Revista CadernoS de PsicologiaS

Desdobramentos da clínica psicanalítica no atendimento on-line: um relato de experiência

Ana Maria Milaroski
Psicóloga (CRP-08/20947). E-mail: ammpsico@gmail.com
#Relatos_de_Experiência

Resumo: Este artigo objetiva demonstrar que o atendimento on-line pode ser tão efetivo quanto o atendimento presencial para a clínica psicanalítica. Para isso, utiliza conceitos básicos do funcionamento da clínica psicanalítica, observando seu modus operandi e o setting analítico, a fim de demonstrar algumas das mudanças causadas pelo afastamento social. Traz também relatos de experiência vivenciadas na clínica durante o período de pandemia, a fim de compreender e demonstrar as demandas de reinvenção da clínica psicanalítica durante esse período e os efeitos causados na forma de trabalho. Pretende ainda observar como foram acolhidas as diferentes angústias surgidas e alguns dos efeitos causados pela necessária reinvenção do setting analítico em atendimentos durante a pandemia. Espera-se então, com este artigo, proporcionar novas reflexões acerca do atendimento on-line, uma modalidade até agora pouco estudada ou mesmo não considerada por muitos analistas.

Palavras-chave: clínica psicanalítica; atendimento on-line; afastamento social.

Psychoanalytical clinic unfolding on online sessions: an experience report

Abstract: This article aims at demonstrating that online sessions can be as effective as presential ones on psychoanalytic clinic. For that, it uses basic concepts of psychoanalytic clinic functioning, in observance of its modus operandi and its setting, in order to demonstrate some changes caused by social distancing. It also brings stories of lived experiences on clinic during the pandemic period, as a way to comprehend and show the reinvention demands of psychoanalytical clinic during this time, as well as the effects caused by this way of work. Besides, it intends to observe how different types of new anxieties were received and which were the effects caused by the reinvention of the analytical setting during sessions on the pandemic period. It is expected, therefore, to provide new reflections on online sessions, a modality that so far has been less studied or not even considered by some psychoanalysts.

Keywords: psychoanalytic clinic; online sessions; social distancing.

Desdoblamientos de la clínica psicoanalítica en la atención online: relato de experiencia

Resumen: El objetivo de este artículo es demostrar que la atención online puede ser tan eficaz como la atención presencial para la clínica psicoanalítica. Para eso, utiliza conceptos básicos del funcionamiento de la clínica psicoanalítica, observando su modus operandi y el setting analítico, con la finalidad de demostrar algunos cambios provocados por el aislamiento social. También trae relatos de experiencias vividas en la clínica durante el período de pandemia para comprender y demostrar las demandas de reinventar la clínica psicoanalítica durante este período y los efectos que se produjeron en la forma de trabajo. También se pretende observar cómo se acogieron las distintas angustias que surgieron y algunos de los efectos provocados por la necesaria reinvención del setting analítico en la atención durante la pandemia. Se espera, entonces, con este artículo, aportar nuevas reflexiones sobre la atención online, una modalidad hasta ahora poco estudiada o incluso no considerada por muchos analistas.

Palabras clave: clínica psicoanalítica; atención online; aislamiento social.

Este artigo tem por objetivo refletir sobre a clínica psicanalítica e seus desdobramentos durante a pandemia de Covid-19 que atinge o Brasil e o mundo em 2020. Para isso, serão brevemente analisados os conceitos básicos do funcionamento da clínica psicanalítica, observando seu modus operandi e o setting analítico, a fim de compreender algumas das mudanças causadas pelo afastamento social adotado como medida de contenção da disseminação do coronavírus.

Além dos conceitos básicos da clínica, poderíamos pensar também sobre a que se propõe a clínica nesse momento. Acolher e perceber que esse sujeito que nos procura vem com uma dor e um sofrimento que vão para além do que se apresenta. O olhar, a escuta, a compressão e a futura transferência demandam que o analista esteja atento para ouvir esse dito do paciente, mesmo que algumas vezes ele nem saiba o que quer dizer essa dor – só sabe que sente uma dor insuportável. Colocar isso em palavras demanda exclusivamente da singularidade do sujeito, e pode apresentar-se como uma situação não tão simples. Quando se trata do sofrimento do sujeito, é sempre uma situação delicada, é sempre no individual, no um a um. A relação entre analista e analisando é construída com vários elementos para se ter sucesso. Por isso, além dos conceitos básicos, é importante para o tratamento compreender essa nova modalidade de atendimento, que nos traz muitos desafios.

