho social avança na promoção de direitos, as questões subjetivas desempenham um papel significativo ao lado das dimensões sociais e políticas, influenciando o acesso e a efetivação desses direitos, promovendo a prevenção de situações que podem agravar as vulnerabilidades (Afonso et al, 2012). 

Tal reconhecimento nasce da contribuição da Psicologia Social Comunitária desde a década de 1980, alguns anos antes da Promulgação da Constituição Federal de 1988, promovendo um olhar humanizado para grupos sociais, garantindo direitos e sublinhando a importância de compreender as pessoas como sujeitos de direitos, promovendo o diálogo sobre temas como cidadania, vínculos sociais e acessibilidade, de modo a potencializar a autonomia daqueles sujeitos.

A psicologia, ancorada em seu código de ética, assume esse papel ao revisitar e problematizar os limites e interseções relativos aos direitos e processos individuais e coletivos, o que é crucial para as relações que estabelece com a sociedade, colegas de profissão e a população usuária e beneficiária dos seus serviços. Esse posicionamento resulta na afirmação da atuação com responsabilidade social, analisando crítica e historicamente a realidade política, econômica, social e cultural como um dos princípios éticos fundamentais (CFP, 2005).

Método

A complexidade das questões sociais enfrentadas pelas(os) psicólogas(os) no contexto do SUAS requer uma abordagem além das métricas quantitativas. A pesquisa qualitativa, conforme Minayo, Deslandes & Gomes (2011), permite uma compreensão aprofundada de fenômenos complexos, valorizando os significados atribuídos pelas(os) e autoras(es) do artigo. Ela capta narrativas, perspectivas e contextos sócio-culturais, enriquecendo a análise crítica da atuação do psicólogo na Assistência Social e promovendo vínculos afetivos por meio da partilha de histórias e da escuta ativa.

Partindo desse pressuposto, é fundamental reconhecer que o diálogo e a escuta devem ser conduzidos com cuidado e gentileza, com uma abordagem ética que transcende as formalidades legais da pesquisa. A pesquisadora(o) que se empenha em criar conhecimento dentro dessa perspectiva enfrenta constantes questionamentos sobre os impactos e os grupos que se beneficiarão desse conhecimento. Essas considerações epistemológicas e metodológicas estão alinhadas com a complexidade da prática da(o) psicóloga(o) no SUAS em uma perspectiva ético-política.

Na elaboração deste artigo, escolhemos a estratégia narrativa, conforme Spink et al. (2014), para preservar a diversidade e estética dos relatos de experiência das colaboradoras. A abordagem narrativa possibilita reorganizar expressões verbais e gerenciar fontes diversas, criando dispositivos de memória que fluem naturalmente na prática cotidiana. Ao adotar a narrativa, entramos nas políticas de localização, onde os recursos metodológicos se entrelaçam com questões ético-políticas, permitindo considerar quais pessoas, mundos e conhecimentos são envolvidos em nossas histórias. De acordo com Haraway (1995), as narrativas transcendem a universalidade, destacando a parcialidade e múltiplas perspectivas que moldam as experiências profissionais de cada psicóloga(o) em seu percurso.

Os relatos de experiências que se seguem compreendem o período de 2007 a 2023 em diversos municípios do Estado do Paraná. Optamos por manter a objetividade dos relatos, visto a quantidade e qualidade dos mesmos, a fim de dar espaço para que as autoras(es) do artigo pudessem contribuir com suas riquíssimas experiências. Subsequentemente será realizada uma breve discussão acerca das narrativas apresentadas, pontuando as possíveis similaridades e divergências nos relatos a partir de um diálogo crítico no âmbito da psicologia social.

Resultados 

A Psicologia na Proteção Social Básica e o Trabalho Social com Grupos 1

Atuo no SUAS desde 2012, predominantemente com grupos no âmbito do PAIF e SCFV. Percebo que me colocar diante delus como uma participante “regular” proporcionam oportunidades únicas de vinculação com cada pessoa, de modo que cada ume pode trazer sua história e suas reivindicações de forma franca e honesta. São chances valiosas de conectar os objetivos previstos pelas normativas às suas queixas e anseios. Abrir mão do controle e flexibilizar o planejamento é outro aprendizado importante: estar atenta aos diálogos espontâneos que ocorrem durante uma atividade manual/artesanal proporciona trocas nas quais é possível tecer conexões entre as experiências vivenciadas. Nessas mesmas oportunidades eu ainda consigo, com o devido cuidado ético, problematizar posicionamentos conservadores e violentos. A interlocução com profissionais de outras áreas é de fundamental importância para incluir outros aspectos ao analisar os processos grupais e construir – sempre coletivamente – os percursos a serem seguidos por meio dos encontros.

