Revista CadernoS de PsicologiaS

(Des)construções de uma Liga Acadêmica de Psicanálise:
Relato de Experiência

Josiane Santos Costa
(CRP-08/22457)
Docente do curso de Psicologia e Coordenadora da Liga Acadêmica de Psicanálise
FACNOPAR – Faculdade do Norte Novo de Apucarana | UEL – Universidade Estadual de Londrina
E-mail: josianesantos.psicologa@gmail.com
Aruana Aparecida Serezino
FACNOPAR – Faculdade do Norte Novo de Apucarana
E-mail: aserezino@gmail.com
Jeanderson Gonçalves
FACNOPAR – Faculdade do Norte Novo de Apucarana
E-mail: gonc.jean@gmail.com
Sirlene Cristina Vidal Bobig
FACNOPAR – Faculdade do Norte Novo de Apucarana
E-mail: scvbobig@gmail.com
Tales Argenton Manzatto
FACNOPAR – Faculdade do Norte Novo de Apucarana
E-mail: talesmanzatto@gmail.com

#Relatos_de_Experiências

ERRATA: Na versão impressa deste artigo, a organização padronizada dos resumos foi inadvertidamente comprometida. A versão digital, elaborada de acordo com os critérios estabelecidos, deve ser considerada como a referência oficial. Lamentamos o equívoco e agradecemos pela compreensão.

Resumo: Neste artigo tratamos de nossa experiência enquanto estudantes de psicologia e membros de uma liga acadêmica de psicanálise no que toca as nossas atividades, especialmente aos estudos em grupo. Desde Freud, com as conhecidas Reuniões de Quarta-feira, sabemos da importância dos grupos de estudo para a história e construção do saber psicanalítico. É no plural que trabalhamos nos encontros de nossa Liga, temos como premissa criar um espaço de troca e reflexão crítica sobre as teoriaS e práticaS da psicanálise, orientados em sua ética e política – dar ao outro o lugar de sujeito, recusar tomá-lo como objeto. Apresentamos nossa breve história e descrevemos a dinâmica e sistemática de nossos encontros. Na sequência registramos relatos de experiências de dois ligantes. Alcançamos compreender até aqui que talvez a parte mais interessante dessa união de pessoas diferentes em torno de um tema comum seja acompanhar a riqueza da (des)construção de como cada um responde para si: o que é psicanálise?

Palavras-chave:  grupos de estudos, liga acadêmica; psicanálise; psicologia.

(DE)CONSTRUCTIONS OF AN ACADEMIC LEAGUE OF PSYCHOANALYSIS: EXPERIENCE REPORT

Abstract: In this article we discuss our experience as psychology students and members of an academic psychoanalysis league regarding our activities, especially group studies. Since Freud, through the well-known Wednesday Meetings, we came to know about the importance of study groups for the history and construction of psychoanalytic knowledge. It is in the plural that we work in the meetings of our League, our premise is to create a space for exchange and critical reflection on the theorieS and practiceS of psychoanalysis, guided by its ethics and politics – giving others the place of subject, refusing to take them as object. We present our brief history and describe the dynamics and systematics of our meetings. Next, we record reports about experiences of two ligands. We have come to understand so far that perhaps the most interesting part of this union of different people around a common theme is following the richness of the (de)construction of how each person responds to themselves: what is psychoanalysis?

Keywords: study groups, academic league; psychoanalysis; psychology.

(DES)CONSTRUCCIONES DE UNA LIGA ACADÉMICA DE PSICOANÁLISIS: REPORTE DE EXPERIENCIA

Resumen: En este artículo discutimos nuestra experiencia como estudiantes de psicología y miembros de una liga académica de psicoanálisis en relación con nuestras actividades, especialmente los estudios grupales. Desde Freud, con las conocidas Reuniones de los Miércoles, conocemos la importancia de los grupos de estudio para la historia y la construcción del conocimiento psicoanalítico. Es en plural que trabajamos en las reuniones de nuestra Liga, nuestra premisa es crear un espacio de intercambio y reflexión crítica sobre las teoríaS y prácticaS del psicoanálisis, guiados por su ética y política – dando al otro el lugar de sujeto, negándose a tomarlo como objeto. Presentamos nuestra breve historia y describimos la dinámica y sistemática de nuestras reuniones. A continuación, registramos informes de experiencias de dos ligandos. Hemos llegado a comprender hasta ahora que quizás la parte más interesante de esta unión de diferentes personas en torno a un tema común es seguir la riqueza de la (de)construcción de cómo cada persona responde a sí misma: ¿qué es el psicoanálisis?