Pretendo demonstrar, então, de que maneira essa nova modalidade de atendimento, cuja frequência foi intensificada pelo afastamento social, interferiu na continuidade de meus atendimentos, e também como se deu o início do acompanhamento de novos pacientes. A partir de leituras preliminares e dos relatos de experiência que trago aqui, este artigo pretende demonstrar que o atendimento on-line pode ser tão efetivo quanto o atendimento presencial. Além disso, a intenção é demonstrar também as facilidades para a realização de atendimentos que essa modalidade proporciona. 

Assim, considerando a necessidade de realizar atendimentos on-line para seguir com atendimentos já existentes ou mesmo iniciar novos processos de análise, surgem algumas questões: O que esse espaço virtual vem nos ensinar? Será que perdemos espaço ou ganhamos outra possibilidade de realizar a clínica psicanalítica? Como a tela que fragmenta o corpo, o olhar e a voz influenciam o processo de análise?

A fim de buscar respostas possíveis para essas perguntas, utilizo como base um breve histórico da clínica psicanalítica e os conceitos fundamentais dessa prática para analisar os relatos das experiências que tenho vivenciado em minha clínica durante o período de pandemia.

É importante considerar que a psicanálise se propõe a tratar, com muita responsabilidade, cada sujeito, considerando suas queixas e seus impasses, suas construções e desconstruções. Na clínica psicanalítica, o trabalho de interpretação depende de uma semiologia (Dunker, 2019) e, dentro desse contexto, conserva-se o que há de mais pertinente na metodologia da clínica psicanalítica – as queixas iniciais, as entrevistas preliminares, a entrada em análise e a ida para o divã.

Queixas iniciais e entrevistas preliminares em atendimentos on-line

Considerando os conceitos essenciais para o setting analítico e o momento de afastamento social imposto pela pandemia de Covid-19, parece importante repensar o modus operandi da clínica psicanalítica. Isso porque esse afastamento demandou a reinvenção dos atendimentos, agora sendo realizados on-line

Estamos vivendo momentos críticos na história da humanidade, um período de bastante insegurança e incerteza para todos. Também por isso, as queixas iniciais vêm em uma crescente nos consultórios, sofrendo alterações consideráveis, surgidas também por causa desse momento. E a expansão dos atendimentos on-line mostrou-se, para muitos pacientes, um meio essencial para acolher as angústias vivenciadas durante esse período.

Carregando consigo traços característicos de sua existência, a angústia é entendida por Freud como resultado de diferentes fatores – por exemplo, a inibição (Freud, 2014). É compreendida também como um sinal de alerta, como um elemento de defesa do eu diante da possibilidade de um perigo, “trata-se claramente de uma reação à iminência da perda, da separação de um objeto fortemente investido” (como citado em Jorge, 2017, p. 200). Inicialmente definido por Freud, e depois por Lacan, “o trauma é o exemplo princeps do fator desencadeador da angústia” (como citado em Jorge, 2017, p. 201). E esse trauma pode ter origem tanto na pulsão, ou seja, no mundo interno, quanto em fatores do mundo externo. Assim, tanto o risco de morte apresentado pela Covid-19 quanto o afastamento social e a consequente mudança de rotina e das formas de contato interpessoal e social podem ser entendidos como motivos dessa angústia definida por Freud.

A incerteza sobre o que realmente vai acontecer, as demandas aumentadas nos lares, a imposição de ocupar lugares que a correria do dia a dia de trabalho dificulta e até mesmo o desejo de um futuro economicamente melhor contrastando com a incerteza de sobrevivência também podem ser entendidos como causadores de angústia nesse contexto de pandemia. A realização de sonhos tornou-se bastante distante para muitas pessoas, suscitando angústias, muitas vezes ligadas à perda e à separação. Freud (2019a) aponta que um dos motivos para o adoecimento neurótico, por exemplo, é quando o objeto real do mundo exterior responsável por satisfazer à sua necessidade amorosa é subtraído desse indivíduo, sem que lhe seja atribuído um substituto.