Atuar nessa seara pode ser bastante doloroso e desafiador, resultando em esgotamento diante da sobrecarga, considerando o contexto conservador e neo-liberal no qual estamos inserides. Por outro lado, quando conseguimos perceber as mudanças significativas na forma como as pessoas atendidas passam a sentir e compreender suas próprias relações familiares e comunitárias e como isso reverbera em interações permeadas por mais gentileza e generosidade, sem abrir mão da luta por transformação de suas realidades concretas… Nossa, isso é um elixir de vida que renova meu esperançar em estar atuando no SUAS, contribuindo na produção de fissuras nas estruturas hegemônicas. 

Explorando Novos Caminhos: Minha Jornada no SUAS como Psicóloga2

No meu primeiro ano como psicóloga, iniciei minha jornada no SUAS. Sem experiência prévia, senti a falta de disciplinas voltadas para essa área em minha formação. Fui pega de surpresa, ingressando em um serviço de média complexidade em uma pequena cidade com alta demanda por casos de violações de direitos.

O CREAS é um serviço de proteção social especial que visa fornecer apoio psicossocial, orientação e acompanhamento a pessoas e famílias em situações de vulnerabilidade social, lidando com violações de direitos (MDS, 2014). Seu foco principal é promover a inclusão social e o acesso a direitos básicos, buscando superar a violência e suas reincidências. Tanto eu quanto a equipe, todas novatas no serviço, cheias de expectativas, desenvolvemos ideias de intervenção, novas ferramentas e abordagens para o atendimento. Apesar da minha insegurança devido à falta de experiência técnica, dediquei-me a me familiarizar com os documentos que orientam a atuação da Psicologia nesses contextos. Participei de grupos de estudo e integrei a Comissão Temática de Psicologia e Assistência Social da região.

Não é uma jornada fácil. Enfrento muitos desafios em relação ao nosso papel no SUAS, nos relacionamentos interdepartamentais, na comunicação com o sistema de justiça, na resistência à desconstrução de preconceitos no corpo técnico e na falta de financiamento (pois o serviço é mantido apenas pelo município, apesar da alta demanda) e na falta de capacitações em nosso território. Apesar das adversidades, é gratificante ver que esses desafios nos impulsionam a reivindicar nosso espaço de atuação com mais engajamento político, ética e responsabilidade.

Desafios para a proteção social dos/das adolescentes em medidas socioeducativas3

A expressão “de paraquedas” parece ser a que melhor descreve meu primeiro contato com o SUAS. Foi uma aterrissagem bastante difícil e desafiadora no Serviço de Proteção Social para Adolescente em Cumprimento de Medida Socioeducativa de Liberdade Assistida e Prestação de Serviço a Comunidade, nome comprido que, por razões técnicas-éticas faço questão de escrevê-lo por completo para enfatizar que o serviço tem função de proteção social aos adolescentes (e suas famílias).

Contraditoriamente às minhas expectativas, os desafios não estavam em trabalhar com e por adolescentes a quem são atribuídos atos infracionais, mas sim relacionados às (im)possibilidades do trabalho/serviço em cumprir suas funções de proteção social e de responsabilização, principalmente em razão das desproteções sociais dos territórios e das dificuldades do atuar e articular em rede intersetorial. Em sua maioria, aqueles que chegavam ao serviço, estavam com múltiplos direitos violados, sendo que estes antecediam às práticas dos atos infracionais e, ainda assim, era comum que essas famílias não estivessem sendo assistidas pelos serviços ofertados no SUAS. As principais desproteções sociais dos(as) adolescentes (e suas famílias) estavam relacionadas ao acesso e permanência na política de educação, em saúde mental, ao trabalho, à renda e à moradia. Situações essas que, o SUAS em si, pouco tinha ou podia ofertar para “remediar”, sendo o trabalho essencialmente realizado por meio de diálogos, de articulações com outras políticas setoriais, de denúncias, por meio de informação e mobilização aos usuários dos serviços e sociedade em geral para exigência de seus direitos. Atividades estas, que todo trabalhador do SUAS está familiarizado.

