Resumo: A emancipação subjetiva pode ser considerada o grande alvo de pessoas que estão em processo de análise pessoal, no sentido de que tal emancipação pode possibilitar novas condições de ser e estar no mundo. Considerando isso e fazendo uma articulação entre a produção de emancipação e autonomia, uso de drogas e saúde mental, é possível realizar trabalhos nos campos Psi em que o sujeito apareça e seja cuidado antes mesmo de seu uso de droga propriamente dito. Isso porque quando falamos sobre o cuidado nos campos da saúde mental e álcool e outras drogas, não há espaços para generalizações e, dentro dessa lógica, emergiram movimentos sociais que lutaram/lutam pela defesa dos direitos humanos, oferecendo condições de existência menos estigmatizadas e marginalizantes e, ademais, condições para se tornarem, de fato, pessoas singulares. Foi nesse cenário em que o presente artigo foi produzido e, portanto, teve como objetivo refazer, de maneira sucinta, o histórico da construção destes movimentos sociais, articulando tais histórias com o modo de funcionamento da sociedade vigente, de política e economia capitalísticas – que vigia e pune -, bem como explorou os atravessamentos resultantes do proibicionismo nas experiências humanas com base na prática da clínica psicanalítica atrelada à Redução de Danos fazendo mais um entrelaçamento: Psicanálise e Redução de Danos. A emancipação subjetiva de pessoas que fazem uso de drogas e/ou que apresentam demandas voltadas ao sofrimento psíquico é o principal resultado da junção entre estas éticas, lógicas e práxis garantidoras de direitos, espaços, corpos e vozes.
Palavras-chave: psicanálise; redução de danos; uso de drogas.
SUBJECTIVE EMANCIPATION IN THE CONTEXT OF DRUG USE: FROM PSYCHOANALYSIS TO HARM REDUCTION
Abstract: Subjective emancipation can be considered the major target of people who are in the process of personal analysis, in the sense that such emancipation can enable new conditions of being and being in the world. Considering this and making an articulation between the production of emancipation and autonomy, drug use and mental health, it is possible to do work in the Psi fields in which the subject appears and is cared for even before his drug use itself. This is because when we talk about care in the fields of mental health and alcohol and other drugs, there is no room for generalizations and, within this logic, social movements have emerged that fight for the defense of human rights, offering less stigmatized and marginalized conditions of existence and, moreover, conditions to become, in fact, unique persons. It was in this scenario that the present article was produced and, therefore, its objective was to retrace, in a succinct manner, the history of the construction of these social movements, articulating such histories with the mode of functioning of the prevailing society, of capitalistic politics and economy – that watches and punishes -, as well as to explore the crossings that result from prohibitionism in human experiences based on the practice of psychoanalytic clinical practice linked to Harm Reduction, making yet another intertwining: Psychoanalysis and Harm Reduction. The subjective emancipation of people who use drugs and/or present demands related to psychic suffering is the main result of the junction between these ethics, logics, and praxis that guarantee rights, spaces, bodies, and voices.
Keywords: psychoanalysis; harm reduction; drug use.
EMANCIPACIÓN SUBJETIVA EN EL CONTEXTO DEL CONSUMO DE DROGAS: DEL PSICOANÁLISIS A LA REDUCCIÓN DE DAÑOS
Resumen: La emancipación subjetiva puede considerarse el gran objetivo de las personas que están en proceso de análisis personal, en el sentido de que dicha emancipación puede posibilitar nuevas condiciones de ser y estar en el mundo. Teniendo en cuenta esto y haciendo una articulación entre la producción de emancipación y autonomía, el uso de drogas y la salud mental, es posible realizar un trabajo en los campos Psi en el que el sujeto aparece y es atendido incluso antes de su uso de drogas en sí. Esto es así porque cuando se habla de atención en los campos de la salud mental y del alcohol y otras drogas, no hay lugar para las generalizaciones y, dentro de esta lógica, surgieron movimientos sociales que luchan por la defensa de los derechos humanos, ofreciendo condiciones de existencia menos estigmatizadas y marginadas y, además, condiciones para convertirse, de hecho, en personas únicas. Fue en este escenario que se produjo el presente artículo y, por lo tanto, su objetivo fue retrazar, de manera sucinta, la historia de la construcción de estos movimientos sociales, articulando tales historias con el modo de funcionamiento de la sociedad imperante, de la política y la economía capitalista – que vigila y castiga -, así como explorar los cruces que resultan del prohibicionismo en las experiencias humanas a partir de la práctica de la clínica psicoanalítica vinculada a la Reducción de Daños, haciendo un entrelazamiento más: Psicoanálisis y Reducción de Daños. La emancipación subjetiva de las personas que consumen drogas y/o presentan demandas relacionadas con el sufrimiento psíquico es el principal resultado del cruce entre estas éticas, lógicas y praxis que garantizan derechos, espacios, cuerpos y voces.
