Resumo: A violência doméstica é um problema global que afeta aproximadamente 736 milhões de mulheres em todo o mundo, de acordo com a Organização Mundial da Saúde (OMS). A partir da Lei nº 11.340, sancionada em 2006, é possível observar uma demarcação histórico-política no que se refere ao desenvolvimento de estratégias governamentais para o fomento de políticas públicas e projetos que visem o suporte, acolhimento e acesso aos serviços da rede de apoio psicossocial em casos de violência doméstica e familiar. O Núcleo Maria da Penha (NUMAPE) emerge como um Projeto de Extensão vinculado à Secretaria da Ciência, Tecnologia e Ensino Superior (SETI) do estado do Paraná, com o objetivo de oferecer assistência jurídica e psicológica gratuitas a mulheres de baixa renda, vítimas de violência doméstica. Este relato de experiência busca, a partir dos atendimentos psicológicos realizados no NUMAPE, escrever a trajetória de uma das vozes silenciadas das inúmeras “Marias Brasileiras”.
Palavras-chave: gênero; violência de gênero; luta antimanicomial.
AMONG VOICES OF BRAZILIAN MARIAS: EXPERIENCE REPORT FROM THE MARIA DA PENHA CENTER (NUMAPE)
Abstract: Domestic violence is a global problem that affects approximately 736 million women worldwide, according to the World Health Organization (WHO). Law No. 11.340, passed in 2006, marks a historical and political milestone in the development of government strategies to promote public policies and projects aimed at providing support, shelter and access to psychosocial support services in cases of domestic and family violence. The Maria da Penha Center (NUMAPE) emerged as an Extension Project linked to the Paraná State Department of Science, Technology and Higher Education (SETI), with the aim of offering free legal and psychological assistance to low-income women who are victims of domestic violence. This experience report seeks, from the psychological assistance provided at NUMAPE, to write the story of one of the silenced voices of the countless “Brazilian Marias”.
Keywords: gender; gender violence; anti-asylum fight.
ENTRE VOCES DE MARÍAS BRASILEÑAS: INFORME DE EXPERIENCIA DEL CENTRO MARIA DA PENHA (NUMAPE)
Resumen: La violencia doméstica es un problema global que afecta aproximadamente a 736 millones de mujeres en todo el mundo, según la Organización Mundial de la Salud (OMS). Desde la aprobación de la Ley nº 11.340, en 2006, es posible observar una demarcación histórico-política en lo que respecta al desarrollo de estrategias gubernamentales para promover políticas públicas y proyectos destinados a proporcionar apoyo, acogida y acceso a los servicios de la red de apoyo psicosocial en casos de violencia doméstica y familiar. El Centro Maria da Penha (NUMAPE) surgió como un proyecto de extensión vinculado al Departamento de Ciencia, Tecnología y Enseñanza Superior (SETI) del Estado de Paraná, con el objetivo de ofrecer asistencia jurídica y psicológica gratuita a mujeres de bajos ingresos víctimas de violencia doméstica. Este relato de experiencia pretende escribir la historia de una de las voces silenciadas de las innumerables “Marías brasileñas”, a partir de la asistencia psicológica prestada en NUMAPE.
Palabras-clave: género; violencia de género; lucha contra el asilo.
A minha bisavó foi escrava,
a minha avó foi empregada doméstica,
a minha mãe foi empregada doméstica.
A minha mãe me disse que preferiria me ver morta
do que empregada doméstica.
Eu sou doméstica.
Créo, Domésticas
O Núcleo Maria da Penha (NUMAPE) é um Projeto de Extensão vinculado à Secretaria de Ciência, Tecnologia e Ensino Superior do Estado do Paraná (SETI). O Núcleo presta atendimento jurídico e psicológico gratuito às mulheres em vulnerabilidade socioeconômica, com o objetivo de facilitar o processo de desvinculação de seus agressores, com a realização do divórcio ou reconhecimento e dissolução de união estável, bem como a regularização de visitas e guarda dos filhos, alimentos e partilha de bens, decorrentes da separação. O projeto propicia uma nova perspectiva de vida às mulheres vítimas de violência doméstica, devolvendo-lhes o controle sobre a situação e sobre a sua integridade física e psicológica, resgatando a dignidade que lhes é inerente e que, por um lapso temporal, foi-lhes tomada. Desse modo, o projeto busca reempossar a mulher da autonomia que lhe é própria, tornando-se, assim, protagonista de sua própria história, escolha e decisões.