Em específico, há ao menos outros dois desafios relacionados ao trabalho na socioeducação: a) as expectativas sociais e jurídicas sobre o trabalho/atendimento realizado e, b) a persistência do “menorismo” como prática sociocultural, inclusive, na própria política de assistência social. Parece-me que ao adolescente a quem é atribuído ato infracional  tem menor possibilidade de acesso aos seus direitos e serviços na integralidade e qualidade, ainda que legislativamente haja um arcabouço específico que reafirme a garantia desses direitos. Inclusive, parece que utilizar ferramentas jurídicas na defesa de adolescentes e suas famílias pode resultar na utilização de mecanismos perversos para a manutenção das desproteções sociais e para violências institucionais, seja qual for a política setorial envolvida, inclusive no SUAS. E, nesse sentido, o exercício do trabalho ético-técnico da psicologia também consistia em transformar saberes e práticas morais,  descontextualizadas e despolitizadas dentro do próprio SUAS, tarefa hercúlea necessária para o SUAS que queremos e precisamos. 

O que faz a Psicologia no Órgão Gestor? 4

A entrada de psicólogas(os) no SUAS, e especificamente, no Órgão Gestor é desafiadora no que tange às dificuldades advindas de uma formação clássica de prática clínica. A grande maioria, como eu, deparam-se com uma crise de identidade profissional, quando são inseridos em atuações administrativas no SUAS. Inicio nesta questão: O que faz a(o) psicóloga(o) no Órgão Gestor? 

Importante pontuar que no SUAS, as equipes técnicas de referências têm atribuições conjuntas e coletivas. Nesta proposta, está embutida o trabalho intersetorial e transdisciplinar, o que diferencia nossa prática profissional, é o olhar sobre as dinâmicas psicológicas enviesadas e atravessadas pelos aspectos individuais, familiares, sociais, econômicos, políticos, históricos, étnicos-raciais, de gênero entre outros contextos que constroem e performam o ser humano. Sendo assim, minha prática profissional no Órgão Gestor, me convidou a escutar, refletir, estudar e olhar com atenção sobre as incidências e as relações de trabalho entre a gestão pública no SUAS, nas pessoas em cargos de liderança e com olhar atento a trabalhadoras(es) de todos os níveis de escolaridades, bem como da Rede de Atendimento Terceirizada, seja como Pessoa Jurídica, ou Organizações da Sociedade Civil.

Nesta trajetória, a escuta atenta, o diálogo e a reflexão conjunta foram protagonistas, para possibilitar a construção coletiva da oferta de serviços qualificados para as famílias e indivíduos atendidos, como preconiza a Gestão do Trabalho no SUAS (MDS, 2011). Ademais, desafiada pelo contexto de precarização das relações de trabalho no SUAS, adoecimento e desgaste emocional, frente às expoentes demandas, transbordamento do judiciário e INSS para as equipes do SUAS, encontrei nas Práticas Restaurativas, uma estratégia possível de intervenção como metodologia de diálogo em grupo, mediando fala e  escuta atenta e respeitosa entre os colegas. Foram realizados encontros que possibilitaram aproximação entre as equipes e serviços, melhorando os fluxos de trabalho. No entanto, um desafio é a impermanência de profissionais em seus locais de trabalho. Projetos são interrompidos, vínculos são fragilizados. E nós, como o SUAS, continuamos resistindo e lutando para sobreviver e nos reinventar, apesar das desconstruções.

O conhecer, apaixonar-se e lutar pelo SUAS através do controle social 5

Nas apresentações dos encontros que tinham o SUAS como temática o comum foi o desconhecer ou não ter o escolhido, mas logo vinha uma calorosa descrição acerca do apaixonar-se e comigo não foi diferente. Minha única certeza era não praticar clínica individual assim como minha formação me preparou, a despeito da formação generalista. Por algum tempo me angustiei pela falta de uma atribuição específica. Nos encontros, trocas e vínculos, sob diversos formatos que entendi e ressignifiquei minha atuação.

Acolhida, vínculos, plano de ação e acompanhamento de famílias e indivíduos, entre outras práticas, passaram a fazer parte do nosso (no plural, pois me é necessário dizer que ele foi vivido coletivamente, em especial com uma assistente social) cotidiano. Entretanto, vieram tempos sombrios que se buscou calar, desacreditar e marginalizar para então desmontar e vulnerabilizar. Impasses no financiamento que contornamos com planejamento, ações intersetoriais com encontros, mandos e desmandos com o debater normativas e notas técnicas, que nos consumiam e esgotavam. Entendi, então, que outras ferramentas eram necessárias.

