Revista CadernoS de PsicologiaS

(Des)enlaces na experiência da Psicologia com migrantes e refugiados na pandemia da Covid-19

Elaine Cristina Schmitt Ragnini
Departamento de Psicologia – Universidade Federal do Paraná

Psicóloga (CRP-08/08045). E-mails: elaineschmitt@hotmail.com; elaine@ufpr.br
Gustavo Pedroso da Silva
Universidade Federal do Paraná

Graduando em Psicologia. E-mail: g_pedroso@live.com
Lívia Beatriz Fromohls
Universidade Federal do Paraná

Graduanda em Psicologia. E-mail: l.b.fromohls@gmail.com
#Relatos_de_Experiência

Resumo: A pandemia da Covid-19 traz alguns desafios para a atuação da Psicologia no campo das migrações. A crise sanitária potencializa vulnerabilidades sociais e psíquicas já identificadas para os sujeitos em deslocamento, o que exige das instituições, serviços e profissionais que atendem migrantes e refugiados novos arranjos. No que se refere aos profissionais da Psicologia, estes são implicados por sua ética e sua técnica, mobilizando saberes para a construção de outras referências para o acolhimento e atendimento de forma remota ou restrita. A partir de um relato de experiência sobre o atendimento a migrantes e refugiados na pandemia, buscamos refletir, da perspectiva da Psicologia, sobre as novas modalidades de atendimento, suas implicações éticas e técnicas, e seu compromisso com os sujeitos deslocados. Visamos um trabalho que viabilize a esses sujeitos um lugar na cena social e política, ou seja, no laço social.

Palavras-chave: Psicologia; migrações; laço social.

(Un)bonding in Psychology experience with migrants and refugees in the Covid-19 pandemic

Abstract: The Covid-19 pandemic presents challenges for the acting of Psychology in the field of migration. A health crisis intensifies social and psychological vulnerabilities already identified in displaced individuals, thus requiring institutions, services and professionals that assist migrants and refugees, new arrangements for their care. Regarding the professionals of Psychology, ethical and technical concerns are implicated, mobilizing knowledge to build new references for accessing and assisting, remotely or restrictedly. Based on an experience report on the assistance of migrants and refugees during the pandemic, from a psychological point of view, we seek to reflect on the new modalities of assistance, their ethical and technical implications and their commitment to the displaced subjects. What we aim to is producing a work that allows these subjects a social and political space, thus, on the social bond.

 Keywords: Psychology; migrations; social bond.

(Dis)enlaces en la experiencia de Psicología con migrantes y refugiados en la pandemia de Covid-19

Resumen: La pandemia de Covid-19 trae algunos desafíos a la actuación de la Psicología en el campo de las migraciones. La crisis sanitaria potencia las vulnerabilidades sociales y psíquicas ya identificadas a los sujetos desplazados, lo que exige de las instituciones, servicios y profesionales nuevos modelos en los atendimientos de migrantes y refugiados. En relación a los profesionales de la Psicología, ellos son implicados desde su ética y técnica, movilizando saberes a la construcción de otras referencias a lo acogimiento e atendimiento de manera remota o restricta. A partir de un relato de experiencia acerca del atendimiento de migrantes y refugiados en la pandemia, desde la Psicología, el artículo pretende reflejar las nuevas modalidades de atendimiento, sus implicaciones éticas y técnicas, y su compromiso con los sujetos desplazados, con el objetivo de identificar un trabajo que viabilice estos sujetos en el escenario social y político, o sea, en el enlace social.

Palabras clave: Psicología; migración; lazo social.

O número de migrantes internacionais que possuem o Brasil como seu destino vem aumentando a cada ano, tendo destaque os fluxos oriundos do Sul Global e as migrações de longo termo (Cavalcanti, Oliveira, Macêdo & Pereda, 2019). A chegada de novos contingentes populacionais ao país, em sua maioria compostos por haitianos e venezuelanos, apresenta novos desafios para a configuração político-institucional brasileira. Ademais, a diversidade sociocultural dessas comunidades coloca novos impasses metodológicos e enseja novas reflexões teórico-práticas a diversas profissões e áreas do conhecimento, entre elas a Psicologia. No que concerne à mobilização das demandas produzidas pelas comunidades deslocadas, torna-se necessária a produção de ações coletivamente coordenadas às suas reivindicações de acolhimento, garantia e proteção de direitos. Organizações públicas e da sociedade civil são, desse modo, convocadas ao trabalho.