Alguns desses fatores mencionados como causadores de angústia foram as queixas iniciais apresentadas pelos pacientes que comecei a atender durante a pandemia – inclusive a que trago no relato mais adiante. Para Freud (2019b, p. 135), todo o conteúdo inicial trazido pelo analisando pode ser entendido como queixas iniciais, “seja ele a história de vida, seja a história da doença ou lembranças da infância do paciente”. Por isso, o analisando vai se utilizar da associação livre e, considerando a sua narrativa, determinar um ponto inicial.

Depois de acolher a queixa inicial na primeira sessão, encaminhamos o paciente para as entrevistas preliminares, que permitem “ao analista situar-se do tipo de demanda do entrevistado-analisando em potencial” (Rocha, 2012, p. 20). Nessa etapa da clínica psicanalítica se faz possível analisar a demanda e auxiliar o entrevistado na transformação de “uma demanda de ajuda em uma demanda de análise” (Rocha, 2012, p. 24).

É comum que, nesse momento de entrevistas, o paciente chegue com a expectativa de uma suposta cura, convocando o saber do analista. É nesse sentido que vamos direcionando a demanda do entrevistado para uma demanda de análise. Seria como uma travessia, de um modo para outro. Mais especificamente, vamos permitir que o analisando se ouça e dê um novo sentido para seu próprio discurso. Segundo Nasio (2011, p. 63), “cada paciente é, em si, um impenetrável mistério que exige, em certos momentos cruciais do tratamento, uma total disponibilidade do terapeuta” para ouvir com cuidado cada detalhe por ele trazido.

Realizadas as entrevistas preliminares, a única maneira de entrar em análise, para Lacan (como citado em Quinet, 2009), é desvencilhar-se do sintoma. Isso significa que o simples desejo de se conhecer melhor, por exemplo, não é suficiente para uma entrada em análise, pois não é considerado por Lacan “como algo que tenha status de demanda que mereça resposta” (como citado por Quinet, 2009, p. 16). E para marcar o fim das entrevistas preliminares e a entrada em análise, Lacan aponta a indicação do divã como mecanismo essencial (Quinet, 2009). E Freud (2019b) menciona, ainda, que existe um certo cerimonial na condução do tratamento analítico, relacionado especialmente com essa ida ao divã.

De qualquer maneira, essa é uma questão que depende muito de cada sujeito, de como ele quer se haver com seus questionamentos. Pode acontecer, então, a não entrada em análise – e a clínica nos ensina também a lidar com essas contingências. No caso de um atendimento que se inicia já on-line, essa entrada em análise pode levar mais tempo para acontecer, ou mesmo não chegar a acontecer, o que não impede a continuidade do tratamento – talvez retarde ou prolongue o processo, mas não impede sua continuidade.

Assim, é fundamental que o analista compreenda e aplique esses conceitos que se constituem como base para o seting analítico, sem esquecer, porém, que continuará a ser “surpreendido pelas singularidades de cada analisando” (Rocha, 2012, p. 14). Isso porque, apenas a partir do processo de fala e escuta de si mesmo por que passa o analisando, os ditos do sujeito podem ser percebidos como constituintes do sintoma – aquilo que é possível tratar na psicanálise. De acordo com Soler (2018, p. 37), “somente o sujeito pode dizer o que não vai bem para ele, embora ele ignore a causa disso; naturalmente, ele talvez tente descobri-la”.

Do atendimento pelo telefone ao on-line e a reinvenção constante da clínica psicanalítica

Lidar com essa nova modalidade de atendimento pode se mostrar bastante desafiador, tanto para o analista como para o analisante. Bruce Fink, em 2007, publicou um capítulo inteiro destinado à análise por telefone. Sua intenção era apresentar pontos positivos de se realizar a análise por telefone, considerando que, compreendendo as possibilidades dessa prática, um maior número de psicanalistas ficará mais à vontade para realizá-la. É possível atualizar essa modalidade de atendimento para as sessões on-line com as quais os psicanalistas têm se deparado em meio ao afastamento social.

Para Fink (2017, p. 332), “praticamente todo analista é levado, em algum momento, a conversar com uma paciente por telefone, quer seja devido a uma hospitalização de emergência, um ataque de pânico, uma depressão profunda, ou alguma outra situação inesperada e incomum”. Apesar disso, muitos psicanalistas não consideravam outras formas de atendimento que não a presencial como possíveis.