O NUMAPE desenvolve trabalhos de conscientização com o objetivo de esclarecer às mulheres os tipos de violência existentes – isto é, física, verbal, psicológica, moral e patrimonial – e o caminho para emanciparem-se. Portanto, o projeto desempenha uma função social, intentando pôr a termo à uma cruel herança de desigualdade de gênero e degradação da figura feminina, construída gradativamente ao longo da história, fruto da estrutura discursiva do patriarcado e do colonialismo.
O projeto atua em duas frentes principais: prevenção e intervenção. A primeira frente se dá a partir de campanhas de conscientização com a articulação da rede, como escolas, Unidades Básicas de Saúde (UBS), universidades, mídias eletrônicas e digitais, redes sociais, centros de convivência e comunitários, delegacias, etc. A segunda frente, sendo o eixo da intervenção, se dá a partir do atendimento direto à usuária, tanto no atendimento psicológico, quanto no atendimento jurídico.
Enquanto Projeto de Extensão, o NUMAPE possui a atribuição de realizar devolutivas sociais e comunitárias, participando de eventos na comunidade científica e em campanhas de conscientização com o apoio da rede setorial da região. Desse modo, o projeto participa ativamente de eventos como: Encontro Anual de Extensão Universitária (EAEX), Seminário de Extensão Universitária da Região Sul (SEURS) e Semana Integrada de Ensino Pesquisa e Extensão (SIEPE), por exemplo. É necessário, então, que o papel da extensão se efetive em sociedade, a partir da produção de conhecimento acerca das principais problemáticas existentes em relação a violência contra a mulher e seus determinantes, assim como as formas de combate à violação de direitos. Este é, portanto, um dos papéis centrais das Instituições de Ensino Superior, que devem atuar, além da formação para o mercado de trabalho, nos âmbitos da pesquisa e da extensão, articulando a produção do conhecimento com as problemáticas e demandas da sociedade contemporânea.
Esse relato de experiência1 surge, portanto, para corresponder aos objetivos do projeto, ou seja, a transmissão para a comunidade científica das práticas executadas no NUMAPE. O recorte metodológico da presente pesquisa se dá no NUMAPE de Guarapuava, Paraná, o qual deu início as suas atividades em janeiro de 2018. O Projeto firmou, desde 2018, uma parceria de cooperação com a Secretaria de Políticas Públicas para Mulheres e passou a compor a Rede de Enfrentamento à Violência Contra a Mulher, junto das demais instituições, como: Polícia Civil e Militar; Delegacia da Mulher; Instituto Médico Legal (IML); Unidades Básicas de Saúde (UBS); Hospitais; Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS); Centro de Referência de Assistência Social (CRAS); Centro de Atenção Psicossocial (CAPS); Conselho Tutelar; Casa Abrigo, destinada para mulheres em risco de morte; Defensoria Pública; Ministério Público; Núcleo de Estudos dos Direitos e Defesa da Infância e Juventude (NEDDIJ) e Patronato – UNICENTRO; Faculdades; Coletivos e Movimentos de Mulheres.
Em relação aos dados quantitativos do campo de estudo, em um recorte temporal, estabelecidos em um intervalo entre setembro de 2021 a julho de 2023, foram realizados 1511 atendimentos psicológicos no NUMAPE, destes, sendo: 196 presencial, 258 por ligação telefônica, 919 via WhatApp, 110 por chamada de vídeo e 31 na modalidade outros (correspondendo, por exemplo, ofícios, e-mail, atendimentos indiretos por ligação setorial na rede, etc.). Estes números representam a potência dos atendimentos psicológicos e registram sua importância no que se refere ao papel da Psicologia nesse contexto.
A partir dos atendimentos psicológicos, é possível levantar inúmeras possibilidades de estudos dentro desse campo, como por exemplo: o papel das posições hierárquicas de poder dentro do sistema simbólico-social; as posições de poder e gênero; os marcadores sociais de raça dentro dessa problemática; a perpetuação da lógica manicomial; a violência do paradigma biomédico; o ciclo de violência e o papel das políticas públicas na ruptura desse modelo de relação; além de compreender o modo de produção de subjetividades nesse contexto (Brandino, 2017; Kronbauer e Meneghel, 2005).