Localmente, as chamadas redes de acolhimento e proteção são tecidas pela territorialidade predisposta dos serviços públicos e por meio da criação de novas organizações e coletivos que oferecem hospitalidade à comunidade migrante. A construção do trabalho em rede se revela uma importante ferramenta na manutenção de condições dignas de existência, integração sociopolítica e combate à precarização da vida das comunidades migrantes. São características próprias dos deslocamentos humanos, em especial os forçados, a destituição de laços identificatórios originais, como relações de filiação, relacionamentos amorosos, atividades profissionais e educacionais (Martins-Borges, 2013). No país de chegada, a rede adquire uma função de reinserção social, combatendo a violação de direitos e permitindo a elaboração de novos laços. Sua especificidade em relação a essas comunidades se dá por meio do reconhecimento das múltiplas intersecções — linguísticas, culturais, étnicas e raciais — nas quais estão inseridos os sujeitos desses encontros institucionais e intersubjetivos.

No caso da cidade de Curitiba e do Estado do Paraná, são poucas as instituições que voltam suas atividades à população migrante. Em escala local, ações de acolhimento e integração são realizadas por instituições de ensino superior (IES), organizações da sociedade civil, centros e conselhos públicos estaduais.

Com relação ao trabalho em rede no campo da Psicologia, o projeto de pesquisa e extensão MOVE – Movimentos Migratórios e Psicologia, vinculado ao Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná (UFPR), se estabelece como dispositivo local de referência ao atendimento psicossocial e psicológico à população de migrantes e refugiados, oferecendo seus serviços no centro da cidade de Curitiba-PR e articulando-se com as instituições e os agentes que constituem a rede local de acolhimento. O projeto visa possibilitar ao migrante, por meio da escuta a partir de uma ética analisante, a elaboração de seu lugar na cena social, “numa prática que remete tanto ao sujeito quanto às instituições e aos discursos sociais que os acolhem e os interpelam” (Friedrich et al., 2017).

Entretanto, frente à emergência da pandemia de Covid-19, decretada pela Organização Mundial da Saúde em março de 2020, as atividades presenciais do projeto e de outras instituições que compõem a rede foram suspensas por tempo indeterminado. Para agravar a situação, as fronteiras foram fechadas, restringindo-se a circulação interna e internacional (Friedrich et al., 2020), o que tende a aumentar a vulnerabilidade e desigualdade entre os migrantes. Assim, levando em consideração essa realidade, já nas primeiras semanas de orientação para o isolamento físico imposto pela pandemia foi necessário construir formas alternativas e remotas para organizar o serviço de atenção e acolhimento aos indivíduos e famílias que acessam o projeto. No entanto, a crise político-sanitária dificultou sobremaneira, se não impossibilitou, alguns encaminhamentos outrora consolidados. A ausência de protocolos instituídos e programas coordenados localmente, para o acolhimento de migrantes e refugiados, durante a pandemia radicalizou dificuldades já conhecidas de inserção sociopolítica dessas comunidades. As dificuldades são experienciadas como desamparo e sofrimento psíquico, e a incidência subjetiva dessas formas de organização sociais e políticas produz interesse clínico. Frente a essas constatações iniciais, as(os) integrantes do projeto veem como necessária a reconstrução da rede a partir dos casos a que tiveram acesso remoto e a invenção de alternativas para trabalhar à distância com a população migrante.

