#Relatos_de_Experiências
Resumo: Os diálogos sobre a inclusão de pessoas com deficiência favoreceram a elaboração de aparatos legais que versam sobre a garantia de seus direitos. Entretanto, na prática, a medida de acolhimento institucional ainda é colocada como alternativa primeira em estratégias protetivas. A cultura de institucionalização de pessoas com deficiência prejudica a efetivação do direito à liberdade e à convivência familiar e comunitária. Neste contexto, destaca-se o dever ético que a Psicologia possui em assumir uma perspectiva anticapacitista, em defesa do direito à diferença, rompendo com o lugar histórico de institucionalização e asilamento das pessoas com deficiência.
Palavras-chave: person with disability, institutionalization, institutional care.
LISTENING AND CARE IN THE HOSPITAL: AN EXPERIENCE REPORT IN THE PICU
Abstract: Discussions about the inclusion of people with disabilities have led to the development of legal frameworks to ensure their rights. However, in practice, institutional care is still often considered as the primary option in the row of protective strategies. The culture of institutionalization of people with disabilities hinders their right to freedom and familiar and communitarian life. In this context, we highlight the ethical duty of Psychology to adopt an anti-ableist perspective in order to advocate for the right to be different and to break away from the historical trend of institutionalization and confinement of people with disabilities.
Keywords: transference; psychoanalysis; hospital psychology.
ECOS DE LA HISTORIA DE LA INSTITUCIONALIZACIÓN DE PERSONAS CON DISCAPACIDAD
Resumen: Los diálogos sobre la inclusión de personas con discapacidad han favorecido la elaboración de aparatos legales que garantizan sus derechos. Sin embargo, en la práctica, la medida de acogida institucional todavía se considera como la primera alternativa en las estrategias de protección. La cultura de institucionalización de personas con discapacidad perjudica la efectiva realización de su derecho a la libertad y a la convivencia familiar y comunitaria. En este contexto, destaca el deber ético de la Psicología de asumir una perspectiva anticapacitista, en defensa del derecho a la diferencia, rompiendo con el lugar histórico de institucionalización y aislamiento de las personas con discapacidad.
Palabras-clave: persona con discapacidad, institucionalización, atención institucional.
Ao longo da história, a noção de direito à igualdade não abarcou, por tempos, as diferenças entre as pessoas e os contextos sociais em que estão inseridas. Esse cenário contribuiu com a reprodução de desigualdades e discriminações contra aqueles que não representassem os interesses da classe dominante e que desviavam do padrão de normalidade da época. (Gonçalves e Machado, 2018). Apesar de atualmente existirem leis que formalizam os direitos de pessoas com deficiência e amplas discussões acerca do assunto, essa população ainda enfrenta barreiras sociais e normativas na efetivação de seus direitos.
O conceito de deficiência se atualizou ao longo dos diferentes cenários sócio-políticos, passando por perspectivas caritativas e reabilitadoras. Este panorama histórico possui como constante a concepção da deficiência como algo que escapa à normalidade, que precisa de cura, de piedade e até mesmo afastamento da vida comunitária. Em muito, esse lugar social da deficiência se dá pela presunção de que o indivíduo com deficiência não teria serventia na produção de riquezas, que define as regras sociais, o que é normal e anormal, desejável e indesejável (Monti, 2021).
Silva (1987) enfatiza que, em 1981, a Organização das Nações Unidas, pela primeira vez, destacou a marginalização das pessoas com deficiência, reconhecendo o cenário de violação de seus direitos humanos fundamentais. E aponta que a inércia social em relação à exclusão dessas pessoas com deficiência reflete, em parte, uma rejeição silenciosa ao que é considerado “diferente” (Silva, 1987). De acordo com Diniz (2007), um corpo só é percebido como diferente quando comparado àquele que é socialmente considerado como o corpo ideal e esperado. Conforme a autora, “a anormalidade é um julgamento estético e, portanto, um valor moral” (p.8). Nessa lógica, conclui-se que dentro do discurso social da normalidade, um corpo com deficiência seria tomado como um corpo inesperado, que desafia as expectativas.