Comecei como suplente em um conselho de assistência social pois, logo entendi que ali se delibera, há voz e voto acerca do SUAS: que melhor busca de garantia de direitos que esta? Afinal, é somente através do colocar nosso conhecimento e atuação em prol da promoção da cidadania e com responsabilidade social, compromissos esses firmados pela nossa categoria, que fazemos jus a nos identificarmos como profissionais da psicologia pois, do contrário, estaremos ou sendo coniventes ou mais violando do que protegendo.

Sobre encontros: a atuação da psicologia no SUAS e o estágio de formação profissional 6

Desde que conheci o SUAS compreendi que atuação e academia precisavam permanecer de mãos dadas, e é assim que tenho tentado oferecer minha contribuição. Sou psicóloga no SUAS (PAEFI/CREAS) e também supervisora de estágio de formação profissional em psicologia, por meio do qual tenho tido contato com os mais diversos Serviços, Instituições (governamentais e não-governamentais) e municípios.

Temos desbravado um terreno ainda em construção, enviando alunos do último ano do curso de psicologia para experimentarem a profissão nos espaços do SUAS. E tem sido uma experiência riquíssima, uma vez que os alunos estudam conteúdos atualizados e específicos ao trabalho social com famílias, dentre outros pertinentes, e levam esses conteúdos a seus locais de estágio. Ao mesmo tempo, ao entrar em contato com a experiência dos profissionais que já estão no campo, vivenciam o choque de uma realidade com a qual, na maioria das vezes, não tinham contato, e sensibilizam-se com os sofrimentos, as dificuldades da prática da construção e execução das políticas públicas, dos desgastes dos profissionais provenientes dos muitos enfrentamentos com a gestão, com a falta de recursos, com as solicitações indevidas, com a constante sobrecarga de trabalho permeada por pouco reconhecimento e muitas cobranças. Porém também vivenciam a transformação de realidades, a (às vezes lenta) construção de novos caminhos e possibilidades, a minimização de situações de violações de direitos, a psicologia aplicada que resulta em melhor qualidade de vida a quem a acessa. E que lindo tem sido esse processo! 

Educação Permanente: caminhos possíveis no SUAS que queremos! 7

Em consonância com a NOB-RH/SUAS e demais marcos normativos do SUAS, a Política Nacional de Educação Permanente do SUAS (PNEP/SUAS) foi instituída por meio da Resolução nº 04, de 13 de março de 2013 do Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS, 2013), tendo por objetivo estabelecer princípios, diretrizes e mecanismos para a efetivação de uma prática sistemática de educação permanente no SUAS, de forma tripartite, orientada nas dimensões pedagógicas e do trabalho, visando o aprimoramento técnico dos trabalhadores, gestores e conselheiros da política pública de assistência social calcados no compromisso ético da oferta de proteção social, respeitando as diversidades humana e socioterritoriais.

A Psicologia pode se inserir na Educação Permanente do SUAS de inúmeras formas, nos núcleos de educação permanente, como supervisora técnica ou como formadora. Nessa ótica, estando conselheira nacional e anteriormente estadual de assistência social na representação do sistema conselhos de psicologia, me possibilitou ser membro do Núcleo Nacional de Educação Permanente do SUAS (NUNEP/SUAS) e seu congênere estadual (NEEP/SUAS), incidindo principalmente sobre a efetivação do Programa CAPACITASUAS em ambos os colegiados, mas também participando ativamente da elaboração do Plano Estadual de Educação Permanente do SUAS no Paraná. 

Um dos grandes desafios é a implantação dos Núcleos Municipais de Educação Permanente do SUAS, visto que no compromisso tripartite o município também é responsável por qualificar suas atrizes sociais e essa responsabilidade é insubstituível se pensarmos que cada município possui uma realidade ímpar, com sua diversidade populacional, cultural e territorial. Ainda há muito o que se avançar em termos de educação permanente do SUAS, entendendo que ela é fundamental para que consigamos qualificar de fato a garantia dos direitos socioassistenciais, principalmente no que diz respeito à efetivação das supervisões técnicas e a autonomia do controle social. Somente por meio de um processo adequado de educação permanente conseguiremos transpor muitas das barreiras expostas acima nos relatos de experiências dos colegas nos serviços.