Palabras-clave: grupos de estudio, liga académica; psicoanálisis; psicología.

Corpos singulares formam corpo coletivo

Os grupos de estudo desempenham um papel importante na formação e aperfeiçoamento de estudantes de psicologia. Ao promoverem a troca ativa de ideias e experiências, os grupos criam um  ambiente de aprendizado colaborativo em que os participantes têm a oportunidade de se aprofundar em conceitos teóricos e temas relevantes na atualidade.

Orientada por esse modelo de trabalho coletivo nasce a Liga Acadêmica de Psicanálise – LAPSIC1 reunindo estudantes e uma docente de psicologia em torno de um desejo de saber mais… Com este artigo nós pretendemos apresentar o trabalho da LAPSIC em seu proposta, história e curso de experiências até aqui, na aposta de transformá-las em memórias e de inscrever novos horizontes para o futuro da psicologia, convidando quem nos lê à construção de novos modos de saber.

Nossa liga acadêmica tem como propósito promover o estudo, a pesquisa e a disseminação do conhecimento dentro e fora do ambiente acadêmico. É nossa premissa criar um espaço de troca e reflexão crítica sobre as teoriaS e práticaS da psicanálise, orientados em sua ética e política – a psicanálise dá ao outro o lugar de sujeito, recusa tomá-lo como objeto – possibilitando a formação de profissionais e pesquisadores interessados nas questões do inconsciente e, sobretudo, comprometidos e respeitosos com as complexidades da psiquê humana.

Conhecer a psicanálise envolve revisitar o caminho traçado por Freud, desde os seus primeiros estudos aos seus progressos. A conexão entre o autor e sua obra se evidencia ao percebermos que grande parte de sua produção está enraizada em suas experiências pessoais, retratadas em suas diversas obras. Apreender algo da psicanálise é, ao mesmo tempo, percorrer a jornada pessoal de Freud, e ser convidado a investigar nosso próprio inconsciente superando barreiras no encontro conosco e com o outro. 

Apreender algo da psicanálise é, também, dar-se conta de que a construção do saber não se faz sem revisitar a sua história, não com o intuito de reproduzi-la, mas com a proposta de conhecê-la e projetar novas memórias que mantenham viva sua essência: a pergunta que não pretende resposta finda, mas o movimento – sobretudo, crítico, portanto ético e político.

Sensíveis a essa reflexão e convidados a escrever sobre a importância das memórias e histórias da psicologia brasileira para a construção de uma epistemologia decolonial e afirmativa, portanto, que recusa as relações de poder e subordinação, que acolhe as diferenças singulares e que privilegia o fazer coletivo, o saber constituído e distribuído em comunidade – corpos singulares que fazem corpo coletivo –  apresentaremos neste artigo um apanhado histórico e teórico acerca dos estudos em grupo, na sequência, a proposta de nossa liga acadêmica e, por fim, relatos de experiências de nossos ligantes nessa jornada de formação singular e construção coletiva do conhecimento.

Os grupos de estudo freudianos e o nosso

Os grupos de estudo em psicanálise são valiosos para o desenvolvimento acadêmico e profissional para aqueles que por ela se interessam, pois proporcionam um espaço para aprofundar o conhecimento, compartilhar experiências e desenvolver habilidades preciosas no ofício psicanalítico como a fala e a escuta. Além disso, o trabalho em grupo ajuda a construir o senso de comunidade (profissional), convidando à reflexão crítica e ao fazer coletivo tão necessários para tratarmos das questões de nossa época, importante produtora de mazelas humanas e sofrimentos psíquicos. 