Assim, este artigo visa fazer um relato da experiência da organização do serviço de atendimento psicológico do projeto Move no contexto da pandemia, delimitando alguns questionamentos para a atuação profissional da Psicologia no campo das migrações e do refúgio em contexto de crise sanitária. Como referência metodológica para a construção do trabalho aqui proposto, dispomos daquilo que Flick (2009) delimita como informantes privilegiados, ou seja, sujeitos que, por sua experiência, fazem uma aproximação exploratória com a realidade, a partir de sua compreensão e intervenção sobre ela. Os dados utilizados para o entendimento da vivência concreta e psíquica de migrantes e refugiados na pandemia foram coletados em um projeto de extensão universitária, sendo relativos às ações de acolhimento, atendimento e acompanhamento de casos de migrantes que vivem em Curitiba e região. Esses dados foram registrados em planilhas e documentos de dados e categorizados em função da demanda (atendimento psicossocial, atendimento clínico, tutoria psicoeducacional). Para a análise, utilizamos a Análise de Conteúdo (Bardin, 1979). Assim, esta pesquisa se propõe uma aproximação do campo, com o objetivo de formular algumas elaborações iniciais sobre a condição subjetiva do migrante na pandemia, para futuramente desenvolver outras metodologias para a produção do conhecimento científico sobre a temática. Nesses termos, este relato da experiência abre a possibilidade de trazer visibilidade à situação de migrantes e refugiados na pandemia, contribuindo para que o fazer Psi possa ter lugar privilegiado nos enfrentamentos que a crise sanitária nos coloca, demonstrando seu potencial de prática transformadora da realidade e comprometida com os sujeitos e o direito à vida humana.

Cenário geopolítico e social das migrações internacionais

O Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (ACNUR) afirma que, somente na última década, ocorreram cerca de 100 milhões de deslocamentos forçados em todo o mundo. Esse fenômeno está relacionado, principalmente, a grandes crises de cunho político, econômico, bélico, ecológico ou climático. Desde 2010, esse número apresenta gradual crescimento (ACNUR, 2020). Atualmente, em todo o globo há cerca de 79,5 milhões de pessoas em situação de migrantes involuntários, como resultado de conflitos, violação de direitos humanos e perseguições (ACNUR, 2020), o que representa 1% da população mundial. Os principais países afetados pela evasão involuntária de sua população são a República Árabe Síria, a Venezuela e o Afeganistão (ACNUR, 2020). O processo de migração – desde as adversidades no deslocamento até o momento de chegada e permanência no país de acolhida – expõe indivíduos migrantes a situações de fragilidade sociopolítica (ACNUR, 2019) e psíquica (Martins-Borges, 2013).

O Brasil, de 2011 a 2018, foi destino de aproximadamente 775 mil imigrantes, em sua maioria haitianos e venezuelanos do sexo masculino, com escolaridade média ou superior. Apesar de a população haitiana ter representado, até 2018, o maior número de imigrantes em território brasileiro, a presença da comunidade venezuelana se destaca como majoritária no mesmo ano, crescendo desde então (Cavalcanti, et al., 2019). O Sudeste e Sul aparecem como os destinos mais procurados entre 2010 e 2018. No entanto, a região Norte do país, especificamente os estados de Roraima e do Amazonas, se depara, nos últimos anos, com grande aumento de indivíduos e famílias venezuelanas em busca de refúgio no Brasil (Cavalcanti et al., 2019). 

Com a intensificação dos fluxos migratórios vindos de países africanos, afro-caribenhos e latino-americanos vizinhos, tendo como destino o território brasileiro, testemunhamos no país a produção de discursos de ódio pouco discretos, cujo alvo são os corpos de “estrangeiros” recém-chegados (Milesi, Coury & Rovery, 2018; Dutra & Silva, 2016). Tais discursos não escolhem seus destinatários ao acaso, mas se constituem por meio de marcadores sociais historicamente presentes na construção simbólica do país. Os critérios para a marginalização e vulnerabilidade social se revelam os mesmos desde o início da história colonial do Brasil: somos contemporâneos de nossa escravidão, afirma Tales Ab’Saber (2018). Isso posto, basta dizer que temos pouca ou nenhuma resistência à recepção de pessoas vindas dos países do Norte Global (Seyferth, 2008).