Palabras clave: psicoanálisis; reducción de daños; consumo de drogas.
O fazer clínico na área psicanalítica é cheio de percalços, atravessamentos, afetações e ambiguidades, pois se trata de um ofício que demanda minuciosidade em seu “saber-fazer” à medida em que nos debruçamos sobre o ponto de que trabalhamos com o que há de mais singular no ser humano. Sendo assim, não há espaços para generalizações, principalmente quando o assunto faz referência ao uso de drogas e às inúmeras formas possíveis de nos relacionarmos com elas. No entanto (e já correndo o grande risco de generalizar), o que se produz nos espaços analíticos nos remete a algo da ordem de uma “emancipação”, essa – por sua vez – sendo subjetiva, no sentido de que o grande alvo a ser alcançado – quando iniciamos esse percurso de nos “(des)conhecermos melhor” em análise – é a possibilidade de alçarmos novos voos e, porque não, voos solos, sem amarras, sem impeditivos, de maneira emancipada e autônoma, independentemente se essa emancipação diz respeito aos afetos direcionados aos nossos familiares, seja em relação às pessoas com quem fazemos trocas românticas, seja com nosso trabalho, relação com nosso uso de drogas, com sexo, ou seja, com tudo aquilo que nos faz sentido e, dessa forma, nos faz sentir; aspectos que nos enunciam como sujeitos no mundo.
No entanto, essa emancipação subjetiva não fala somente do lugar da desalienação do sujeito frente ao desejo do Outro – conceito fundado em Lacan (Roudinesco & Plon, 1998, p. 558) para pensar um lugar simbólico que desempenha função de alteridade, de diferença, aquilo que vem para demarcar a não semelhança; o primeiro Grande Outro das pessoas é a figura que desempenha a função materna ao nomear e simbolizar, para o bebê, as coisas do mundo externo e interno – e a pretensa separação entre eles para, então, se tornar sujeito de desejo, mas também fala de aspectos culturais, sociais, políticos e econômicos que atravessam diretamente as vivências da humanidade em relação a tal construção, sendo, portanto, necessário levarmos em consideração todos os aspectos supracitados no que concerne à produção de emancipação.
Nesse sentido, é possível observar que, para considerarmos tal emancipação como possibilidade para alguém, é preciso avaliar quais são os efeitos psíquicos que o modo de funcionamento da sociedade brasileira mobiliza nas subjetividades humanas, principalmente no que diz respeito às demandas de pessoas em condição de sofrimento mental e/ou que fazem uso de drogas que são, reiteradamente, excluídas da sociedade. A referida avaliação se faz mais do que pertinente, urgente, visto que a lógica de produção e performance que o capitalismo nos propõe reverbera de diversas formas na(s) existência(s) humana(s) com consequências como preconceito, segregação e violação de direitos humanos básicos, dificultando a construção de projetos de cuidado que desemboquem em autonomia.
No que concerne, ainda, à lógica capitalista, é possível realizar uma articulação entre tal lógica (somada à lógica de produtividade) com o surgimento de movimentos sociais que lutaram e lutam pela defesa intransigente dos direitos humanos que o próprio capitalismo tentou/tenta extinguir como, por exemplo, os movimentos da Reforma Psiquiátrica, da Luta Antimanicomial (LAM) e da Redução de Danos (RD), devido às grandiosas e potentes interferências que estes movimentos proporcionaram no contexto de defesa à existência humana livre e comunitária.