A violência doméstica é um problema global que afeta aproximadamente 736 milhões de mulheres em todo o mundo, de acordo com dados da Organização Mundial da Saúde (OMS), publicados em 2021, causando danos físicos, psicológicos e sociais de extrema complexidade. No Brasil, estima-se que 33,4% das mulheres sofrem violência física, psicológica, sexual, moral e/ou patrimonial (Brasil, 2002; Brasil, 2005;). A partir da Lei nº 11.340, sancionada em 2006, é possível observar uma demarcação histórico-política no que se refere ao desenvolvimento de estratégias governamentais para o fomento de políticas públicas e projetos que visem o suporte, acolhimento e acesso aos serviços da rede de apoio psicossocial em casos de violência doméstica e familiar (Brasil, 2006; Kronbauer e Meneghel, 2005).
O NUMAPE busca, sobretudo, promover a conscientização sobre os diferentes tipos de violência de gênero e auxiliar as mulheres na busca por medidas legais que garantam sua segurança e autonomia. O núcleo visa, nesse sentido, amparar politicamente essas mulheres, auxiliando-as a recuperar o controle sobre suas vidas e a quebrar o ciclo de abuso, contribuindo assim para a redução da desigualdade de gênero e para uma sociedade mais justa e igualitária.
Entre vozes das “Marias Brasileiras”
Compreender o fenômeno da violência contra a mulher, implica em investigar o modo de produção de subjetividades a partir da configuração dos papéis de gênero que se estabeleceram na sociedade ao longo dos processos históricos e culturais, naturalizados a partir dos discursos epistemológicos que desenham as relações hierárquicas de poder nas relações de gênero, impactando diretamente na estruturação psíquica das mulheres, atravessando os marcadores sociais para além do gênero, como por exemplo: idade, etnia, fatores socioeconômicos, religião, etc. (Moura, 2009; Passos, 2017).
Este relato de experiência objetiva, a partir dos atendimentos psicológicos realizados no Núcleo Maria da Penha (NUMAPE), realizar uma exposição de um dos casos atendidos pela Psicologia das inúmeras “Marias Brasileiras”, uma vez que a singularidade do presente caso ilustra um fenômeno universal que se reverbera no cotidiano das mulheres brasileiras e que se repetem diariamente em diferentes formas e contextos. As “Marias Brasileiras”, portanto, são todas as mulheres afetadas diretamente pela violência simbólica e estrutural, e que são silenciadas e oprimidas no sistema patriarcal e colonialista, que visa anular a presença desses corpos em sociedade. Nesta exposição, entendemos que as “Marias Brasileiras” clamam diariamente por um pedido de socorro, e que nessas ocasiões, pedem para serem ouvidas, acolhidas e amparadas por uma rede de apoio social e afetiva, isto é, protegidas pelas políticas públicas. Neste relato de experiência, buscamos dar voz à uma das vozes das inúmeras “Marias Brasileiras” que vivem em território brasileiro.
A partir do presente relato de experiência, buscamos compreender de que forma o protagonismo da psicologia atua para o rompimento do ciclo da violência, assim como destacar a importância das políticas públicas nesse contexto. Observamos, nesse caso, que a psicologia, quando introduzida nos aparelhos estatais a partir das políticas públicas, potencializam seu papel de transformação social, uma vez que a partir desse encontro simbólico-afetivo, a dor e a angústia da usuária são acolhidas a partir da sua integridade e respeito ao modo de como sua história subjetiva se construiu, compreendendo, sobretudo, que sua subjetividade se torna um efeito da produção social das relações discursivas de poder. Nesse sentido, a psicologia permite a subversão de uma relação vertical para uma relação horizontal do poder, em que a mulher pode, a partir disso, se colocar como protagonista de sua própria história, rompendo com o ciclo de violência e reconhecendo, a seu modo, as relações de poder que estavam intrínsecas ao seu modo de vida (Passos, 2017).
Relato de experiência de uma das “Marias Brasileiras”
O presente relato de experiência ilustra um caso de violência doméstica, retratando um acompanhamento psicológico realizado dentro do NUMAPE no período de julho de 2022 a agosto de 2023, permeado por inúmeros elementos que atravessam o “ser mulher” na sociedade contemporânea, como por exemplo: o fundamentalismo religioso, a violência do paradigma biomédico, a perpetuação da lógica manicomial, a violência de gênero e de poder e a violência do corpo pela lógica de propriedade oriundo do sistema monogâmico na lógica do capital (Moura, 2009; Passos, 2017).