Antunes (2014) aponta que a Psicologia inicialmente esteve inserida nos contextos da deficiência através de produções oriundas de outras áreas de conhecimento, tais como a Medicina, Teologia e Pedagogia, que buscavam explicar os fenômenos psicológicos dentro de suas teorias. O pensamento psicológico-psiquiátrico teve fortes influências de estudos do século XIX, que abordavam questões de adaptação ao ambiente e consideravam o trabalho como um meio para a “civilização”, condenando grupos que consideravam “ociosos”, como indígenas, pessoas com transtornos mentais e pessoas com deficiência, ao afastamento do convívio comunitário como forma de preservar a organização social (Antunes, 2014).
No século XX, a Psicologia se constituiu como um dos fundamentos científicos do movimento higienista brasileiro, que se baseava na noção de prevenção eugênica, a serviço de um projeto social de exclusão das diferenças (Mansanera e Silva, 2000). Souza (2005), refere que a propagação do discurso eugenista teve início no Brasil a partir de 1910 e, embora apresentasse uma ampla gama de contradições, passou a ocupar um lugar de destaque no cenário nacional, como uma corrente reconhecida politicamente e socialmente.
Ao se dedicarem à análise da relação entre a história da Psicologia no Brasil e a corrente eugenista, Faggion e Boarini (2018) discorrem sobre o fato de que vários integrantes da Liga Brasileira de Higiene Mental (LBHM) – a qual objetivava, com base em concepções higienistas e eugenistas, transformar a nação brasileira à imagem de países europeus – ocuparam lugar de destaque na disseminação e no estabelecimento do saber psicológico no país. A busca pelo “melhoramento da nação”, aproximou a corrente eugenista do campo da educação e da Psicologia, devido ao entendimento de que tais áreas contribuem com conhecimentos que eram tidos como valiosos para o alcance do “ajustamento social” da população. As autoras salientam ainda a escassez de materiais que se disponham a pensar a correlação entre a história da eugenia e da Psicologia no Brasil. Conforme Faggion e Boarini (2018, “o não reconhecimento da correlação entre eugenia e higiene mental no campo da psicologia pode ser percebido no modo como contamos a história desta ciência” (p.1246).
A Psicologia possui um papel histórico no estabelecimento do lugar de exclusão da diferença, que deve ser considerado no debate sobre a cultura de institucionalização de pessoas com deficiência em nosso país.
Desde o período imperial, o Brasil possui a reclusão como princípio político, com a criação de instituições asilares na área da saúde e da educação de pessoas com deficiência. Segundo Figueira (2008), no século XIX, com a fundação de hospitais psiquiátricos, um número considerável de pessoas com deficiência intelectual foi internado devido à falta de diagnósticos mais precisos. No contexto brasileiro, podemos citar o Hospital Colônia de Barbacena em Minas Gerais que, como muitas outras da época, era utilizado para internar pessoas consideradas “indesejadas” pela sociedade, muitas vezes sem um diagnóstico médico preciso. Um caso notável descrito por Arbex (2013) relata um menino de cerca de 10 anos encontrado “crucificado” ao sol em um hospital psiquiátrico infantil, com a justificativa de que, caso solto, ele poderia arrancar os olhos das outras crianças – uma suposição de algo que nunca havia ocorrido. Esse episódio ilustra o cenário histórico de crueldade e desumanidade das práticas em instituições psiquiátricas brasileiras.
A partir do final dos anos 70, o saber psicológico esteve envolvido no complexo processo de transformação do modelo de cuidado em saúde mental e na construção de um novo entendimento de saúde. O contexto pós Reforma Sanitária e Reforma Psiquiátrica contribuiu para o surgimento de alternativas ao internamento, deslocando a atenção exclusivamente institucional para a atenção coletiva e responsabilização social (Simões et al., 2013). Apesar disso, de acordo com Martins e Soares (2023), a inclusão efetiva na sociedade segue prejudicada pela concepção estereotipada construída historicamente: a pessoa com deficiência tem dificuldade em conquistar seu local de fala e ter suas potencialidades exaltadas. É de se considerar também, o contexto social no qual o sujeito com deficiência está inserido e suas relações de cuidado, que podem comprometer seu acesso a direitos básicos e à vida comunitária.