Os objetivos desses movimentos sociais vão contra ao que a lógica capitalística propõe – que, no final das contas, é excluir quem não produz de maneira efetiva (isso vale para pessoas que usam drogas, pessoas em condição de sofrimento mental, pessoas com “diagnósticos psiquiátricos”, população preta, população LGBTQIA+, criminosos; em suma, aquelas consideradas e estigmatizadas como loucas que, na história do Brasil, sempre foram marginalizadas e depositadas, aos montes, em instituições psiquiátricas, privadas e/ou públicas, conhecidas como “manicômios”.
Sendo assim, como pensar a construção de projetos de cuidado em espaços que, de antemão, segregam e punem? É possível criar possibilidades de projetos que desemboquem em autonomia sem trabalhar com a realidade na qual as pessoas estão inseridas? Afastar, prender, vigiar e punir são ferramentas exitosas de manejo no campo da saúde mental e uso de drogas? São inúmeras as inquietações.
Portanto, foi nesse contexto de inquietações em que o presente artigo foi produzido e, nesse sentido, teve como objetivo refazer, de maneira sucinta, o histórico da construção destes movimentos sociais, articulando tais histórias com o modo de funcionamento da sociedade vigente, de política e economia capitalísticas, bem como explorou os atravessamentos resultantes do proibicionismo nas experiências humanas com base na prática da clínica psicanalítica atrelada à Redução de Danos fazendo, também, outro entrelaçamento: Psicanálise e RD. A emancipação subjetiva de pessoas que fazem uso de drogas e/ou que apresentam demandas voltadas ao sofrimento psíquico é o principal resultado da junção entre estas éticas, lógicas e práxis garantidoras de direitos, espaços, corpos e vozes.
A globalização e o sistema capitalista na produção de subjetividades
O modelo político e econômico capitalista nos propõe movimentos que nos levam às lógicas de produção incessante e performance absurda: “Produza! Consuma! Goze!”. Todavia, sabemos que viver nessa dinâmica perversa de busca constante por status e gozo, produz, sobretudo, angústia. Isso fica muito evidente em minha clínica (psicanalítica) ao escutar narrativas de pessoas que trazem esse “vício” em identidade, em rótulos, em diagnósticos, em pertencer. Rolnik (s/d) explora mais essa questão do “vício” em sua escrita acerca dos “Toxicômanos de identidade: subjetividade em tempo de globalização”.
Essa forma “capitalística” de existir, que mobiliza sofrimento, nos impele a criarmos estratégias de manejos para lidarmos com as afetações que nos atravessam. O uso de drogas está atrelado a esse aspecto, assim como a religião e a ciência – conforme nos antecipava Freud em sua escrita sobre o “Mal-estar na civilização”, já em 1930 (Freud, 1930/2009).
No entanto, como vivemos numa sociedade – além de capitalista – proibicionista, nos vemos numa situação em que a busca por estratégias para contornar nossas angústias é tida como crime ou loucura ou doença ou todos esses estigmas concomitantes. Isso porque o uso de drogas é penalizado e criminalizado em nosso país, em decorrência de muitos anos de construção histórica pautada em racismos estruturais, desde a invasão dos portugueses às terras brasileiras, lá nos anos de 1500, resultando na proibição de modos de vida de pessoas específicas. Oliveira e Ribeiro (2018) retratam com mais aprofundamento tais questões vinculadas ao racismo. E mesmo o proibicionismo sendo um fenômeno recente, da forma como conhecemos, por datar do século 20, as ressonâncias dessa lógica – que tem como objetivo erradicar toda e qualquer produção, distribuição e consumo de drogas tornadas ilícitas – nas esferas de saúde, educação e segurança pública já ultrapassaram muitas reencarnações – me permitindo fazer uso da religião nesse momento.