A omissão institucionalizada de certas comunidades deslocadas promove e mantém condições extremas de pauperização e vulnerabilidade psicossocial. Mesmo com alto grau de escolaridade, a maioria de refugiados e suas famílias recebem menos de três salários mínimos mensalmente no Brasil (ACNUR, 2019). Por sua vez, mais da metade das(os) venezuelanas(os) que habitam as áreas brasileiras fronteiriças à Venezuela relatam receber menos de um salário mínimo por mês (Simões et al., 2017). Apesar da grande vulnerabilidade econômica dessas famílias, sua integração às políticas e aos serviços públicos também é baixa: 33% de refugiados, chegando a 50% dos migrantes venezuelanos, não acessam nenhum serviço público (ACNUR, 2019; Cavalcanti et al., 2019).

Ainda que se trate de um fenômeno mundial, balizado por dimensões geopolíticas, jurídicas e sociais, há também na migração uma dimensão psíquica, ou subjetiva. Se os processos identificatórios se orientam por meio de sistemas simbólicos, estruturantes à vida psíquica do sujeito e comumente sofrem rupturas e reconstruções, é possível supor que eles se intensifiquem nos processos migratórios. Isso porque, ao deixar seu país de origem, o migrante experiencia a perda de seus referenciais simbólicos e identificatórios (Martins-Borges, 2013; Rosa, Berta, Carignato & Alencar, 2009). A chegada à sociedade de acolhida, por sua vez, demanda novas formas de se posicionar frente a um novo sistema de representações (Gomes, 2017). Por fim, além de enfrentar as adversidades que o levaram a migrar, o sujeito deslocado tem de se haver com os efeitos subjetivos da migração, muitas vezes agravados pela condição de “estrangeiro” a ele atribuída, que o coloca à margem no sistema de representações simbólico-culturais estabelecido.

Esse cenário nada favorável indica a urgência de fazer existir uma rede de acolhimento humanizada, possibilitada a oferecer recursos materiais e simbólicos ao migrante, garantindo sua participação na negociação dos termos que constituem o laço social nacional, a partir daquilo que faz sentido para a sua história de vida singular. Apostamos, portanto, na viabilidade da permanência digna do sujeito migrante no país de acolhida e assumimos um compromisso coletivo com a produção de modalidades de enlaçamento social não excludentes e potencializadoras de vida.

Relato de experiência: a Psicologia frente aos fenômenos migratórios na pandemia

Diante da necessidade de uma Psicologia implicada com a transformação da realidade social, mas também comprometida com os sujeitos e o direito à vida humana, é que se constroem as referências de atuação com migrantes e refugiados no contexto da pandemia da Covid-19. Dessa forma, concebemos a atuação de psicólogas e psicólogos nesse campo como uma práxis e compromisso ético que considere “os efeitos do deslocamento geográfico para o sujeito que migra, sua família, comunidade de filiação, origem, trânsito e recepção” (Machado, Barros & Martins-Borges, 2019, p. 82).

Desde 2014, o projeto MOVE – Movimentos Migratórios e Psicologia presta acolhimento psicossocial, atendimento clínico e tutoria acadêmica a migrantes e refugiados que buscam os serviços de hospitalidade do programa de extensão Política Migratória e Universidade Brasileira (PMUB) e da Cátedra Sérgio Vieira de Mello/ACNUR da Universidade Federal do Paraná (UFPR). Ainda, cabe destacar as ações: Pequenos do Mundo, projeto que trabalha com crianças migrantes e refugiadas na perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural, promovendo a humanização dessas crianças; e AMMAR (Aliança Mulheres Migrantes, Refugiadas e Apátridas), que atende mulheres vítimas de violência. Frente à emergência da pandemia da Covid-19, em março de 2020 são suspensas as atividades presenciais realizadas na instituição e nas diversas organizações e dispositivos que compõem a rede de acolhimento e atenção a essas comunidades vulneráveis. Em abril, o projeto MOVE opta pelo retorno de suas atividades, o que se dá por modalidades remotas de atuação.

A adaptação da rede interinstitucional de atenção e a promoção de mecanismos de suporte comunitário mostram-se estratégias fundamentais na construção de ações adequadas e efetivas para as implicações subjetivas e materiais da crise político-sanitária (Melo et al., 2020). Contudo, como será apresentado, essas intervenções não se fazem sem impasses.