Em minha experiência clínica, com minha forma de abordagem, também não cogitava essa possibilidade, especialmente pela necessidade do comprometimento do sujeito em ir até o consultório. Porém, diante do novo cenário e com as novas saídas encontradas, encontrei-me com a necessidade de me reinventar. Dessa forma, algo que antes me parecia tão distante se tornou possível e eficaz nos atendimentos. Compreender essa possibilidade no atual momento está sendo uma experiência bastante oportuna, permitindo enxergar que o atendimento on-line pode ser tão promissor quanto o presencial.

Heloisa Caldas (2020, 28 de abril), porém, defende que “é muito precário se valer do mínimo do corpo, olhar e da voz, que as telas e áudios transmitem, para fazer operar alguma transferência”. Isso porque o trabalho com a psicanálise envolve, também, convocar o analisante a se comprometer com seu horário e dia marcados – já que o sujeito é capaz de escolhas, como relembra Kehl (2015), e isso demanda dele uma posição ativa –, levando sua presença e seu corpo (muitas vezes falante) até o consultório do psicanalista. Segundo Caldas (2020, 28 de abril), “apostar apenas nos ditos implica em deixar de lado justamente o que mais importa: um dizer que nunca se transfere integralmente e menos ainda quando o corpo, seu maior suporte, não pode estar presente”.

Percebo, nos atendimentos que tenho realizado on-line, que a impossibilidade de enxergar todo o corpo do paciente limita minha percepção do que está acontecendo durante a sessão. Isso porque a tela, que fragmenta o analisando, não me permite enxergar movimentações de braços, mãos ou pernas além daquilo que o paciente decide mostrar. Nesse sentido, fica mais difícil perceber sinais de nervosismo e ansiedade durante a fala, por exemplo.

Ainda assim, apesar dessa dificuldade trazida pela fragmentação, percebo que uma das vantagens dessa modalidade on-line tem sido justamente a possibilidade de acessar o atendimento em qualquer lugar seguro para o analisando. Nesse sentido, mesmo que analista e analisando residam em estados ou países diferentes, é possível realizar ou seguir com o atendimento, ampliando a possibilidade de cuidar da saúde mental e emocional de cada sujeito que nos procura.

Além disso, uma percepção minha em relação aos atendimentos on-line que tenho realizado é a diminuição dos cancelamentos das consultas (em comparação ao atendimento presencial). A princípio, isso me faz pensar que o analisando tem se mostrado mais engajado com seu tratamento, reconhecendo mais sua responsabilidade e apresentando maior cuidado com sua própria demanda. Há que se considerar também, é claro, outros fatores para esse menor número de cancelamentos, tais como o tempo que já não é gasto com deslocamentos para chegar ao consultório e os horários antes incompatíveis devido aos inúmeros compromissos. Ainda assim, com os atendimentos on-line parece haver uma disponibilidade maior dos pacientes e, consequentemente, um comprometimento maior com seus horários e suas próprias demandas.

É possível observar, portanto, que esses fios tecnológicos vêm enlaçando cada sujeito de maneira ímpar, trazendo questionamentos como: Que tipo de laços será possível estabelecer? Como o que eu tenho já não dá mais, o que eu quero agora? E assim, na tentativa de recolher alguma coisa desse sintoma que se apresenta, é que se pode apostar no atendimento on-line.

O infamiliar e desconhecido nos atendimentos on-line

Outro ponto importante relacionado aos atendimentos é a necessidade de lidar com aquilo que é novo, tanto para o analista como para o analisando. É nesse contexto que vemos surgir o inquietante, ou seja, uma condição assustadora, que, em alguns momentos, contrapõe-se ao que é diferentemente familiar. Freud (2006) comenta, em seu ensaio denominado O inquietante, que esse significante está relacionado ao que nos desperta angústia e horror. Ele sinaliza, também, que esse termo nem sempre é usado no sentido determinado – o que geralmente é angustiante. Dessa forma, o inquietante pode ser entendido como algo audacioso, pois parece que, conforme a pessoa se orienta no ambiente, este pode parecer um tanto estranho, porém, ao mesmo tempo, familiar.