Isso porque o proibicionismo produz violência. Embasa uma “guerra às drogas” que, com fundamentos bastantes ardilosos e inflexíveis, alcança sua meta: interferir diretamente em corpos alheios, seja proibindo comportamentos que fazem parte da existência humana desde que é possível contar cronologicamente, seja tirando vidas de maneira desenfreada, escolhendo quem vive e quem morre, citando o conceito de “necropolítica”, a “política da morte”, de Achille Mbembe (2018).
Por isso é importante que consideremos as práticas de criminalização de pessoas que usam drogas, haja vista seus efeitos nos processos de subjetivação de cada sujeito. Logo, podemos trazer para nossa discussão quem são essas pessoas que usam drogas e que constituem nosso imaginário social sobre o assunto. Há dados que confirmam que a guerra às drogas acontece, sobretudo, nas periferias. (Teixeira & Maronna, 2015, s/d).
Nessa guerra, cor da pele, endereço e conta bancária contam. Uma coisa é um menino branco fumar na Avenida Paulista (vai provavelmente se safar como usuário). Outra é o menino preto fumando na periferia (grande chance de ir para a cadeia por tráfico). (Moraes, 2014).
Ou seja, entramos em uma outra pauta de discussão acerca do capitalismo que está enraizado em nossa sociedade e que coloca em evidência que o “produzir mais” e o “ter mais” se sobressaem a muitos outros aspectos e, dessa forma, a população jovem, preta, pobre e periférica é marginalizada e criminalizada, sem considerarmos o fato de que, também, essas pessoas são culpabilizadas pelos infortúnios de suas próprias vidas, sendo intituladas como “preguiçosas”, “vagabundas” e afins.
Justamente por conta dos aspectos supracitados referidos à segregação, criminalização, marginalização e estigmatização de pessoas específicas, os movimentos sociais entram/estão em cena para que seja possível a construção de políticas públicas que defendam os direitos que todas as pessoas já deveriam ter acesso, a partir da implementação da Constituição Federal de 1988 e, sobretudo, contemplar as pessoas que não têm condição de pagar pelas condições mínimas de vida.
Pois, como pensar “produção de subjetividade” num espectro que abarque um “completo estado de bem estar biopsicossocial”, definido pela Organização Mundial da Saúde (1946) como “saúde”, estando num cenário que nos proíbe de exercermos nossa autonomia e protagonismo frente nossas próprias vidas? Os sujeitos, para se constituírem enquanto tal, precisam de amor, acolhimento e cuidado. Desejar que o resultado dos processos de subjetivação seja positivo, em meio a tanta repressão, exclusão e encarceramento, não me parece possível.
A emancipação subjetiva, citada no início desse artigo, refere-se, a piori, à possibilidade de termos nossos direitos respeitados, nos colocando numa posição de atividade no que concerne aos nossos aspectos singulares, promovendo cuidados em liberdade e potencializando a vida (principalmente a vida fora de instituições psiquiátricas/manicômios/comunidades terapêuticas).
É nessa altura que fica evidente a necessidade de explorar as construções dos movimentos sociais que lutam, de maneira incansável, para defender o óbvio (que, em tempos atuais, já não o é): direitos humanos e a vida em liberdade.
Histórias que promoveram/promovem liberdade: Reforma Psiquiátrica, Luta Antimanicomial (LAM) e Redução de danos (RD)
Traçar um panorama sobre saúde mental (SM) brasileira sem citar os movimentos da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial não se faz possível. Isso porque ambos os movimentos sociais incidiram diretamente sobre aspectos relacionados à dignidade humana quando o assunto é o cuidado no campo da SM. Tais movimentos se articulam, pois tanto a Reforma Psiquiátrica como a LAM são resultados de práticas garantidoras de direitos humanos.
A começar, a história da Psiquiatria no Brasil conta com muitos anos. Todavia, o que desejo explorar aqui está relacionado à emergência do movimento da Reforma Psiquiátrica Brasileira, propriamente dita, que pode ser datada dos anos 70 – num período ditatorial de extrema repressão e censura – que se consolidou a partir da junção de demandas (bastante densas) de pessoas internadas em instituições psiquiátricas com demandas de profissionais da saúde que atuavam nessas mesmas instituições e que, por sinal, apresentavam péssimas condições estruturais, de serviços e de trabalho – qualquer semelhança com a atualidade não é mera coincidência, mas sim a reprodução de um passado não muito distante; para isso, verificar o Relatório da Inspeção Nacional em Comunidades Terapêuticas realizado pelo Conselho Federal de Psicologia (2018).