Maria2, 55 anos, iniciou os atendimentos no NUMAPE em julho de 2022, encaminhada pelo Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM), a partir do amparo de uma vizinha, a qual acionou a rede de apoio após perceber que Maria estava submetida a uma situação de violência. Casada há mais de 20 anos, Maria percebe alguns sinais de violência doméstica e psicológica nos últimos 10 anos de casamento, como agressão verbal, abuso de poder diante às suas decisões e o abuso de autoridade do agressor em relação ao seu corpo. Maria desenvolve, nesse intervalo de tempo, um conjunto de sintomas psicológicos que foram se acentuando com o passar dos anos, como graves crises de ansiedade, síndrome do pânico, alucinação, delírio e redução de suas capacidades cognitivas e motoras, como a dificuldade de locomoção e redução da audição e visão.
Maria revela nos atendimentos a presença imperativa da religião, uma vez que o marido se reconhecia, na ocasião, como pastor em uma igreja evangélica. No entanto, por baixo dos véus da igreja, Maria relata em seu discurso que o marido apresentava uma compulsão sexual, a qual cedia ao desejo do marido, para manter o matrimônio seguro sob os olhos da moral, considerando que a obediência ao marido era uma condição naturalizada a partir dos anos que conviveram juntos. Ao relatar os sinais de adoecimento psicológico ao marido, ele apenas dizia em tom jocoso que Maria estava “enlouquecendo”, apontando a oração como o melhor remédio para as suas angústias diante à vida. Os sintomas, no entanto, foram se acentuando cada vez mais, e nesse ponto, Maria já estava acompanhada de diagnósticos psiquiátricos e de prescrições médicas. Os medicamentos e os diagnósticos tornaram-se na época, assim, sua fiel companhia, dentro de um contexto que anulava gradativamente sua existência e seu modo de ser no mundo. Aos poucos, Maria foi adoecendo cada vez mais, perdendo sua visão e sua audição, encolhendo-se e fechando-se dentro de si mesma: era seu corpo tentando decifrar um pedido de socorro.
A psicologia surge, nesse contexto, como possibilidade de resgatar Maria, ali perdida nas inúmeras formas de violência que a acometiam. Em seus primeiros atendimentos, seus olhos fundos denunciavam seu recuo diante à vida. Mas para os ouvidos sensíveis da psicóloga que a acompanhava, a angústia surgia como um pedido de ajuda. Maria demonstrava nos primeiros atendimentos uma fisionomia encolhida e amedrontada sob olhar do outro. Segurava o peito com os punhos cerrados como quem estivesse prestes a rasgar uma ferida que nunca cicatrizava. Protegia seu corpo de uma possível ameaça, em um estado de alerta constante: Maria demonstrava um desamparo primordial diante à psicóloga.
A psicóloga, porém, oferecia as mãos afetuosamente à Maria, a qual foi, aos poucos, se permitindo se enlaçar nesse vínculo, dando abertura para que a partir de sua fala, pudesse cicatrizar essas feridas incuráveis. Gradativamente, Maria foi se permitindo construir um laço ideativo-projetivo com a psicóloga, a qual construiu recursos psicológicos necessários para se desenlaçar do agressor. O enlace projetivo no setting de atendimento psicológico com outra mulher, fez com que Maria pudesse dar novos destinos às suas angústias.
Durante os atendimentos psicológicos, Maria relata se sentir totalmente desrespeitada pelo agressor, uma vez que este não a amava e não a ouvia em nenhum momento. As noites de Maria eram alternadas entre a mais gritante insônia e a mais profunda sedação devido ao excesso de medicamentos prescritos pelo psiquiatra. Quando a insônia prevalecia, Maria observava quieta seu marido assistindo pornografia. Quando os medicamentos a dopavam, fazendo-a dormir, Maria acordava no dia seguinte com dores no corpo, machucada e com sangue ao redor de seu corpo.