Desde Freud temos notícias do trabalho de estudo em grupo, no qual, cada integrante tendo contribuído um pouco para a construção da psicanálise:

Com quem dialogava o pai da psicanálise? Quem eram os primeiros psicanalistas? Trata-se de um grupo de homens que, a convite de Freud, se reuniam, inicialmente, em sua própria casa todas as quartas-feiras à noite. O grupo pioneiro não era formado somente por médicos, mas também por educadores e intelectuais da época, contando com um músico e também com escritores. Participavam das “noites psicológicas de quarta-feira” Otto Rank, responsável pela redação das atas, Alfred Adler, Max Graf, pai do pequeno Hans, entre outros (Zacharewicz & Formigoni, 2015, p. 309).

Durante as reuniões da Sociedade, um dos membros era responsável por apresentar algum material, podendo se tratar de um caso clínico, um artigo a caminho de uma publicação, livros, uma peça de teatro e até mesmo obras de arte. Os assuntos se tratavam de diferentes produções culturais e científicas, inclusive de autoria dos próprios membros com o fim de realizarem um estudo psicanalítico que se dava no formato de discussão coletiva após as apresentações. As atas dessas reuniões mostram a profundidade e a força dessas discussões, ressaltando o surgimento de conceitos essenciais para a psicanálise, assim como temas que continuam relevantes até hoje (Zacharewicz & Formigoni, 2015). 

De maneira semelhante nós trabalhamos nos encontros da LAPSIC. Compartilhamos experiências, exploramos estudos e discutimos novas propostas, compreendendo que a psicanálise se constrói em um ambiente coletivo. Nesse sentido, acreditamos ser importante que o conhecimento psicanalítico não seja ensinado no ambiente acadêmico apenas de forma tradicional, mas também transmitido enquanto um discurso ético e político, preservando seu caráter de reflexão, engajamento crítico e diálogo com a alteridade, assim como parece ter sido nos primórdios da psicanálise:

As reuniões de pessoas interessadas na psicanálise marcam o estilo da transmissão freudiana desde os primeiros tempos. Freud não somente escrevia ao grande público, como há tempos já sabemos, através de suas Obras Completas, mas também se punha a pensar e investigar junto com os colegas. Essa interlocução era importante para ele (Zacharewicz & Formigoni, 2015, p. 311).

Acreditamos que a psicanálise, enquanto campo de estudo e prática de tratamento, contribui para a compreensão das subjetividades e a promoção da saúde mental e estamos dedicados a cultivar esse conhecimento de maneira acessível, colaborativa e igualmente singular, pois como nos lembram Silva, et. al. (2020, p. 8) “o grupo de estudo psicanalítico não ocupa a posição de seguir um mestre, mas possibilita que cada um, de maneira singular, seja conduzido a ser mestre do seu inconsciente”.

Ainda Silva; et. al. (2020) nos afirmam que uma das vantagens de estudar psicanálise em grupo é a troca enriquecedora de ideias, onde todas as contribuições são valorizadas e a participação de cada membro é incentivada, diferentes perspectivas são consideradas importantes e não se busca alcançar um consenso ou uma única verdade, mas sim explorar a diversidade de pensamentos e saberes.

Concordamos com as considerações de Emílio (2010) e Da Silva (2020) citados por Cunha; et. al. (2021) de que a experiência em um grupo de estudos não apenas amplia o conhecimento dos participantes sobre psicanálise, mas também cria entendimentos únicos e significativos pela troca e escuta das experiências subjetivas de cada membro do grupo.

Enfim, por meio das atividades do grupo de estudos e de outras como palestras, seminários, projetos de pesquisa, eventos acadêmicos e científicos que compõem as práticas de uma liga acadêmica, na LAPSIC buscamos integrar o conhecimento teórico à prática, somos incentivados à análise e ao debate sobre temas fundamentais da psicanálise e dela na atualidade. Além disso, visa contribuir para nossa formação ética e profissional, provocando-nos a compreender a psicanálise no mundo contemporâneo para além de uma prática restrita aos consultórios particulares, mas onde quer que com ela atuemos, sustentá-la como um discurso que é ético e político.