O (re)pensar e (re)fazer de nossos serviços

No que concerne à organização de nossas atividades durante este período, foi necessário o restabelecimento de diversas frentes de atuação do programa e dos projetos a ele vinculados, articulando-se novas parcerias institucionais às conhecidas (e às novas) demandas e fragilidades sociopolíticas das comunidades assistidas.

Dessa forma, são definidos eixos de atuação relativos: (a) ao acolhimento e encaminhamento de demandas de atendimento psicossocial, realizados por vias remotas de comunicação; (b) ao atendimento clínico psicológico por via remota; (c) ao fomento à permanência dos estudantes migrantes na UFPR, prestando apoio na atual situação de emergência, através do programa de tutoria acadêmica; (d) à organização de ações de acolhimento, atendimento e enfrentamento à condição de violência contra a mulher migrante, refugiada e apátrida, através do AMMAR; (e) à manutenção, por via remota, do vínculo estabelecido com as famílias e crianças acompanhadas pelo projeto Pequenos do Mundo.

Além disso, organizamos frentes transversais de trabalho, relacionadas à produção acadêmica, como capítulos de livros (Friedrich et al., 2020) e materiais informativos (MPT-PR, 2020) que concernem às áreas supracitadas. Assim, objetivamos promover ações de informação e sensibilização voltadas: (1) ao público em geral acerca das problemáticas dos deslocamentos humanos e (2) às comunidades de migrantes e refugiados, informando-os sobre temáticas como os cuidados de si em contexto de pandemia e as formas de acesso aos serviços ofertados. Por fim, foram produzidos materiais, como cartilhas e fôlderes, para profissionais que realizam o atendimento de migrantes e refugiados nos dispositivos de saúde, ressaltando aspectos como o atendimento humanizado, a atenção à saúde mental e as perspectivas multiculturais frente aos processos de enlutamento. Essas produções foram divulgadas pelas redes sociais dos projetos e das instituições parceiras com o objetivo de dar visibilidade às condições das migrações na pandemia.

Em vista da vulnerabilidade social da população atendida, demandas relacionadas a dificuldades socioeconômicas mostram-se mais presentes durante este período. Dentro dessa categoria estão dificuldades na integração às políticas econômicas emergenciais e na solicitação de auxílios universitários (queixa que concerne à comunidade interna de migrantes da UFPR). Reafirmamos, portanto, a baixa inserção sociojurídica e laboral dessas populações (ACNUR, 2020; Simões, Silva & Oliveira, 2017).

Não obstante, nossa experiência revela um aumento considerável na busca dos serviços de acolhimento e atendimento psicológico. Testemunhamos, através de relatos durante o acolhimento psicossocial, a incidência da pandemia como um possível desorganizador subjetivo, mobilizando processos de sofrimento e adoecimento psíquico. A incidência do vírus produziu mudanças radicais em nossas formas de viver em comunidade, constatando-se a perda de eficácia compensativa das formas de relação que constituíam nossa vida pré-pandêmica (Žižek, 2020), isto é, um saber que não se limita à comunidade de migrantes e refugiados, sendo seus efeitos compartilhados pela população em geral.

Entretanto, as novas dificuldades se sobrepõem às já conhecidas vulnerabilidades dessas comunidades, entre elas:

(I) O cenário prévio de instabilidade e precariedade da rede de proteção. Como revelado pelo mapeamento de políticas públicas para refugiadas(os) no Brasil, elaborado por França, Ramos e Montagner (2019), o contexto anterior à pandemia era caracterizado pela inexistência de políticas organizadas e padronizadas em nível nacional e pela ineficiência dos serviços públicos (especialmente de saúde), vinculada ao despreparo de seus profissionais, na recepção e acolhimento dessa população.

(II) O aumento de levantes xenofóbicos e racistas como forma de defesa neurótica à ameaça viral, que Žižek (2020) refere como um vírus ideológico, afirmando que o pandêmico não somente propaga o adoecimento físico, mas intensifica processos de racismo, xenofobia e violência, permitindo refratar no outro aquilo que diz respeito a uma ameaça invisível e, nesse mesmo sentido, radical e onipotente. Os novos aumentos de violência preocupam as classes profissionais: a intensificação da discriminação pode levar indivíduos marginalizados a não procurarem os serviços de saúde (Núcleo de Psicologia e Migração CRP PR, 2020). Além disso, a inserção do migrante nas políticas públicas (como auxílios econômicos emergenciais) é intensamente repudiada por alguns grupos sociais. Não se pode deixar cair no esquecimento o assassinato de João Manuel, imigrante angolano esfaqueado em São Paulo após uma discussão sobre o pagamento do auxílio emergencial federal para imigrantes (Figueiredo, 2020).