Dando continuidade, um marco na história da Reforma foi a revelação/denúncia, por parte da mídia daquela época, de situações de extrema violência e violação de direitos humanos dentro de uma instituição chamada “Casa de Saúde Anchieta”, na cidade de Santos, que mexeu com as estruturas da sociedade; como resultado de ampla mobilização social houve o fechamento da instituição. A inquietação por parte da sociedade civil foi tamanha, a ponto de ocorrer, cada vez mais, a disseminação da lógica antimanicomial que preconizava o cuidado em liberdade.
Essa lógica foi sustentada por diversos atores sociais que se apresentaram indispensáveis para sua consolidação. Paulo Amarante, vanguardista no cenário da SM no Brasil, interferiu diretamente na construção da Reforma Psiquiátrica com suas produções teórico-práticas pautadas na “Antipsiquiatria” de Franco Basaglia. Tal pensamento operou como ponto de partida para os movimentos de greve e de denúncia, por parte de profissionais da saúde, no que concerne às violações institucionais de direitos humanos praticadas pela lógica hospitalocêntrica, médico-centrada, biologizante e patologizante dentro de instituições psiquiátricas daquela época.
Além disso, Amarante também nos presenteou com uma obra, intitulada “Saúde Mental e Atenção Psicossocial” (2007), na qual ele comenta sobre a complexidade do processo de reformas psiquiátricas, sendo necessário, portanto, construir um aparato teórico que falasse sobre esse fenômeno. Desta forma, o autor pensa as quatro dimensões que perpassam a construção de movimentos reformistas até a implementação de políticas públicas que pautem as reivindicações de tais movimentos, a saber: dimensão teórico-conceitual, dimensão técnico-assistencial, dimensão jurídico-política e a dimensão sociocultural.
A primeira dimensão, teórico-conceitual, diz respeito à necessidade de, a partir de estudos científicos, aperfeiçoarmos os conceitos já existentes na esfera dos discursos sobre uso de drogas. Já a segunda dimensão, técnico-assistencial, trata de aspectos voltados à criação de novos serviços que atuem a fim de produzir e promover acolhimento e cuidado no lugar de repressão, punição e exclusão de pessoas em condição de sofrimento psíquico associados ou não ao uso de drogas. A terceira, jurídico-política, nos mostra a necessidade de revisão da legislação, visto que muitas delas dificultaram e ainda dificultam o exercício da cidadania das pessoas. Por fim, a dimensão sociocultural, que tem como foco a participação da sociedade em relação ao tema da loucura, dos “doentes”, dos “diferentes”, promovendo eventos e debates sobre essas questões para conscientizar a população no que diz respeito às inúmeras possibilidades de produções a partir das loucuras. (Amarante, 2007).
Portanto, tendo em vista que o movimento de Reforma possui como objetivo realizar mudanças nas concepções de “saúde e doença”, “normal e anormal”, o paradigma da Redução de Danos entra em cena por compartilhar deste mesmo intuito e por, em ambas as práxis, existir a preocupação em sustentar a ideia de que saúde é um processo social complexo e, portanto, a saúde é coletiva. Não se produz saúde em lugares que nos trancam, como as instituições psiquiátricas e “comunidades terapêuticas”.
Dessa maneira e de forma concomitante à construção da Reforma Psiquiátrica, contamos com a emergência do Movimento da Luta Antimanicomial e, somados os movimentos, houve uma valiosa conquista para pessoas em condição de sofrimento mental: a promulgação da Lei da Reforma Psiquiátrica – Lei nº 10.216 de 2001.
A Lei da Reforma teve/tem por objetivo a reconfiguração do modelo de assistência às pessoas em condição de sofrimento mental para sair da esfera das internações massivas, indo em direção às possibilidades de produção de cuidado no próprio território e, principalmente, em liberdade.
