Revista CadernoS de PsicologiaS

Entre um SUSpiro e outro

Joana Schenatz Trautwein
(CRP-08/37421)
Psicóloga, antimanicomial, atuando nos serviços da Rede de Atenção Psicossocial como residente de saúde mental. Também é pós-graduanda em Esquizodrama, Esquizoanálise e Análise Institucional pelo Instituto Gregório Baremblitt.
E-mail: joana.st@hotmail.com
#Estilhaços

As cenas aqui descritas são narrativas fictícias de encontros e desencontros na atuação em serviços da Rede de Atenção Psicossocial do SUS. Território em constante disputa: entre forças instituídas, nas novas roupagens de velhos modos de fazer adoecer e morrer; e forças instituintes, que dizem da potência dos movimentos coletivos de produção de vida (em todas as suas formas). Para mim, ficcionar estórias e memórias foi um caminho para dar corpo, ou tirar dele, algumas destas forças e fôrmas que não cessam de nos atravessar – buscando, assim, abrir passagem para outros possíveis. 

Uma mulher entra no consultório do CAPS cambaleando, a passos largos e vagarosos. Senta na cadeira em minha frente, aponta para sua pasta (cheia de laudos, prescrições, exames) e fala: “Trouxe minha vida, não sei se você quer ver”. 

Em um consultório psiquiátrico, um paciente conta que está vendo coisas e pensando em morrer. A Dra. responde que precisará de internamento em um hospital psiquiátrico. Ele diz que não deseja isso. A médica, então, propõe ao familiar a internação involuntária. Ao término da consulta, o paciente sai dali e foge em um ônibus, só aparecendo três semanas depois. 

Era uma noite fria, e após muita luta contra um câncer, um paciente faleceu enquanto dormia. No dia seguinte, a unidade de saúde amanheceu mais devagar e silenciosa. Os profissionais fizeram uma vaquinha para comprar uma coroa de flores e combinaram turnos para poder comparecer ao velório. Por vezes perder alguém do território, a quem acompanhamos a vida toda, é como perder um dos nossos. 

Saí do atendimento e fui direto ao banheiro. Sentei no chão. Dei um longo suspiro. E depois chorei até soluçar. Tinha acabado de atender uma adolescente trazida pelo Conselho Tutelar, e após a escuta a jovem foi levada de volta para a família que a violou. Nem toda articulação, diálogo, denúncia e bate boca conseguiram impedir isso. O que sobrou foi o abraço forte da adolescente e uma troca de olhares marejados enquanto a menina era arrastada até o carro. 

Uma senhora chega ofegante na avaliação de psicologia do CAPS AD. Conta que por ter gastado todo seu dinheiro em bebida, seu filho não dava grana nem mais para o ônibus. Ela brinca que está gostando, assim conhece melhor a cidade, os vizinhos e possíveis paqueras. Conversa vai, conversa vem, ela mostra a prescrição de medicamentos e diz: “Dra., estou tomando tudo, viu? Todos já fizeram (d)efeito, fica tranquila!”.

O CREAS chama uma equipe de saúde mental para fazer uma roda de conversa com as pessoas em situação de rua atendidas no equipamento. O psicólogo, então, faz uma fala sobre o diagnóstico de dependência química e a importância do tratamento em saúde mental. Depois de um longo monólogo, uma pessoa o interrompe e diz “desculpa, dr., mas vocês falam que o CAPS é porta aberta e que temos o direito de ir, mas não é bem assim; pra gente a única porta aberta mesmo é a comunidade terapêutica – a gente tem que trabalhar duro e rezar? sim, mas ao menos por um tempo a gente tem comida e um teto”.

Dois trabalhadores e uma usuária trocam estratégias para driblar a conduta da psiquiatra do serviço. A porta do consultório está fechada e eles falam tão baixo que mais parecem sussurros – quase como se estivessem fazendo algo ilegal.

No consultório 1 do CAPS todas as paredes são brancas, assim como a mesa e a impressora. Os quadros pregados, um tanto empoeirados, também ficaram brancos – desbotaram com o passar do tempo. A única cor que se destacava ficava atrás da cadeira confortável do médico: no alto da parede, havia um novo, colorido e lustroso quadro de um cérebro. Branco, biomédico, parado no tempo… seria esse o quadro que retrata a reforma psiquiátrica hoje? Me incomodei com tal pensamento – que se tornara cotidiano desde o momento que entrei nesta sala pela primeira vez, dois meses antes. Após um longo e pesado dia de acolhimentos nesta sala, um dos mais pesados que já tive, tal pensamento retornou e tomou corpo. 