“Vamos fazer sexo que você esquece tudo”, dizia o agressor com muita frequência, e Maria se ajoelhava para rezar, aclamando à Deus para que “o marido mudasse”. Quando não para rezar, era para servir ao marido, quando este a ditava a partir de seus comandos autoritários a posição a qual Maria deveria ocupar. Em um dos atendimentos, Maria relata, com os olhos cheio de lágrimas e o corpo se contorcendo de dor e angústia: “Eu tenho muita insônia, estou perdendo a visão, a audição, meu coração fica acelerado o tempo todo, parece que eu vou morrer, parece que vou ter um infarto a qualquer momento, é uma angústia que não passa, eu tenho vontade de rasgar o meu peito para arrancar o meu coração fora e deixar de sentir o que eu sinto… Ele não me escuta, ele fala que eu não rezo o suficiente, que eu não tenho fé, e ele só me pede pra fazer sexo, é só isso que ele sabe fazer.”
Durante os últimos 4 anos, Maria foi submetida a quatro internações compulsórias com um diagnóstico de esquizofrenia paranoide, a qual foi amarrada algumas vezes devido suas crises intensas de pânico. Em uma das vezes, foge do hospital, e é encontrada horas mais tarde desorientada, perdida e sozinha na rodoviária da cidade. Vale destacar que suas internações ocorriam sob uma ordem médica, quando Maria apresentava sintomas graves de comportamento, como: ideação suicida, delírios, alucinações, agressividade e impulsividade. No entanto, em algumas ocasiões, Maria foi internada, também sob ordem médica, em situações em que ela se automedicava em excesso e ficava com oscilação de pressão, taquicardia e icterícia devido aos efeitos medicamentosos. Sua internação ocorria em Hospitais Gerais da cidade. Em uma das vezes, chega a permanecer internada em um período de 2 meses.
Nos atendimentos psicológicos, o discurso de Maria era envolto por uma culpabilização excessiva de si mesma, a partir de ideações suicidas e relatos de memórias de sua história marcada por feridas de uma repetição de seu lugar no mundo diante à opressão estrutural da violência de gênero. Em um dos atendimentos, Maria diz: “Dra. Será que não é melhor eu acabar com tudo isso? Com a minha vida? Não é justo eu sofrer o que eu sofro… Não é justo! Eu não entendo o porquê os homens fazem isso comigo… Como se não bastasse o meu pai… quando eu tinha 6 anos, agora o meu marido. Uma vez meu pai veio na minha cama e me molestou, me lembro dele pegando muito em mim e depois disso houve o ato sexual… eu contava pra minha mãe, mas ela dizia pra eu deixar isso quieto, pois ele logo esqueceria e pararia com essas atitudes.”
Maria se recorda de uma lembrança de um abuso de seu pai aos 12 anos de idade, seguida de uma menstruação. Relata correr perto de um rio, se ajoelha e se vê rezando e implorando a Deus para que a levasse: “Deus, me leve… estou sangrando, o que mais falta pra eu morrer? Por que eu preciso passar por isso? Não quero mais ter que viver com meu pai perto de mim…”
Após a intervenção da rede de apoio e a medida protetiva instaurada pela Lei Maria da Penha de Maria, segue-se uma ordem de ocorrências na vida de Maria, listadas cronologicamente a seguir: I) ocorre a separação de Maria com o agressor a partir da intervenção da medida protetiva; II) após o julgamento nas audiências de ação penal, o agressor é preso sob o cumprimento da pena de 6 a 8 meses; e III) após o cumprimento da pena, o agressor emigra para Bolívia.
Maria diz que nunca teve coragem de contar aos filhos (34 e 36 anos) sobre sua situação, pois sentia-se constrangida e com vergonha do que estava acontecendo e não queria “causar mais transtornos”. Após a sua medida protetiva, mesmo com o amparo da lei, Maria relata que os filhos encaravam a situação com muita desconfiança, desacreditando que o pai seria capaz de ter feito o que fez com Maria nesses anos de casamento.
Gradativamente, após 1 ano de acompanhamento psicológico, Maria retoma sua autonomia, reconstrói sua identidade e se reposiciona diante ao mundo e sua existência. Em um dos atendimentos, convida a psicóloga à tomar café em sua casa, orgulhosa de si mesmo, pois reconhece sua evolução. As profundas feridas e marcas simbólicas perdurarão por toda sua vida, mas a presença da psicologia em sua vida possibilitou a cicatrização e sublimação dessas memórias e lembranças de uma vida cruel e sombria. Nos últimos atendimentos, Maria diz à psicóloga que gostaria de confessar algo, em que de imediato ergue levemente sua saia para que mostrasse suas pernas, e envergonhada, diz: “Eu me depilei”. Maria diz, além disso, se olhar no espelho com mais frequência e com mais compaixão. Maria se torna, com a ajuda de outra e de várias mulheres, aquilo que tudo um dia tentaram tirar dela: o seu ser mulher.