Discussão

A decisão pela apresentação de relatos de diferentes experiências justifica-se pela importância em exemplificar as diversas possibilidades de práticas profissionais da(s) psicologia(s) no SUAS, considerando sua dimensão, bem como, a previsão e existência de serviços específicos para vários contextos e públicos-alvo. A psicologia no SUAS é plural e fundamentalmente importante para a existência/resistência dessa políticaNesses diferentes relatos, destacam-se duas categorias presentes que atravessam todas as narrativas, de formas mais ou menos explícitas: A) Crise de identidade profissional; B) Imperativo de aprimoramento técnico constante. 

Para sinalizar uma possível crise de identidade profissional, Macedo et al. (2011) encontraram mais de oito mil psicólogos trabalhando no SUAS na década de 2010. Ribeiro e Guzzo (2014) destacam a falta de formação adequada, espaços para discussão e a precarização das condições de trabalho como obstáculos para a harmonização com as diretrizes do SUAS. No entanto, reconhecem algumas iniciativas alinhadas a esses objetivos. Uma década depois, os relatos apresentados narram um início desafiador, resultando em experiências enriquecedoras e transformadoras para os atendidos. Nesse contexto, promovemos a reflexão sobre uma psicologia crítica e contextualizada socialmente, que questiona não apenas as vivências dos beneficiários, mas também as próprias experiências dos profissionais, considerando o contexto de trabalho em que estão inseridos.

Neste mesmo sentido, o aprimoramento técnico constante se faz necessário e tem sido o diferencial na execução do trabalho que é efetivo e gera impacto aos indivíduos, famílias, grupos sociais e comunidades que atravessam nossos caminhos. Isso tem acontecido por meio das mais recentes grades curriculares enquanto os profissionais ainda estão na graduação; novos cursos de pós-graduação relacionados ao tipo de trabalho desenvolvido e ainda, mais especificamente sobre a atuação no SUAS; e especialmente, à possibilidade e necessidade de formação continuada enquanto no exercício do trabalho. 

Partindo das narrativas apresentadas, foi possível observar que, como em todas as trocas estabelecidas em uma relação interpessoal, cada ação desenvolvida por essas(es) profissionais é um trabalho de artesania, pois possibilita a emergência e a produção de elementos únicos do contexto abordado, que favorecem uma ampliação da compreensão daquele universo simbólico e relacional. Embora existam similaridades com outras situações – que possibilitam também a construção de conexões entre as diferentes realidades vivenciadas por diferentes pessoas – é dado destaque para o que é singular, para as idiossincrasias daquelas pessoas, grupos, comunidades. 

Considerações finais

O SUAS está em contínuo aprimoramento, assim como a psicologia que, inserida nele, avança rumo à maturidade teórica, metodológica e prática, promovendo diálogo interdisciplinar e com as(os) usuárias(os). Destacamos sua contribuição ao enfocar os aspectos subjetivos na vulnerabilidade e risco social, sublinhando a importância do desenvolvimento de técnicas de abordagem e entrevistas adequadas às necessidades da população, baseadas na construção de vínculos de confiança entre os usuários e as equipes de referência, sustentadas pela defesa intransigente dos direitos humanos.

Ao seguir (re)construindo, na prática, deixamos o convite e o compromisso de edificar também teoricamente, elaborando pesquisas que subsidiem o conhecimento e as práticas de profissionais que já estão no campo, bem como daqueles que estão se preparando para isso. Assim ressalta-se a importância do coletivo, a exemplo das(os) psicólogas(os) que juntamente teceram, narraram e ressignificaram suas experiências para que outras(os) possam continuar ou iniciar no SUAS com o verbo esperançar, para reinventar o mundo, como diria Paulo Freire (2014), ou ainda reinventar a psicologia no SUAS.

Notas

[1] Psicóloga Carine Suder Fernandes (CRP 08/11346), servidora pública em Guarapuava/PR. Graduada pela UFSC (2005), Mestre em Psicologia pela UFSC (2007), Especialista em Psicologia Clínica – Terapia Relacional Sistêmica pelo Familiare Instituto Sistêmico (2008). Facilitadora de Práticas Restaurativas. Foi docente universitária por seis anos, lecionando e supervisionando em Psicologia Social e Psicologia Escolar, entre outras áreas (2007 – 2012). Representante dos Trabalhadores no Fórum Municipal de Assistência Social e no Conselho Municipal de Assistência Social. Coordenadora da Comissão de Psicologia e Assistência Social Centro-Oeste e colaboradora no CRP na Comissão Setorial Centro-Oeste e no Núcleo DIVERGES da Comissão de Direitos Humanos.