Foi nesse cenário de defesa intransigente dos direitos humanos que a Luta Antimanicomial também tomou corpo: diversas pessoas, desde as que sofriam mentalmente até seus próprios familiares e profissionais da saúde, se reuniram para construir uma carta que reivindicava melhorias nos setores da saúde mental, defendendo – de maneira primeva – o cuidado em liberdade e no território. A LAM, portanto, luta para que as pessoas em condição de sofrimento psíquico possam ser cuidadas, ao invés de “tratadas”, numa perspectiva que abarque todo e qualquer tipo de sofrimento e, ademais, que promova qualidade de “estadia” no mundo.
Falando em estadia, a Redução de Danos também nos convoca a pensar as possibilidades de cuidado em relação às pessoas que usam drogas, partindo dos mesmos aspectos que a Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial propõem: promover e fortalecer a dignidade humana, o respeito pelas pessoas, a apologia ao cuidado e à livre expressão de/do ser.
É em relação à livre expressão de/do ser e estar no mundo que se faz pertinente citar, nesse momento, o entrelaçamento não só entre Reforma, LAM e RD como, também, entre todos esses movimentos e Psicanálise. Fazer esse entrelaçamento entre o campo da saúde mental e uso de drogas com a práxis psicanalítica – que possui como fundamento a ética do não-saber sobre o sujeito e, portanto, não dizer o que ele deve ou não fazer – produz o que há de mais potente na existência humana: emancipação psíquica e a possibilidade de sustentarmos nossos próprios desejos.
O encontro com a psicanálise me foi muito potente. Revirou minha vida de cabeça para baixo. Fui atravessada de inúmeras formas pela ética do “não-saber”, o qual a psicanálise prega e sustenta. Todavia, sustentar esse lugar de não-saber, numa sociedade que a-todo-momento nos coloca, de maneira impositiva, a necessidade de saber, não é uma tarefa fácil. É dificultosa devido ao fato, bastante sofrido, diga-se de passagem, de termos que nos despir de todas nossas certezas em relação a muitas coisas (não vou colocar “a tudo” já que não existe completude), caso nos propuséssemos a atuar com base em tal ética, a psicanalítica.
Ou seja, para ser possível nos enveredarmos por esse processo de sustentar o lugar de “não-saber-sobre-nada”, ao passo que o mundo nos empurra para uma dinâmica oposta, é necessário que sustentemos, portanto, nosso próprio processo de análise pessoal, a fim de que alcancemos maior autonomia frente às demandas da vida.
A análise pessoal, nesse sentido, pode ser lida como um dispositivo de redução de danos, visto que também tem como objetivo a produção de autonomia que, de maneira esperada, nos convoca a ocupar lugares na vida onde “sofreríamos com mais qualidade”. Digo isso pois não há como concebermos a ideia de que exista “vida” sem “sofrer”, já que ser feliz é sinônimo de ser/estar satisfeita/o a-todo-momento – e, sinceramente, isso não me parece possível. Outra utopia é pensarmos em uma sociedade sem drogas. Se não há a possibilidade de nos satisfazermos a todo momento e, portanto, há sofrimento, logo precisamos de outros dispositivos que nos auxiliem a lidar com tal sofrimento. Freud em “O mal-estar na civilização” nos traz essa reflexão, por exemplo, ao nos apresentar a ideia de que a humanidade se utiliza de três ferramentas para dar contorno às angústias, a saber: religião, ciência e uso de drogas. (Freud, 1930/2009).
O que quero explicitar aqui é a ideia de que, desde que é possível contar cronologicamente, nunca houve, em nenhum momento da história da civilização, períodos em que substâncias não fossem utilizadas como dispositivo de prazer. Sim. De prazer. Não de sofrer. Ou não só. Nesse viés – e indo mais adiante – lhes convoco a pensar, falando em várias possibilidades, no entrelaçamento da Psicanálise com a Redução de Danos – que apresento agora.
A Redução de Danos nunca fez tanto sentido para mim como quando pude articular que ela era “aplicável” a todas as pessoas. Nesse sentido, a Redução de Danos, carinhosamente chamada de “RD”, é uma ética de cuidado que sustenta um lugar muito semelhante com o lugar que sustenta um analista: o de um “não saber”. Não saber sobre o sujeito. Não tentar “decifrar” o que quer alguém. Simplesmente não saber. A-todo-momento.