Freud (2019c, p. 33) defende que “o que é inovador torna-se facilmente assustador e infamiliar; nem tudo o que é novidade é assustador. Ao novo e ao não familiar se deve, de início, acrescentar algo para torná-lo infamiliar”. Assim, o uso de equipamentos digitais, por si só, não é entendido como infamiliar, já que, nos tempos em que vivemos, certamente já os utilizamos para realizar chamadas de voz ou de vídeo, conversar com pessoas ou mesmo participar de uma reunião on-line. No entanto, ao considerar o atendimento psicanalítico on-line uma prática possível, é acrescentado algo novo e, por isso, provocada uma experiência com o infamiliar. Para Freud (2019c, p. 33) “o infamiliar seria propriamente algo do qual sempre, por assim dizer, nada se sabe” e, por isso, é possível admitir que esse novo contexto de atendimento, ainda desconhecido para muitos, pode causar desconforto e impactar novas comoções.

Outro ponto importante a ser considerado sobre o atendimento psicanalítico on-line é o deparar-se consigo mesmo ao realizar a sessão – tanto para o analista como para o analisando. Isso porque, enquanto no contexto de atendimento presencial existe apenas o ver o outro, no atendimento on-line há também o olhar a si mesmo, já que os meios de encontros on-line sempre reproduzem ambas as imagens (a da pessoa com quem se fala e a sua própria).

Tem sido uma experiência de encontro com o infamiliar mais intensa do que a narrada por Freud, surpreendido ao olhar uma superfície que espelhava sua imagem. Nos dispositivos a experiência é um pouco diferente, a surpresa não é encontrar a imagem, já sabemos que ela estará lá. Mas é bem diferente de se olhar diante do espelho do banheiro. (Caldas, 2020, 28 de abril)

É preciso, assim, considerar o que essa prática quer nos apresentar de novo hoje. Como aponta Jorge (2017, p. 240), “na psicanálise a improvisação está sujeita a regras, e, se é possível improvisar, isso ocorre na medida em que existe uma trilha anterior subjacente passível de ser entrelaçada de várias maneiras. Na improvisação, trata-se de entrelaçar o conhecido com o desconhecido”. Assim, com a necessidade de afastamento social, foi preciso, mais do que nunca, improvisar na clínica psicanalítica, aproximando a forma de atendimento já conhecida – a presencial – dessa nova forma de atendimento – a on-line.

Considerado esse improviso, é necessário então observar como a psicanálise pode ser realizada de forma diferente, mas, ainda assim, privilegiando o que há de único em cada sujeito. Está claro que essa nova forma de atendimento vem atravessando os indivíduos de maneira nunca vista, convocando a uma reinvenção da prática psicanalítica. Nesse sentido, conforme menciona Jorge (2017, p. 233), “Lacan afirmou que cada analista deve reinventar a psicanálise”, o que significa que essa reinvenção já é parte da história da clínica psicanalítica. 

Assim, a pergunta realizada por Jorge (2017, p. 233) se faz ainda mais presente e relevante nesse contexto de pandemia: “O que a experiência da psicanálise apresenta hoje de verdadeiramente novo?”.

Relato de caso clínico

Paciente V., 35 anos, sexo feminino, atendimento iniciado em julho de 2020, 4 sessões realizadas até o momento.

O caso que escolhi para relatar neste artigo me pareceu relevante por dois motivos: i) comecei a acompanhar essa paciente já na modalidade on-line e ii) o que levou a paciente a buscar acompanhamento – sua queixa inicial – foi a morte da mãe devido a complicações decorrentes da Covid-19. Percebo que o maior cuidado da paciente foi a busca por um atendimento on-line para se preservar, justamente para evitar qualquer risco de contaminação pelo vírus. Certamente, essa possibilidade só existiu por estarmos com essa nova modalidadede atendimento, já que a presencial talvez causasse uma resistência, devido aos fatos ocorridos. Além disso, como apontamos anteriormente, esse é um caso em que o atendimento on-line se mostrou importante para a paciente poder lidar com a angústia surgida nesse período de pandemia.

V. relatou que está sentindo muita raiva do mundo, das pessoas próximas e do que aconteceu, e uma saudade imensurável da sua mãe. Comentou também que sempre foi companheira da sua mãe e que não estava preparada para ficar sem ela aos 35 anos. Por isso, o objetivo do tratamento deverá estar atrelado ao tempo da elaboração e ao afastamento de qualquer resistência que possa surgir ao longo do acompanhamento.