Olhei o relógio, era quase 18h. Em um rompante, me levei ao quarto da bagunça no segundo piso para buscar alguma decoração para colocar no lugar (neste ponto, qualquer coisa serviria). No fundo do armário em meio às teias de aranha e panfletos sobre dependência química, meia dúzia de obras de arte pintadas por usuários me encontraram. Corri para o consultório 1, trocando o branco-sob-branco pelas pinceladas vivas, coloridas e incompreensíveis daqueles (não tão) novos quadros. Vejo a parede e suspiro, aliviada. Lembro que saí do trabalho com um sorriso que há muito não dava. 

Logo na manhã seguinte, me recordo que atendi Alessandra nesta sala. Ela entrou e observou as paredes. Sentou-se. Em silêncio. Ela nunca havia feito isso antes. Depois de alguns segundos fitando a parede, olhou pra mim e disse: “Acho que eu nunca te contei, mas eu nunca gostei de ser atendida nesse consultório, sabia? Foi aqui que me deram o diagnóstico de bipolaridade, enquanto eu olhava pra um cérebro na parede. Lembro que a Dra. falava, falava, falava e eu só pensava: como será que é o meu cérebro de bipolar? Estranho…ele não tá mais ali… Algo mudou, não é?”. 

Estou com essa pergunta até hoje. Não sei bem o que, nem por quanto tempo, mas gostei de pensar que sim. Algo mudou. 

Em consulta com a psiquiatra no CAPS AD, Alexandre confessa que mentiu para ela no último atendimento – está usando bem mais pinos do que havia admitido. Ele também conta que tem tomado uns goles de clonazepam pra tentar dar uma maneirada, mas isso está fazendo com que fique completamente dopado. A psiquiatra escuta aquilo e decide retomar seu projeto terapêutico e as estratégias de redução de danos que construíram ao longo dos anos. Perto do fim da consulta, ele a interrompe e grita: “DRA.! DRA.! ACABEI DE ME LEMBRAR. TEM A MACONHA QUE POSSO COMPRAR! ELA ME AJUDA A CHEIRAR MENOS!”. Ela dá risada e diz “então pronto, vamos tentar por aí”. Na semana seguinte, ele pede consulta novamente. Não sobrou dinheiro pra maconha, acabou voltando pro clonazepam. 

Uma pessoa chega no postinho pedindo ajuda: quer morrer e sabe como. Sai da consulta com encaminhamento para UPA, indicação de internação e prescrição medicamentosa. Enquanto isso, na sala de espera, a equipe decora as paredes com lindos desenhos de girassóis e frases motivacionais para este setembro amarelo. 

Uma agente comunitária de saúde bate palmas no portão de uma casa. A dona a atende e confessa que não consegue sair de casa há muitos anos, que está pensando besteira e parou de tomar sua fluoxetina. Com a articulação de alguns serviços de saúde, negociação de lá e de cá, me liberaram para atendê-la em domicílio. Lembro que fui andando até sua casa para conhecer melhor aquele lado da vila. Quando cheguei, toquei a campainha e os cachorros latiram minha chegada. A senhora me atendeu com um sorriso acanhado. Permitiu que eu entrasse em sua casa, me levando até sua sala escura. Logo contou como passa dias e noites sentada na ponta daquele sofá ou, como ela chama, no seu cantinho.

Foi neste cantinho que a gente seguiu se encontrando, semana após semana, aos poucos se permitindo adentrar uma na vida da outra. Ela me contou como ao longo dos anos aquela casa passou a ser o seu mundo. E que quando se deu conta, seus filhos já estavam tendo filhos, seus netos já estavam grandes e seus cabelos cada vez mais brancos. Lembro que neste dia foi a primeira vez que ela perguntou se eu queria alguma coisa, como um chá. E assim fomos seguindo, a partir daí, acompanhadas por uma xícara de chá. Com o passar do tempo ela foi me mostrando seus outros cantos: a horta, a cozinha, a bagunça. Neste ponto, as cortinas da sala já estavam bem abertas, iluminando suas fotos de família e seus quadros com orações. Seu cantinho no sofá também mudou – ganhando um acolchoado novinho de crochê. 

Por forças externas, estes encontros chegaram ao fim. É certo dizer que a senhora não passou a frequentar os serviços, os grupos de idosos, ou sequer a igreja – como era a encomenda da família e das instituições de saúde. No entanto, ela permitiu que alguém desconhecido adentrasse em sua casa e trouxesse um tanto do fora para dentro de seu cantinho. Isso, por menor que fosse, moveu mundos. Nós duas sabíamos disso.

Como citar esse texto

ABNT — TRAUTWEIN, J. S. Entre um suspiro e outro. CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/entre-um-suspiro-e-outro/. Acesso em: __/__/___.

APA — Trautwein, J. S. (2024). Entre um suspiro e outro. CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/entre-um-suspiro-e-outro/