Método ou, nosso modo de fazer

Os encontros da LAPSIC ocorrem quinzenalmente, preferencialmente nas dependências da faculdade à qual a Liga está vinculada, não obstante também podem acontecer em outros locais, como em um café, onde a experiência de discutir psicanálise em um ambiente diverso de uma sala de aula, propicia até mesmo relações interpessoais que não se pautam em exercício de poder, fugindo de um academicismo. 

No primeiro encontro do mês contamos com a presença da docente coordenadora responsável por orientar e direcionar as discussões, acolher e relançar nossas questões à construção, trabalho no qual ela se junta a nós. No encontro subsequente, apenas entre os ligantes, conduzimos as atividades de forma autônoma, mantendo o rigor acadêmico e promovendo o debate. Essa alternância permite uma dinâmica equilibrada entre a supervisão docente e a interação direta entre nós ligantes.

Adotamos o modelo de grupo de estudos e estabelecemos a proposta inicial de discutir a psicanálise a partir da leitura de textos originais de Freud, acompanhados por textos complementares, conteúdos acadêmicos adicionais e outras produções, como artísticas e culturais.

O trabalho consiste na realização de leitura prévia dos textos indicados pela coordenadora docente, seguidos de discussões aprofundadas acerca das ideias e conceitos suscitados por cada membro. Essas discussões ocorrem em um formato de roda de conversa, onde todos os participantes têm plena liberdade para compartilhar suas reflexões e contribuições de forma equitativa. Tal dinâmica promove um ambiente de diálogo colaborativo e crítico, incentivando o intercâmbio de perspectivas e o enriquecimento mútuo do conhecimento, em conformidade com os princípios acadêmicos e éticos que norteiam a Liga.

Durante as rodas de conversa, também podemos abordar temas relacionados às nossas vivências pessoais, que são compartilhadas com o intuito de ampliar o conhecimento e promover uma compreensão a mais dos conceitos e prática psicanalítica. Essas contribuições individuais enriquecem as discussões e permitem uma reflexão crítica e colaborativa.

Acrescentamos que para os propósitos deste artigo utilizamos o método de revisão bibliográfica qualitativa para a fundamentação teórica e as narrativas de experiência de dois ligantes, no formato de relato de experiência, com os quais damos um toque pessoal e vivacidade à nossa escrita.

Temos histórias para contar…

A ideia da Liga Acadêmica de Psicanálise foi proposta por um aluno de graduação em psicologia e nasceu em maio de 2024, reunindo outros estudantes curiosos e interessados na psicanálise. Definimos como tema eixo de trabalho para 2024 a pergunta: O que é a psicanálise?

Desde então, temos realizado nossos encontros quinzenais para os estudos e, recentemente, apresentamos nosso primeiro trabalho acadêmico na III Semana de Psicologia da FACNOPAR, em que contamos um pouco da nossa história, dinâmica de funcionamento e do que vimos produzindo até aqui com o trabalho intitulado “Construções do sujeito”, oportunidade em que montamos uma exposição de obras de arte inspirados no artista Susano Correia2 que com admirável sensibilidade retrata as dores e as belezas do ser. 

E, ainda nessa ocasião, compartilhamos recortes de nossas experiências pessoais fruto do trabalho e encontro na Liga. Estes últimos decidimos compartilhar a seguir com quem nos lê e serão narrados em primeira pessoa do singular, conservando a vivacidade e beleza da autoria em nome próprio dos relatos de experiência de dois autores deste artigo.

Uma voz em relato

O que é a Psicanálise? Uma provocação? Um discurso? Uma aposta?

Quando iniciei a graduação em psicologia, contei para uma amiga sobre o curso que faria e o comentário dela foi: “vai aprender sobre sexo com Freud”. Durante o primeiro ano da graduação um colega da classe, em um dado contexto de nossa conversa, brincou comigo me chamando de “recalcada”.