Atualmente, a ausência de efetivo apoio governamental para que pessoas com deficiência e suas famílias possam manter suas vidas de forma independente, contribui para que estas recorram à institucionalização como uma resposta, ou a única possível, frente a moradia de longo prazo para pessoas com deficiência (Relatório HRW, 2018). Apesar das estratégias propostas pelo sistema socioassistencial brasileiro para garantia dos direitos das pessoas com deficiência – incluindo considerar a institucionalização como medida excepcional e provisória – há uma ineficiência prática na implementação dessas políticas. Um exemplo disso são as Residências Inclusivas, que deveriam promover a autonomia e fortalecer vínculos comunitários para jovens e adultos com deficiência sem retaguarda familiar (Ministério do Desenvolvimento Social, 2014), mas muitas vezes acabam não cumprindo esse objetivo e perpetuam práticas de isolamento.
A criação de Residências Inclusivas no Brasil se configura como uma iniciativa positiva para promoção da autonomia de pessoas com deficiência em acolhimento, porém sua implementação atual não tem garantido plenamente os direitos esperados. Conforme Scharfstein (2021), as Residências Inclusivas podem ser comparadas às Residências Terapêuticas, iniciativa promovida dentro da política de saúde mental como estratégia antimanicomial de desinstitucionalização. Contudo, as Residências Inclusivas não apresentaram o mesmo avanço em sua consolidação política no país.
Embora as Residências Inclusivas sejam uma estratégia para substituir grandes instituições asilares, não deve substituir ou desconsiderar outras políticas e serviços que poderiam ser oferecidos no domicílio ou por meio de outras formas de assistência (Relatório HRW, 2018). A institucionalização se trata de uma medida de caráter excepcional e última, devendo a possibilidade de reintegração familiar ser regularmente reavaliada pelas equipes de referência (Lei nº 13.146/2015).
Apresentamos Milton, Rosana e Breno
Apresentamos três casos atendidos pelas pessoas autoras em sua atuação no setor de Atendimento Psicossocial do Departamento dos Direitos da Pessoa com Deficiência1, da Prefeitura Municipal de Curitiba. Os nomes dos envolvidos foram modificados a fim de resguardar sigilo.
Os casos relacionados possuem em comum dois pontos: 1. A problemática do caso se apresenta justificada na dificuldade dos familiares em prestarem suporte necessário à pessoa com deficiência; 2. A utilização da estratégia de acolhimento institucional como forma de resolver a problemática que se apresenta.
A trajetória de institucionalização de Milton iniciou quando sua mãe precisou passar por internamento prolongado e ele foi acolhido temporariamente em uma vaga administrada pela política de saúde. A mãe, ao recuperar a condição de saúde, não permitiu o retorno familiar de Milton e passou a afirmar não ter possibilidade de lhe prestar cuidados em casa, devido aos comportamentos agressivos que o filho apresentava contra ela – mostrando fotografias com marcas de violência em seu corpo.
Compreendendo que Milton não possuía demanda clínica que justificasse sua permanência, a instituição o transferiu para internamento em uma clínica psiquiátrica, onde Milton permaneceu em asilamento devido à recusa da mãe em assinar sua saída. A mãe o visitava cotidianamente, levando pertences e alimentos, mas negava categoricamente a possibilidade de retorno familiar, justificando as agressões que sofreu e o estado sensível de saúde mental de seu outro filho, irmão de Milton. As equipes municipais buscaram trabalhar as condições de retorno familiar e se posicionaram por não haver perfil para encaminhamento para acolhimento institucional, afirmando o direito de Milton ao convívio familiar e comunitário. A mãe recorreu à Defensoria Pública do Paraná, onde entrou com um processo judicial que culminou na determinação de que Milton fosse acolhido institucionalmente. Na instituição, Milton apresentou os mesmos comportamentos que mostrava na residência da família, de modo que passaram a solicitar sua retirada do local.
A relação de Rosana com a família se encontra fragilizada há alguns anos, quando ela denunciou ter sofrido violência sexual de um familiar, o que foi tomado como mentira pela mãe e as tias, que se voltaram contra ela. A relação com a mãe se fragilizou ainda mais quando Rosana delatou a localização de seu irmão, que se encontrava foragido diante de dívida com pensão alimentícia. Rosana frequentava escola especial em meio período e se deslocava pela comunidade de moradia com autonomia. A família e alguns serviços de território passaram a questionar a possibilidade de Rosana autogerir sua vida, medicações e relações que estabelece, e a propor que Rosana fosse acolhida em uma instituição como forma de garantir sua segurança. Nossa equipe se posicionou contrária ao acolhimento. E Rosana afirmou que não aceitaria residir em uma instituição. Diante da necessidade de uma medida de prevenção do acolhimento institucional, foi articulada a transferência de Rosana para uma escola especial de período integral. Na nova escola, Rosana afirmou seu desejo de voltar a ter momentos de convívio comunitário. Para tanto, foi articulado com a escola um dia na semana no qual Rosana pudesse se ausentar para realizar a retirada das medicações semanalmente na Unidade de Saúde – estratégia para suporte na administração – e, no restante do dia, estabelecer atividades em sua comunidade de moradia. Rosana ainda reside em um cômodo nos fundos do imóvel da mãe, e tem verbalizado seu desejo de residir sozinha.