Essa ética de cuidado, que possibilita a estadia das pessoas num lugar de legitimidade, corpo, voz e espaço, também proporciona o fortalecimento da autonomia e, principalmente, do protagonismo em relação à própria vida. Nesse ponto, sinalizo as principais semelhanças entre RD e Psicanálise, na minha leitura (que a todo momento corrobora com minha prática clínica).
Ainda sobre Redução de Danos, me parece pertinente frisar aqui que articular RD e Psicanálise Clínica foi a decisão mais ousada que pude tomar. Afirmo isso por conta de que defender direitos humanos, sabemos, é uma tarefa árdua – mesmo devendo não ser. E quando esses direitos humanos estão atrelados ao direito que todas as pessoas têm de alterarem suas consciências a partir do uso de substâncias, o assunto fica ainda mais enviesado, estigmatizado, “entabuzado”.
Esse é um ponto que já me inquieta. Por que tornar o uso de drogas um tabu, sendo que as drogas fazem e continuarão fazendo parte da história da humanidade? As respostas melhores fundamentadas dizem sobre racismo, de maneira mais enfática. A guerra às drogas nos explicita de maneira espetacular tal questão, nos trazendo (muita) dor e sofrimento, visto que é – MESMO – uma guerra! Dessa forma, foi necessário pensar numa outra alternativa, alternativa esta que atendesse às necessidades das pessoas no cuidado em SM e, mais enfaticamente, pessoas que usam drogas.
No ínterim da consolidação dos movimentos da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial, também houve espaço para mais mobilizações sociais, visto que o sofrimento humano era/é demasiado, o que resultou na construção do movimento da Redução de Danos.
A RD pode ser lida de diversas maneiras: como prática, clínica, lógica e ética. Antes de dissertar sobre a história da RD, quero pontuar que ela tem como objetivo, também, a minimização do impacto que o modelo biomédico clássico exerce na vida humana, dando, portanto, maior ênfase às questões subjetivas de pessoas que usam drogas, ao considerar que a subjetividade é
[…] entendida como aquilo que diz respeito ao indivíduo, ao psiquismo ou a sua formação, ou seja, algo que é interno, numa relação dialética com a objetividade, que se refere ao que é externo. É compreendida como processo e resultado, algo que é amplo e que constitui a singularidade de cada pessoa. […] concebida como algo que se constituiu na relação com o mundo material e social, mundo este que só existe pela atividade humana. (Silva, 2009, p. 170).
Preenchendo lacunas, a Redução de Danos enquanto paradigma teve seu início, no Brasil, no ano de 1989, também na cidade de Santos/SP, operando como estratégia para diminuir os danos associados ao uso de drogas injetáveis (na época, os usos de cocaína e heroína eram frequentes). Devido ao fato de que as pessoas que usavam drogas injetáveis compartilhavam suas ferramentas de uso (insumos como seringas e agulhas), a transmissão de HIV e Hepatite C eram comuns e estavam em alta. Sendo assim, a partir da mobilização das próprias pessoas que usavam drogas, ansiando por melhores condições de saúde, surgiu a primeira Ação de Redução de Danos que promoveu um trabalho onde eram distribuídas seringas e agulhas, ambas esterilizadas e descartáveis, para que as pessoas pudessem fazer usos mais seguros e, portanto, houvesse redução dos riscos e danos associados ao uso de drogas. (Mesquita, 2020).
Contudo, pouco é falado sobre o desafio do programa frente à uma ordem judicial que impediu que os profissionais da RD distribuíssem os insumos para controlar o índice de HIV, forçando-os a buscarem outra alternativa – que foi a difusão do uso de hipoclorito de sódio que auxiliava na desinfecção dos materiais de uso.
Percebam: como a RD pode ser lida, também, como uma lógica de cuidado, não há retrocesso legislativo e/ou ordem judicial que nos tire o direito de exercer um ofício que demanda, sobretudo, amor, semelhante à psicanálise – que é uma cura pela via do amor, do amor de transferência. (Freud, 1912/2009).