Essas conversas me pareceram com tons pejorativos, porém não sabia o que eles queriam dizer, portanto, me mantive em silêncio.

Em setembro de 2023, compareci ao lançamento do livro Não Pise no Meu Vazio3, de autoria da psicanalista Ana Suy. O seu discurso sobre os excessos e as faltas que assolam o ser humano, foi poeticamente lindo, porém, confesso não ter compreendido tanto quanto gostaria. Comecei a ler o livro. Parei. Comecei a ler o outro que também adquiri da mesma autora, A Gente Mira no Amor e Acerta na Solidão4, uma leitura linda e poética, porém complexa. Após ler alguns capítulos, também parei.

Em fevereiro de 2024, tive contato com a psicanálise como disciplina acadêmica. Na primeira aula foram apresentadas notícias sobre o que não seria a psicanálise, a partir das recomendações do psicanalista Contardo Calligaris em seu Cartas a um Jovem Terapeuta, anunciando que se “Se, por alguma razão, é importante para você se alimentar no reconhecimento e no agradecimento infinitos dos outros, então não escolha a profissão de psicoterapeuta” (Calligaris, 2021, p.13), entre tantas outras recomendações, o que me levou a refletir sobre a continuidade do curso: daria conta de recusar paparicos narcísicos? Decidi seguir em minha formação na aposta de sustentar um sim!

Na segunda aula da disciplina foi apresentado um pouco da história da psicanálise e uma citação de Freud me chamou a atenção: “O eu não é senhor em sua própria casa” (Freud, 1917, p. 186), tirando o homem do centro da razão, sendo esta, uma de suas feridas narcísicas. O inconsciente é outra cena que revela que o ser humano não possui domínio de si mesmo. Fiquei pensando onde foi que havia visto anteriormente essa mesma frase. Após alguns dias me lembrei que havia lido no livro A Gente Mira no Amor e Acerta na Solidão4, retomei a leitura do capítulo e, a partir dessa revisão, consegui compreender a intenção da autora em sua argumentação ou, talvez, não.

Uma questão muito enfatizada pela nossa professora foi relacionada à questão do sexual na psicanálise: não se trata de sexo, e sim de sexualidade, e que o próprio Freud esclarece:

Eu sei que minha ênfase no papel do sexual para surgimento das psiconeuroses se tornou conhecida em amplos círculos. Mas sei também que restrições e determinações mais precisas junto ao grande público pouco adiantam; a quantidade tem pouco espaço em seu cérebro e retém apenas o cerne mais rudimentar da afirmação, guardando um extremo que é fácil de lembrar. Isso deve ter acontecido a muitos médicos, que imaginam que na minha teoria eu afirme que as neuroses, em última análise, originam-se a partir da privação sexual (…). Mas partindo de tal pressuposto, poder-se-ia optar, então, por evitar o árduo desvio que passa pelo tratamento psíquico e almejar diretamente a cura, recomendando a atividade sexual como meio de cura! (Freud, 1905[1904], p. 76).

Freud adverte para o equívoco em confundir sexo com sexualidade e nossa professora foi bastante elucidativa e enfática ao afirmar: “não, não vamos aprender sobre sexo com Freud”. 

Refletindo sobre isso, percebi que o comentário daquela minha amiga estava, de fato, equivocado. Quanto ao comentário do meu colega de classe, ele estava certo quanto o termo recalcada, não no contexto a que ele se referiu, mas pelas estruturas clínicas. Quinet (2009, p. 19) aponta que “Um tipo de negação nega o elemento, mas a conserva, manifestando-se (…): no recalque (Verdrängung) do neurótico, nega conservando o elemento no inconsciente”.

Nas aulas subsequentes, começam a surgir termos incomuns ao nosso cotidiano, acompanhados de suas respectivas definições. Gradualmente, os conceitos vão se esclarecendo, ou talvez não, isso depende da perspectiva adotada. Agora, consegui retomar a leitura das obras anteriormente mencionadas, com um leve e crescente entendimento.