(III) As vulnerabilidades psicossociais. Apesar de garantido o acesso para imigrantes (documentados ou indocumentados) aos serviços públicos de saúde, educação e assistência social, por meio da Lei de Migração (Lei n. 13.445/2017), reconhecemos os impeditivos simbólicos e materiais à sua plena realização, produzidos, por sua vez, pela intensificação de processos de exclusão e violência institucional na constituição da rede de atenção e acolhimento à população migrante. Testemunhamos seus efeitos na forma do desamparo subjetivo e da vulnerabilidade psicossocial, através das queixas e demandas recebidas pelo projeto e seus agentes.

Nessa etapa de reorganização de nossos serviços, constatamos, portanto, o desenlace do trabalho em rede com a comunidade de migrantes e refugiados. A ruptura da rede de acolhimento e proteção se produz a partir do atravessamento do contexto pandêmico e suas contingências em uma estrutura já precária, marcada pela ausência de protocolos organizados e instituídos em nível regional e nacional. Novas barreiras se erguem para a inserção desses indivíduos, famílias e comunidades nos dispositivos públicos.

Se outrora a aposta em um trabalho em rede configurava a potencialidade de enlaçamentos sociais não excludentes, abrindo aos sujeitos em deslocamento novas possibilidades de viver a cena social, sua destituição — em tempos de pandemia — pode lançá-los à imobilidade psíquica e institucional, privando-os de um lugar no ideal social e da possibilidade de um discurso de pertinência (Rosa, 2002). Essa consideração, por sua vez, justifica a relevância da construção do trabalho em rede como possibilidade de atuação e objeto de pesquisa no campo da Psicologia.

Portanto, acreditamos no retorno das atividades do projeto, de forma remota, como forma de (re)enlace entre a comunidade assistida e a rede de atenção. A utilização das redes sociais, como Facebook, Instagram e Whatsapp, se revela ferramenta crucial na realização de contatos institucionais, processos de acolhimento e divulgação de materiais informativos. Aqui reside, pois, uma das potencialidades de nossa nova forma de trabalho, sustentada na aposta da democratização de informações e disposição de serviços como resposta efetiva aos efeitos de exclusão, marginalização e imobilidade que constatamos. Este trabalho, como anteriormente mencionado, visa tanto à comunidade de migrantes (por meio da disponibilização de materiais informativos traduzidos para diferentes línguas) quanto aos profissionais da saúde, como a saúde mental, a fim de sensibilizá-los sobre a temática das migrações frente à pandemia da Covid-19.

Ainda, a manutenção das atividades por via remota assegurou a continuidade de ações e vinculações instituídas, como acompanhamento acadêmico e tutoria, atendimento clínico realizado por profissionais psicólogas(os) parceiras(os) e combate à violação de direitos, em colaboração com outros projetos de extensão e organizações públicas, como o Ministério Público do Trabalho do Paraná.

Por fim, nossas ações objetivaram também o avanço no conhecimento científico e profissional no que concerne à temática. Através do desenvolvimento de pesquisa estão sendo produzidos levantamentos, em parceria com outras instituições, sobre os efeitos da pandemia nas condições de vida dos indivíduos, famílias e comunidades deslocadas.

Considerações finais

Atender populações vulneráveis exige o deslocamento de lugares e saberes já consolidados no campo da Psicologia, o que se potencializa no atendimento de migrantes e refugiados. As migrações internacionais recentes têm requerido da Psicologia a construção de novas referências para a atuação profissional, e isso não ocorre sem a produção de novos conhecimentos sobre essas populações e sujeitos. As barreiras linguísticas, culturais, econômicas e sociais somam-se às barreiras psíquicas, promovendo uma série de dificuldades para os migrantes se inserirem no laço social e viabilizarem sua vida na nova terra. Nesse sentido, as ações da Psicologia se fazem a partir o acolhimento a esse migrante, visando à escuta de sua história, de sua trajetória, ao resgate das memórias e lembranças e à construção de um saber sobre si e seu lugar na cena social brasileira. Este trabalho realizamos desde 2014, mas precisou ser reinventado no contexto da pandemia da Covid-19.