[2] Psicóloga Luane Kafcka Sanzovo (CRP 08/36106), pós-graduada em Assistência Social e Saúde Pública (2023). Colaboradora  no CRP, na CPAS de Guarapuava/PR. Atua, desde set/2022, no CREAS de Inácio Martins/PR, onde também é conselheira no Conselho Municipal de Assistência Social e no Conselho Municipal da Mulher.

[3] Psicóloga Larissa Schelbauer (CRP 08/19.051), mestra em Políticas Públicas e Desenvolvimento (2022) pela Universidade Federal da Integração Latinoamericana (UNILA), foi servidora pública municipal no município de Foz do Iguaçu, atuando em CREAS e em Residência Inclusiva (2016-2022)xc, colaboradora da Comissão de Psicologia e Assistência Social de Foz do Iguaçu. Atualmente é servidora pública municipal de Guarapuava-Pr, atuando no CRAS, colaboradora da Comissão de Psicologia na Assistência Social Centro-Oeste e do Núcleo Anticapacitista do CRP-PR.

[4] Andressa Pires Martins Santana, graduada em Psicologia pela UEM, Pós graduada em Psicologia Analítica, e em Gestão do SUAS. Trabalhadora do SUAS desde 2014 na Secretaria de Assistência Social de Paiçandu, atuou no CREAS, Órgão Gestor, Família Acolhedora, e atualmente, Secretária Executiva dos Conselhos de Direitos e de Assistência Social.  Compõe a Comissão de Psicologia no SUAS pelo CRP. Atua também no consultório como Psicóloga clínica e com Círculos de Práticas Restaurativas.

[5]  Psicólogo Tiago Henrique Dolphine Alves (CRP 08/15417), servidor público no município de Paiçandu/PR. Graduado pela UniCesumar (2009), Especialista em Psicologia Clínica – Análise do Comportamento (2015). Membro da CPAS Maringá, representante do Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP 08) no Conselho Municipal de Assistência Social (COMAS) de Maringá/PR e ex-representante no Conselho Estadual do Paraná (CEAS).

[6] Psicóloga Mariane Ranzani Ciscon Evangelista (CRP-08/17722). Mestre e Doutora em Psicologia pela Universidade Federal do Espírito Santo. Professora de graduação e pós-graduação na Unicesumar. Membro da CPAS Maringá. Conselheira suplente do Conselho Gestor de Justiça Restaurativa de Maringá e do Conselho Municipal dos Direitos das Mulheres de Maringá. Servidora pública no Município de Maringá/PR. 

[7] Psicóloga Simone Cristina Gomes (CRP 08/14224). Mestranda em Psicologia e Sociedade na UNESP Assis. Graduada em Psicologia pela UEM. Especialista em Gestão Pública. Pós Graduada em Neuropedagogia. Técnica em Administração. Representante do Conselho Federal de Psicologia (CFP) no Conselho Nacional de Assistência Social (CNAS) e no Fórum Nacional de Trabalhadores do SUAS (FNTSUAS) e do Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP 08) no Fórum Estadual dos Trabalhadores do SUAS (FETSUAS/PR). Membro da Comissão Nacional de Psicologia na Assistência Social CONPAS. Coordenadora da CPAS Maringá. Ex-Presidente do CEAS/PR. Servidora Pública no Município de Munhoz de Mello/PR.

Referências

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Como citar esse texto

APA — Santana, A. P. M., Fernandes, C. S. Pacheco, K. C., Schelbauer, L. Sanzovo, L. K., Ciscon-Evangelista, M. R., Gomes, S. C., Alves, T. H. D. Desbravando as narrativas: as psicologias na (re)construção e avanço do SUAS. CadernoS de PsicologiaS, 4.  Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/desbravando-as-narrativas-as-psicologias-na-reconstrucao-e-avanco-do-suas/

ABNT — SANTANA, A. P. M., FERNANDES, C. S., PACHECO, K. C., SCHELBAUER, L., LUANE, K. S., CISCON-EVANGELISTA, M. R., GOMES, S. C., ALVES, T. H. D. Desbravando as narrativas: as psicologias na (re)construção e avanço do SUAS. CadernoS de PsicologiaS, n. 4, 2023. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/desbravando-as-narrativas-as-psicologias-na-reconstrucao-e-avanco-do-suas/Acesso em: __/__/___.