Breno residia com a mãe até seu adoecimento por Covid19, quando a família paterna foi procurada para lhe prestar os cuidados temporariamente. Com o falecimento da mãe, por complicações da doença, Breno passou a residir com o pai e a avó paterna definitivamente. Poucos meses depois, a avó veio a óbito e o pai deixou o trabalho para cuidar integralmente do jovem, que demandava suporte para todas as atividades da vida diária. Durante os contatos com o pai de Breno, as equipes percebiam fortes indícios de um quadro depressivo, porém ele recusava acompanhamento de saúde mental. Uma denúncia foi realizada pela comunidade em relação a hematomas que Breno apresentava no rosto – supostamente indícios de violência doméstica. E o Conselho Tutelar foi acionado. No acompanhamento à família, nossa equipe verificou que Breno agredia a si mesmo e outras pessoas de forma recorrente – o que justificava a presença dos hematomas. Percebemos que a heteroagressividade apresentada por Breno não se configurava como violência, mas sim como uma forma do jovem se expressar, se comunicar e estabelecer relações. O Conselho Tutelar entendeu que os comportamentos de Breno dificultavam o estabelecimento dos cuidados por seu pai, e encaminhou um relatório com indicação de acolhimento institucional para a justiça, que determinou o acolhimento imediato de Breno.
A partir dos casos apresentados, traremos algumas reflexões sobre como o histórico de institucionalização se transcreve em uma cultura que perpetua o asilamento de pessoas com deficiência.
Rosana passou por um período em que a família e alguns profissionais entendiam que ela poderia não estar tomando suas medicações adequadamente, o que fez com que reforçassem o posicionamento pelo acolhimento institucional. Em conversas com Rosana e sua mãe, nossa equipe percebeu que Rosana havia estabelecido como suporte pessoal para a rotina de administração de medicamentos a verificação de horários por meio da programação de um canal de televisão, e que, sem o aparelho, que havia sido retirado de seu quarto pela mãe, não conseguia mais manter os horários corretos conforme a prescrição médica. Percebe-se o impacto da cultura de institucionalização na vida de Rosana quando a necessidade de suporte de Rosana para administração das medicações – resolvida anteriormente com a simples presença de um aparelho de televisão no quarto – passa a ser ter como principal estratégia de atendimento seu isolamento em uma instituição.
Rosana realizava um movimento por sua autonomia, ao procurar uma vida comunitária ativa, que na maioria das vezes não dependia da intermediação de profissionais que acompanham o caso ou membros da família. Por se tratar de uma mulher com deficiência intelectual, pessoas de seu convívio acreditavam ser um problema Rosana desenvolver atividades por conta própria, afirmando que estaria expondo-se a riscos, sejam eles criados por ela ou por terceiros. Nossa equipe questionava tal posicionamento, uma vez que parecia sugerir que uma pessoa com deficiência não estaria apta a exercer seus direitos de cidadania assim como uma pessoa sem deficiência. Sampaio e Menezes (2018), destacam que, para se reconhecer a autonomia das pessoas com deficiência em questões relacionadas à própria vida, é necessário a transformação na compreensão da deficiência e o entendimento de que, um possível apoio para atender aos interesses e necessidades individuais das pessoas com deficiência, não implica na incapacidade de realizá-los.
Bissoto (2014) questiona como é compreendida pela sociedade a possibilidade de que pessoas com deficiência intelectual exerçam sua autonomia e exijam seus direitos, e destaca que, apesar de existirem discursos que apoiam a inclusão social de pessoas com deficiência intelectual, na prática há poucas situações que foquem no desempenho da autonomia e no processo decisório destas pessoas. Conforme a autora, os principais fatores relacionados a essa questão incluem a superproteção das pessoas com deficiência intelectual, baseada no medo de que sejam facilmente manipuladas; a ideia tradicional de que o processo decisório exige grande racionalidade, considerada inacessível para elas; e a presença de deficiências múltiplas. Além disso, existe o entendimento de que essas pessoas precisam de constante supervisão por estarem à margem das normas sociais. Soma-se a isso a raridade de ambientes organizados de maneira a respeitar e facilitar suas necessidades para o exercício da autonomia.