Após a presente exposição sobre os aspectos históricos – atravessados pelas ressonâncias dos modelos econômicos, sociais, políticos e culturais – relacionados às construções dos movimentos sociais de Reforma Psiquiátrica, Luta Antimanicomial e Redução de danos, é possível perceber que, antes de qualquer coisa, os seres humanos precisam de espaço para se constituírem. Tal espaço precisa dispor de condições básicas para que as pessoas consigam viver. Além disso, fica evidente que, quanto mais há proibição, mais há violência, reforçando, assim, o movimento de retrocessos que vem acontecendo no campo da saúde pública e mental no Brasil (Cruz, Gonçalves, & Delgado, 2020).
Nesse sentido, pensarmos estratégias que fortaleçam a autonomia e o protagonismo das pessoas se faz necessário, ao mesmo passo em que pautamos e defendemos a Redução de Danos como potente ferramenta de modificação da própria existência.
Podemos concluir, através de todas as questões elencadas neste trabalho, que a proposta do proibicionismo não é falha, visto que alcança seu principal – e verdadeiro – objetivo: o de extermínio de pessoas em condições de maiores vulnerabilidades sociais como, por exemplo, pessoas que usam drogas e pessoas em sofrimento psíquico grave.
Trancar e segregar essas pessoas não é sinônimo de cuidado. Pelo contrário, essa lógica punitivista e aniquiladora de subjetividades limita o acesso das pessoas aos seus direitos, potencializando uma dinâmica de exclusão e sofrimento.
De maneira oposta, a lógica da Redução de Danos vem para trabalhar juntamente com as pessoas que usam drogas, preconizando a garantia de seus direitos civis e, principalmente, sua autonomia. É por conta disso que podemos perceber que os investimentos nas propostas de trabalho que buscam fortalecer a RD, fortalecem, também, as propostas da Reforma Psiquiátrica e Luta Antimanicomial já debatidas nesse artigo, ao considerar a dimensão da saúde como um processo social complexo, acompanhada dos processos de subjetivação pelos quais somos todos atravessados sempre de maneira singular.
Ademais, assim como a Reforma Psiquiátrica, os programas de Redução de Danos também preconizam a utilização de outras estratégias para o cuidado de pessoas que usam álcool e outras drogas, bem como apoiam o desenvolvimento e aprimoramento da autonomia desses sujeitos que também carregam consigo histórias e projetos de vida.
Dessa forma, essa pesquisa nos possibilita enxergar que existe – muito forte – uma relação entre Psicanálise e Redução de Danos no sentido de que, em ambas as ocupações, o trabalho é executado por intermédio da linguagem, do vínculo e da transferência. Esses fenômenos psicanalíticos também são passíveis de observação no campo da RD.
Essa pesquisa abre espaço para discussões no que concerne ao tipo de posicionamento que nós iremos tomar frente à temática do uso de drogas por possibilitar um olhar diferente sobre o assunto: isento de preconceitos e, ao mesmo tempo, realista por afirmar que o uso de drogas se faz presente na humanidade desde há muito e que essa prática não será erradicada. Precisamos lidar com essa realidade e, nada é mais efetivo, no sentido de promover um “não-uso” de droga, do que falar sobre os riscos e danos associados aos usos – seja de qual substância for.
Por fim, a pesquisa sobre essa temática abriu novos caminhos para a compreensão de que a construção social que coloca apenas os pretos, pobres e periféricos como pessoas que usam drogas foi/é bastante cruel, visto que os transformam em alvos fáceis de opressão, repressão, preconceito e as principais vítimas da guerra às drogas/proibicionismo – que, no final das contas, não auxilia na redução de uso propriamente, apenas promove morte e desamparo.
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ABNT — TOSTA , K. G. Emancipação subjetiva no contexto de uso de drogas: da psicanálise à redução de danos. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 3, 2022. Disponível em https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/emancipacao-subjetiva-no-contexto-de-uso-de-drogas-da-psicanalise-a-reducao-de-danos/ . Acesso em __/__/___