Venho percebendo aos poucos, que a psicanálise trata dos sintomas apresentados pelo sujeito a partir do seu discurso, significado do seu inconsciente, do subjetivo. Assim como outras abordagens da psicologia, a psicanálise não serve para ajudar os outros – ao contrário da ideia comumente apresentada pelos graduandos ao entrar para o curso –  mas serve para fazer com que o outro ressignifique sua história, permita-se se ajudar, se assim o desejar, através da escuta dos seus próprios relatos e a função do psicólogo é ouvir, ouvir atentamente, sem censura, favorecendo ao paciente, ao analisando, uma fala livre pois, no caso do setting psicanalítico, há lugar apenas para um sujeito e suas verdades, a verdade do sujeito.

A exposição de obras de arte elaborada pela nossa Liga Acadêmica de Psicanálise para a III Semana de Psicologia da faculdade me atravessou com diversas reflexões. A princípio, quando nossa professora nos apresentou durante a aula uma obra do artista Susano Correia, não vi significado, apenas uma obra, que particularmente não me atraía. Ao resolvermos expor algumas obras artísticas nesse evento, quando cada ligante poderia sugerir uma ou mais obras, visitei a rede social Instagram do artista novamente, e ao deparar-me com a obra “homem destruindo para se encontrar” me peguei refletindo sobre o meu ingresso na vida acadêmica aos 49 anos, e que a sociedade um pouco mais conservadora, acredita que mulheres com minha idade deveriam estar aos cuidados do lar e da família. Cá estou eu, atrás de uma carteira universitária, rodeada por jovens, reconstruindo uma história, história essa que já foi construída com muitas dores, sofrimentos e alegrias, entre outros, e ter que pegar um martelo, desconstruir-me e aos poucos reconstruir-me, repetindo esse processo diariamente. É uma aposta alta.

A pergunta que acompanha a obra “O que é mais espantoso do que encarar a si mesmo?” deve ser respondida todos os dias, mesmo sem encontrar resposta. A partir desse novo olhar, as obras ganharam espaço em meu consciente… sugeri as obras para nossa exposição, que no momento poderiam me traduzir, que alcançaram um significado inalcançável, porque segundo Guimarães Rosa: “viver é um rasgar-se e remendar-se”.

Uma escuta em relato

A psicanálise traz com importância o papel da fala, mas também da escuta, talvez mais desafiador do que compartilhar falas sobre a psicanálise em nossos encontros, seja escutá-la e percebê-la, com devida atenção.

Estudar a psicanálise tem se mostrado para mim mais desafiador do que debruçar-se sobre recortes teóricos, mas percebê-la ganhando formas em nosso convívio, na frustração de nossas expectativas, na sensação da perda e no desafio de oportunizar espaço ao ouvir, tanto o outro como também o eu.

Diante ainda da proposta do estudo em grupo, a liga surgiu no desejo de construção, mas tão brevemente em alguns encontros tornou-se claro que nossos anseios nos levaram mais próximos de uma desconstrução, que também não ignora contribuir com o primeiro desejo.

Os encontros se formam em uma costura de retalhos, um conjunto de peças diferentes que se mesclam, trazem sentido e tiram o “sentido”, desestabilizam certezas, esclarecem pontos e evocam outros com novas perguntas, seja no compartilhar de perspectivas ou no que se expressa carregado de autoanálise… e quando não?

Frustra-se aquele que busca na psicanálise um conjunto de regras, um guia de passos, pois não o irá encontrar, mesmo as recomendações de Freud não se fazem por ele em uma coletânea de protocolos a serem seguidos impreterivelmente, mas que se tenha a capacidade de entender que o conhecimento psicanalítico transcorre para além de textos. (Iannini, G. & Tavares, P. H., 2023).

Iniciamos os primeiros encontros da Liga, tanto os mediados por supervisão quantos os promovidos pelos membros ligantes, rodeados de materiais didáticos e eletrônicos. Na medida em que avançamos, nossas carteiras se tornam mais vazias, abandonando o papel e a caneta, despreocupados em organizar anotações, mas a fim de que pela escuta e pela contribuição de relatos e estudos da psicanálise, possamos ser atravessados pela proposta que nos une: a (des)construção de um saber.