É importante ressaltar que a autodeterminação de pessoas com deficiência é reconhecida juridicamente pela Lei Brasileira de Inclusão – LBI (Lei Federal nº 13.146/2015), que lhes assegura o direito a autonomia de decisão sobre o próprio corpo e escolhas de saúde, uma vez que a deficiência não limita a capacidade civil plena (Sampaio & Menezes, 2018). Conforme o relatório da organização Human Rights Watch (2018) “muitos adultos em instituições são detidos ilegalmente, contrariando os compromissos internacionais do Brasil, pois um responsável legal os coloca nessa situação sem permitir que eles contestem a decisão” (p.1-2).
Existe uma tendência de pessoas com deficiência serem categorizadas nas instituições de acolhimento conforme seu “nível de gravidade”. Sendo esse nível atribuído, muitas vezes, pelos próprios profissionais da instituição. Dentro dessa lógica, existe a percepção de que pessoas com deficiências consideradas mais leves teriam condições de frequentar a escola, por serem entendidas como “educáveis” (Oliveira, 2011). Assim, somente pessoas com deficiência que demonstrassem mais autonomia seriam inseridas em programas educacionais, profissionalizantes, culturais, e demais atividades em ambiente externo à instituição. Ressalta-se que “o nível de comprometimento” de uma pessoa não deve impactar seu acesso a seus direitos fundamentais, sendo que muitas vezes o conceito de gravidade parece estar submetido a uma percepção subjetiva, utilizada de forma arbitrária na intenção de classificar um grupo de pessoas às quais poderiam ser desapropriadas de seus direitos (Relatório HRW, 2018).
Tanto no caso de Milton quanto de Breno, a questão comportamental é apontada como justificativa para seu afastamento do ambiente familiar, remontando à uma lógica manicomial. Ambos possuem referências familiares que os visitam periodicamente nas instituições onde passaram a residir. E permanecem, no acolhimento, com os mesmos comportamentos que demonstravam com as famílias, de modo que estratégias precisaram ser construídas para manejo da questão comportamental – estratégias que poderiam ter sido trabalhadas no ambiente familiar.
Segundo as equipes, Breno teria sido acolhido a pedido do pai, por não estar conseguindo lhe prestar cuidados. Alguns profissionais tentaram justificar o pedido de acolhimento relatando que o pai faria uso abusivo de substâncias, porém não havia indícios de tal conduta. Nossa equipe aprofundou as queixas do genitor e constatou que ele gostaria de manter Breno em casa, mas estava tendo dificuldades devido à depressão, à ausência de renda e à falta de apoio na lida com a questão comportamental do filho.
O acesso à renda, trazido pelo pai de Breno, é fator importante de análise, pois a vulnerabilidade socioeconômica acentua os demais fatores de vulnerabilidade, além de traçar um recorte para possíveis percepções de omissão familiar, uma vez que a terceirização do cuidado no ambiente domiciliar se concretiza apenas pela contratação de serviços privados (Chagas et al., 2023). Ainda assim, os auxílios governamentais financeiros, como o Benefício de Prestação Continuada, se mostram como estratégia insuficiente se não estiverem aliados ao estabelecimento e cumprimento consistente de outras políticas públicas, como saúde e educação (Relatório HRW, 2018).
No caso de Breno, o acolhimento se efetivou judicialmente, após posicionamentos de profissionais do Conselho Tutelar. Para Milton, a determinação judicial do acolhimento se deu após processo iniciado por sua mãe, que o mantinha em condição asilar em uma clínica psiquiátrica. A interferência dos órgãos de justiça com determinações de acolhimento, à revelia das análises técnicas dos profissionais que acompanham as famílias, reforça o lugar social da deficiência, uma vez que, diante da capacidade jurídica para garantir o cumprimento das previsões da LBI – inclusive aquelas nas quais o poder público falta -, os órgãos de justiça optam por entrar em favor da estratégia de reclusão.