O agravamento das vulnerabilidades de migrantes e refugiados demandou que os atendimentos permanecessem, embora de forma remota, e que a rede de acolhimento e atendimento na cidade fosse restabelecida, ainda que no caso a caso e sem protocolos e procedimentos. Esses novos enlaces possibilitam ao migrante: (a) falar de si, de suas angústias e sofrimentos; (b) manter o acesso à rede pública de proteção, saúde e cuidados; (c) ter lugar na cena social e política, mesmo em tempos de isolamento físico.

No que se refere à Psicologia, podemos indicar que a experiência na pandemia implica: (a) a construção de alternativas remotas para o atendimento, com uso das tecnologias informacionais/computacionais; (b) o uso de novas estratégias de comunicação (produção de materiais, uso de redes sociais); (c) um trabalho com a rede transferencial de apoio a migrantes (Seincman, 2019) e com as demais redes de saúde e proteção para a divulgação dos serviços ofertados e o acompanhamento à distância dos casos; (d) a atuação ética compromissada com esses sujeitos, sustentando um trabalho em rede, ainda que de forma remota.

A crise sanitária traz novas configurações ao tecido social, mobilizando também o campo psíquico. O aumento das vulnerabilidades de migrantes e refugiados na pandemia tem efeitos na vida psíquica, podendo gerar sofrimento. Nesse sentido, a Psicologia é convocada a se manter em trabalho! A escuta sensível e qualificada dos sujeitos migrantes é um operador técnico essencial, que deve se somar à produção de um conhecimento sobre o que vamos recolhendo da experiência com migrantes na pandemia.

Para concluir, afirmamos a importância do fazer da Psicologia com sujeitos migrantes em tempos de pandemia, uma vez que o isolamento e os espaços de confinamento são potenciais promotores de sofrimento, adoecimento e violação de direitos. Isso implica a responsabilidade de cada um(a) de nós, mas igualmente do nosso coletivo de profissionais, pelo humano. Cabe destacar que nesse compromisso e pacto coletivo para a manutenção da vida, a universidade pública brasileira tem lugar privilegiado, pois não só tem a potência de garantir os serviços prestados à comunidade em funcionamento, como também se mantém atenta à produção de conhecimento psicológico científico e à formação de futuras(os) psicóloga(os) para a atuação no campo das migrações e do refúgio. Ainda, ressaltamos o trabalho realizado no Conselho Regional de Psicologia do Paraná, pelo seu Núcleo de Psicologia e Migrações (NUPSIM), ligado à Comissão de Direitos Humanos (CDH) desse Conselho, que tem como missão manter acesa a discussão sobre as condições de vida psíquica dos migrantes e orientar os profissionais da Psicologia com relação à atuação frente a essa população. Assim, nossa aposta é num trabalho em rede, que encontra na escuta atenta a possibilidade de transformação da realidade sociopolítica, para que os sujeitos humanos em deslocamento possam habitar estas terras brasileiras estrangeiras. 

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Como citar esse texto

APA – Ragnin, E. C. S., Silva, G. P. da, & Fromohls, L. B. (2020).(Des)enlaces na experiência da Psicologia com migrantes e refugiados na pandemia da Covid-19. CadernoS de PsicologiaS, 1. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/desenlaces-na-experiencia-da-psicologia-com-migrantes-e-refugiados-na-pandemia-da-covid-19.

ABNT – RAGNIN, E. C. S.; SILVA, G. P. DA; FROMOHLS, L. B. (Des)enlaces na experiência da Psicologia com migrantes e refugiados na pandemia da Covid-19. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/desenlaces-na-experiencia-da-psicologia-com-migrantes-e-refugiados-na-pandemia-da-covid-19>. Acesso em: __/__/____.