Para deixar sem concluir

Se considerarmos que o desejo de analista é de que haja análise, então o que desejam os ligantes? A experiência de cada um é fundamental na construção desta psicanálise à muitas mãos. 

Entrar para uma liga acadêmica com tantos afazeres que se apresentam durante a graduação além da vida particular que continua junto à faculdade, inicialmente mostra-se como um desafio de responsabilidade. Responsabilidade sim, pois haverá mais trabalhos, mais encontros, mais leituras e mais debates. Por outro lado, entrar para uma Liga é uma aposta, onde temos o encontro das nossas expectativas com o outro, e o que surge daí? 

Talvez seja a parte mais interessante dessa união de pessoas diferentes em torno de um tema comum: verificar durante os encontros como os ligantes se expressam, como pensam a psicanálise e como respondem para si: o que é psicanálise?

Notas

[1] Liga Acadêmica de Psicanálise da FACNOPAR – Faculdade do Norte Novo de Apucarana/PR

[2] Susano Correia é expoente artista visual brasileiro; mais informações disponíveis em www.susanocorreia.com.br

[3] SUY, A. Não pise no meu vazio. 2ª Edição. São Paulo. Planeta do Brasil, 2023.

[4] SUY, A. A gente mira no amor e acerta na solidão. 11ª Edição. São Paulo. Planeta do Brasil, 2022.

[5]  O Instagram é um aplicativo gratuito de compartilhamento de imagens e vídeos.

[6]  Ver em https://www.instagram.com/p/CPT-g2JJKC2/?igsh=MWRicnFlOTMzZmNrag%3D%3D

[7] ROSA, G. Tutaméia: Terceiras Estórias. Rio de Janeiro: Nova Fronteira, 2009.

Referências

Calligaris, C. (2021). Cartas a um jovem terapeuta: reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos. Planeta Estratégia

Cunha, I. E. E. A., Ramos, F. O., Dias, M. P., Lemes, C. R., & Barja, P. R. (2021). Comunicação e Reflexão: A Psicanálise como tema de um grupo de estudos universitários. Revista Univap, 27(54). Recuperado de: http://revista.univap.br/index.php/revistaunivap/article/view/2596

Freud, S. (1917). Uma dificuldade no caminho da psicanálise. Obras Incompletas de Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2010.

Freud, S. (1905[1904]). Sobre psicoterapia. Fundamentos da clínica psicanalítica. Obras incompletas de Freud. Belo Horizonte: Autêntica, 2017.

Iannini, G., & TAVARES, P. H. (2019) Sobre fundamentos da clínica. Fundamentos da clínica psicanalítica. Obras Incompletas de Sigmund Freud. Belo Horizonte. Autêntica.

Quinet, A. (2009). As 4+1 condições da análise. Rio de Janeiro, Jorge Zahar.

Silva, D. C., Gonçalves, I. F., de Azambuja, N. R., & Caneda, C. R. G. (2020). Grupo de estudos em psicanálise: Um relato de experiência. Anais do (Inter) Faces. Recuperado de: https://ulbracds.com.br/index.php/interfaces/article/view/2987

Zacharewicz, F., & Formigoni, M. C. (2015). Os primeiros psicanalistas: Atas da Sociedade Psicanalítica de Viena 1906-1908. Jornal de Psicanálise, 48(89), 309-312. Recuperado de: https://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?pid=S0103-58352015000200024&script=sci_arttext

Como citar esse texto

ABNT — COSTA, J. S. et al. (Des)construções de uma Liga Acadêmica de Psicanálise: Relato de Experiência CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/desconstrucoes-de-uma-liga-academica-de-psicanalise-relato-de-experiencia/. Acesso em: __/__/___.

APA — COSTA, J. S. et al. (Des)construções de uma liga acadêmica de psicanálise: relato de experiência. CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/desconstrucoes-de-uma-liga-academica-de-psicanalise-relato-de-experiencia/