Em 2015, um relatório da Organização das Nações Unidas apontou omissão do Estado Brasileiro quanto aos compromissos assumidos ao ratificar, em 2009, a Convenção Internacional dos Direitos da Pessoa com Deficiência. O relatório levantou críticas quanto ao Brasil não ter, à época, uma política nacional com estratégias para substituir a institucionalização pela vida fundamentada na comunidade (Abreu, Vilardo & Ferreira, 2019). Naquele mesmo ano, a LBI estabeleceu previsões que, em teoria, direcionaram a política nacional a tais perspectivas. Porém, apesar da existência de aparatos legislativos que asseguram o exercício de seus direitos humanos e liberdades fundamentais, na prática essa ainda não é uma realidade para as pessoas com deficiência (Abreu, Vilardo & Ferreira, 2019).
Após quase dez anos da LBI e décadas da proposta de desinstitucionalização fomentada pela Reforma Psiquiátrica, o contexto de segregação de pessoas com deficiência por meio da institucionalização ainda é uma prática comum (Aubert, 2021). Essa realidade se evidencia na experiência de Milton, Rosana, Breno e de tantas outras pessoas com deficiência que recebem como estratégia de suposta proteção e cuidado o direcionamento para instituições asilares.
A garantia dos direitos humanos das pessoas com deficiência em situação de acolhimento institucional constitui ponto importante de análise. Em um amplo estudo realizado pela Human Rights Watch (2018), organização internacional de defesa de direitos humanos, após a realização de entrevistas e observações diretas com 19 instituições brasileiras de acolhimento, concluiu-se que as pessoas inseridas no ambientes destas instituições não têm sua privacidade respeitada, além de não possuir quase nenhuma autonomia com relação às suas rotinas, sendo suas atividades definidas pelo cronograma da instituição ou pela iniciativa de terceiros. Conforme o relatório, as necessidades que são atendidas pelas instituições se resumem às mais básicas para sobrevivência (alimentação e higiene), e seu ambiente físico é assemelhado ao de um hospital ou centro de detenção, com grades nas janelas e portas. Além disso, identificaram que a qualidade do serviço ofertado era pior nas instituições onde havia um número maior de pessoas com deficiência com necessidades de cuidado intensivo.
Ao tomar o acolhimento institucional uma estratégia primeira no atendimento às demandas de suporte de pessoas com deficiência e suas famílias, fere-se o direito à convivência familiar e comunitária, à liberdade, e ao desenvolvimento da autonomia (ainda que na condição de interdependência). O histórico de institucionalização de pessoas com deficiência no Brasil não se mostra superado. Pelo contrário. Em um período histórico que se afirma teoricamente na perspectiva do modelo social de deficiência, o acolhimento institucional ainda é tratado como estratégia de cuidado e solução de problemáticas de vida.
A Psicologia participa desse processo histórico, tendo contribuído para a perspectiva higienista do lugar de exclusão de pessoas com deficiência. De maneira que possui condições – e um dever ético – de traçar um futuro em outra direção, com narrativas anticapacitistas, contrárias à institucionalização, de afirmação do direito à diferença, de fortalecimento da vida comunitária, da autonomia, do direito ao cuidado com dignidade e da liberdade das pessoas com deficiência.
[1] O Departamento dos Direitos da Pessoa com Deficiência é um órgão municipal criado em 1986 que, ao longo dos anos, passou por diversas alterações em sua estrutura, de acordo com o desenvolvimento histórico da própria política de atendimento às demandas da população com deficiência. Atualmente, se encontra vinculado à Secretaria do Governo Municipal de Curitiba, em uma perspectiva de atuação transversal na promoção e defesa da cidadania das pessoas com deficiência. Entre os serviços ofertados está o setor de Atendimento Psicossocial, que atua diretamente nos casos em que existem riscos para violação de direitos de pessoas com deficiência, articulando a rede de atendimentos e garantia de direitos. Nos últimos anos, com intuito de contribuir para o fortalecimento de uma perspectiva anticapacitista e compreendendo as especificidades e complexidades da atuação em um órgão de direitos do executivo, a equipe do Atendimento Psicossocial tem se dedicado a produção de conhecimento sobre os direitos humanos das pessoas com deficiência e a atuação da psicologia social em tal contexto, por meio de palestras, rodas de conversa e produção de artigos – como este que se apresenta.
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