Considerando o ocorrido, pode-se entender que a paciente está passando pela elaboração do luto, um sofrimento da ordem do insuportável. É notável a falta que essa mãe faz na vida da paciente, já que a identificação dela com a mãe sempre foi satisfatória, nomeando-a como seu porto seguro. V. comentou que não se imaginava sem sua mãe aos 35 anos e que compartilhava com ela todos os seus planos, suas alegrias e suas tristezas. Segundo a paciente, o que vivencia agora é uma sensação de vazio e uma confusão com a morte, coisas que fazem seus dias serem de muito choro e tristeza, chegando à ideia de que ela não será capaz de suportar essa ausência.

Nesse momento, a importância da escuta atenta do analista quanto à fala da paciente, especialmente nessa modalidade on-line que fragmenta o acesso, é essencial para compreender de que maneira as palavras vão ressoar. Também é importante observar que maneiras a paciente vai encontrar para amenizar seu sofrimento, já que, nesse caso, o esquecer sofre uma limitação, pois a paciente não consegue parar de pensar que o que aconteceu foi injusto com ela e com sua família, que sua mãe não precisava ter morrido – e isso tudo, segundo ela, a consome. A paciente comenta também sobre a necessidade de ser a mais forte da casa, o que a faz chorar escondida, para que ninguém a veja, aumentando ainda mais seu sofrimento.

Toda essa situação incomoda muito, traz angústia e sofrimento para a paciente. Nesse sentido, é essencial considerar as demandas da paciente dando lugar para esse sofrimento, como se propõe a fazer a clínica psicanalítica. Além disso, a vivência com a clínica psicanalítica tem ensinado, ao longo de sua história, que se livrar de seus sintomas geralmente demanda bastante trabalho e pode levar um longo tempo – o tempo necessário de elaboração do paciente.

E o que tenho percebido, neste caso clínico, é a possibilidade de avançar, observando as queixas iniciais e realizando as entrevistas preliminares – já que tivemos, até esse momento, apenas 4 sessões. De qualquer maneira, percebo que a modalidade de atendimento on-line não apenas possibilitou a escuta dessa paciente, mas também parece ser a única possibilidade de atendimento para ela nesse momento.

Freud (2019b, p. 191) já apontava a necessidade de nós, psicanalistas, estarmos sempre dispostos “a admitir a incompletude do nosso conhecimento, a aprender coisas novas e mudar em nosso procedimento aquilo que pode ser substituído por algo melhor”. Assim, é sempre importante lembrar a necessidade de se repensar a clínica psicanalítica com frequência e de abrir-se para as possibilidades que se mostram nos caminhos.

Considerações finais

Este artigo procurou compreender e demonstrar as demandas de reinvenção da clínica psicanalítica durante a pandemia e os efeitos causados na minha forma de trabalho enquanto psicóloga. Isso porque entendo que o relato da minha experiência pessoal pode servir de base ou apoio para novas ideias e propostas para demais psicanalistas.

Por isso, procurei observar como foram acolhidas as diferentes angústias surgidas durante a pandemia, considerando o aumento de atendimentos on-line realizados por mim e por outros analistas. Também procurei observar alguns dos efeitos causados pela necessária reinvenção do setting analítico em meus atendimentos durante a pandemia, a fim de abrir possibilidades de novos caminhos a serem trilhados, mesmo quando já não houver demanda de afastamento social. 

Por fim, considerando o contexto científico de estudos sobre a psicanálise, este artigo buscou proporcionar novas reflexões acerca de uma modalidade de atendimento até agora pouco estudada e até mesmo rejeitada por muitos analistas. As considerações realizadas aqui podem servir de base para novos estudos a respeito de formas de atendimento analítico, mantendo, é claro, os conceitos fundamentais e constituintes da prática psicanalítica.

Referências

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Soler, C. (2018). A querela dos diagnósticos (C. A. A. Oliveira & E. T. Fingermann, trads.). São Paulo, SP: Blucher.

Como citar esse texto

APA – Milaroski, A. M. (2020). Desdobramentos da clínica psicanalítica no atendimento on-line: um relato de experiência. CadernoS de PsicologiaS, 1. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/desdobramentos-da-clinica-psicanalitica-no-atendimento-on-line-um-relato-de-experiencia.

ABNT – MILAROSKI, A. M. Desdobramentos da clínica psicanalítica no atendimento on-line: um relato de experiência. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/desdobramentos-da-clinica-psicanalitica-no-atendimento-on-line-um-relato-de-experiencia>. Acesso em: __/__/____ .