#Estilhaços
Enquanto trabalhava em um CAPSi, sempre buscava virtualmente por artigos, cursos e vídeos relacionados ao diagnóstico de TEA. Saí do equipamento no começo de 2020 e meu novo trabalho não se relacionava tão diretamente com essas questões. Para a minha surpresa, meses depois da minha saída do CAPSI (e de eu ter deixado de procurar por isso no Google) eu ainda era direcionado para cursos, vídeos e propagandas associados a esse diagnóstico.
Fiquei bem surpreso e essa surpresa se mobilizou em mim enquanto uma grande curiosidade. Comecei a ver os vídeos relacionados que eram sugeridos para mim no Youtube e dois deles me chamaram muito a atenção: “Sinais de Autismo em Adultos e Adolescentes” e “Sinais de Autismo em crianças de até 2 anos”. Eram vídeos com milhões de visualizações, de autoria de um casal de uma fonoaudióloga e um psicólogo, pais de uma criança diagnosticada com TEA.
O que mais me instigou, para além da lógica de listar sinais de forma vaga de um quadro diagnóstico tão complexo, foram os comentários das pessoas que, assim como eu, também acessaram o vídeo: muita gente se autodiagnosticando e diagnosticando pessoas próximas, tudo isso a partir de um vídeo de menos de 20 minutos. Vendo tanta gente capturada por essas discussões, comecei a pensar no meu caminho até esse vídeo, caminho arquitetado pelo algoritmo. Assim como elas, sensibilizadas pela questão do diagnóstico em relação a si mesmas e a pessoas conhecidas, eu também estava capturado pelo algoritmo, mas de uma outra forma: me fascinou pensar em como esses direcionamentos se construíam porque, mesmo sabendo que o algoritmo nos conduz cotidianamente a compras online, por exemplo, me foi um choque pensar que isso também podia estar acontecendo em relação a questões de saúde mental!
Ingressei no Mestrado e, mobilizado por investigar a relação entre a lógica algorítmica e os diagnósticos de saúde mental, comecei a buscar nas redes sociais conteúdos relacionados a diagnósticos muito frequentes atualmente, como TDAH, Depressão e Ansiedade. Nunca fui diagnosticado a partir de nenhum desses quadros clínicos e não me sinto identificado com a sintomatologia que os caracteriza, como falta de atenção, insônia, ansiedade e outros sintomas relacionados a esses diagnósticos.
Atento à atuação do algoritmo, tive a ideia de começar a fazer um registro de todos os direcionamentos (sobretudo de propagandas de produtos e cursos) que me apareciam e que me causavam a mesma surpresa que tive quando vi os primeiros vídeos do Youtube no ano passado.
Surge para mim uma propaganda no Facebook de um remédio fitoterápico que “auxilia no tratamento de Ansiedade, Angústia e Irritação”. Fico surpreso inicialmente porque, desatento, não tinha entendido por que aquele tipo de propaganda estava aparecendo para mim – até lembrar das buscas que comecei a fazer sobre os diagnósticos para a minha pesquisa de mestrado, há um mês!
Mais uma propaganda da marca de fitoterápicos, agora com uma recomendação para um “tratamento auxiliar do estresse, concentração e memória”, que tinha como título publicitário: “Difícil focar no Home Office?”
Surge uma nova propaganda da mesma marca de fitoterápicos: “Ansiodoron: tratamento auxiliar da insônia e ansiedade”.
Mais uma propaganda da marca de fitoterápicos: “Previgrip: a junção de 3 ativos naturais para auxiliar sua imunidade.”
Nessa minha busca por vídeos para a minha pesquisa de Mestrado, comecei a assistir ao canal de um médico com publicações muito populares sobre sinais de transtorno de ansiedade (vídeos com milhares de visualizações e comentários).
Nesse dia, aparece para mim uma propaganda de um curso desse mesmo médico, com a seguinte chamada: “Como construir sua autoridade na Psicologia? Pode parecer uma missão impossível, mas não é. Você consegue construir sua autoridade no meio digital para conquistar mais pacientes e alcançar seus objetivos!”.
Nova propaganda de remédios ‘alternativos’, agora de uma outra marca, de gomas de mascar que ajudariam a ter uma melhor noite de sono (?). O slogan: “Noites mal dormidas podem afetar a sua vida para sempre […]. Livre-se da irritação, do stress, da falta de foco! Ganhe produtividade e conquiste tudo o que deseja!”
Nova propaganda, agora de uma marca de óleos essenciais, com o seguinte texto: “Experimente os blends de óleos essenciais […] e leve bem-estar de forma natural e com eficiência para a sua rotina”. A imagem apresenta pequenos frascos, cada um com uma cor diferente e com palavras nos rótulos do tipo: ‘Desinchar’, ‘Stress’, ‘Dormir’, ‘Ansiedade’.
Oito de novembro, dia em que termino de escrever este texto. O espanto pela força do algoritmo ainda ressoa em mim. Quando via isoladamente os anúncios que listei aqui, me vinha esse espanto, porém não conseguia ter dimensão da quantidade de propagandas desse tipo que apareciam para mim, em um período de tempo tão curto.
Se a propaganda de medicações psiquiátricas convencionais fosse legalizada, fico imaginando que tipo de anúncios me surgiriam – e ainda que isso não ocorra, o marketing digital e o algoritmo parecem criar terreno para fomentar uma sensibilização quase compulsiva, o que parece levar a uma possível diagnosticação de nós mesmos.
Se, em um processo de pesquisa acadêmica que envolve diagnósticos, o algoritmo tem potência de agir com tanta força e destreza, que dimensão de poder ele poderia ter quando, de fato, essa operacionalização ocorre frente a pessoas realmente sensibilizadas com essas questões e em sofrimento? E mais: quanto do sofrimento contemporâneo, na virtualidade, está à mercê desse algoritmo sedento por mercantilizar qualquer aspecto possível do viver?
O aumento de diagnósticos de saúde mental e as questões de medicalização parecem ter, hoje em dia, uma nova dimensão a partir da qual serem olhados: esse caráter oculto, capilarizado, sutil e devastador que a mercantilização de dados pessoais produzidos na virtualidade tem construído: nem mesmo o sofrimento escapa a essa captura ferrenha do algoritmo. Um mercantilismo selvagem que tudo percebe e imediatamente captura e domina. Trocas invisíveis, sutis. Devastadoras.
[1] “Curando Traumas: um programa passo a passo para restaurar a sabedoria do corpo” (tradução minha).
[2] “Ganhe experiência técnica para implementar Aprendizagem Emocional e Social no seu contexto de Educação” (tradução minha).
APA – Amici, H. G. (2021). Diário algorítmico: diagnóstico de redes. CadernoS de PsicologiaS, 2. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/diario-algoritmico-diagnostico-de-redes/
ABNT – AMICI, H. G. Diário algorítmico: diagnóstico de redes. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 2, 2021. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/diario-algoritmico-diagnostico-de-redes/>. Acesso em: __/__/____ .