Sua verbalização desse ato à psicóloga, quase como uma confissão, reflete um lugar de apropriação de seu corpo, de sua feminilidade e de seu lugar de pertencimento ao mundo. “Eu me depilei”, diz Maria, ou seja, eu removi resíduos do meu corpo que me impediam de entrar em contato com um lugar mais íntimo e profundo de mim mesma. Maria demonstra, a partir desse ato simbólico e profundo, que aquele corpo, embora marcado, cicatrizado, violentado e cheio de feridas, agora existe. Embora todas as feridas, renasce o ser mulher naquele corpo.
O presente relato buscou ilustrar a importância da Psicologia na ruptura da violência e no resgate do protagonismo da mulher, considerando que a violência de gênero permeia a sociedade em diferentes culturas e contextos, refletindo-se em papéis de gênero estereotipados e traduzidas nas relações hierárquicas de poder. É fundamental, nesse sentido, investigar como essas dinâmicas impactam diariamente na estruturação psíquica das mulheres, afetando sua saúde mental e bem-estar (Adeodato V.G.et al, 2005).
A violência doméstica é uma forma de violação dos direitos humanos que afeta mulheres de todas as classes sociais, etnias, idade e orientações sexuais. Ela pode se manifestar de diversas formas, incluindo agressão física, psicológica, sexual e patrimonial. As mulheres em situação de violência doméstica enfrentam um sofrimento profundo e multifacetado. Elas podem sentir medo, impotência, humilhação, vergonha e culpa. Esses sentimentos podem levar a uma perda gradual da autoestima e da identidade, dificultando o rompimento do ciclo da violência. O agressor, por sua vez, frequentemente utiliza a manipulação e o controle para isolar a mulher de amigos, familiares e apoio social. Isso contribui para aumentar sua vulnerabilidade e dependência do agressor. (Adeodato V.G.et al, 2005).
Um dos elementos fundamentais da psicologia nesse cenário consiste em validar a dor e a angústia das mulheres, possibilitando que elas reconheçam a legitimidade de seus sentimentos e experiências. Esse processo de validação desempenha um papel crucial ao fazer com que a vítima se sinta compreendida e respaldada em suas adversidades, fortalecendo sua rede emocional e reforçando os vínculos entre as redes de apoio. Em outras palavras, isso implica na integração das políticas públicas com a comunidade e os círculos de relacionamento das usuárias (Bandeira, 2014; Monteiro, 2014).
Através dos atendimentos psicológicos, abre-se espaço para que a usuária reconheça a legitimidade de sua dor após anos de abuso físico e emocional. A validação de seus sentimentos e vivências proporcionam a base necessária para iniciar uma jornada de autodescoberta e fortalecimento. Ao sentir-se compreendida e apoiada, as usuárias ganham confiança para estabelecer limites saudáveis e buscar recursos para romper com o ciclo de violência (Bandeira, 2014; Monteiro, 2014).
No presente relato de experiência, é possível observar diversas marcas discursivas de sistema estruturais de opressão, como a violência do paradigma biomédico e a perpetuação da lógica manicomial, por exemplo. Nesse sentido, é impossível desarticular a luta contra a violência doméstica e familiar com a luta antimanicomial, uma vez que a luta antimanicomial se coloca contra a qualquer forma de opressão. Essa luta envolve a resistência contra a supremacia de um discurso dominante de controle, ou seja, busca desmantelar a forma como a violência é gerada de forma sorrateira no âmbito do cotidiano do sistema capitalista neoliberal.
A produção de identidades sob o discurso capitalista representa um espaço onde a violência é gerada, operando de forma automática na tentativa de criar um grupo de indivíduos considerados “funcionais” e “produtivos”. Nessa perspectiva, o papel de um indivíduo na sociedade é determinado pela sua capacidade de ser funcional, e a luta antimanicomial surge como uma resposta a essa mentalidade, oferecendo a oportunidade de uma quebra no discurso, com o propósito de estabelecer uma nova abordagem à saúde mental: uma abordagem humanizada e acolhedora (Passos, 2017).
Nesse horizonte de pensamento, retomamos a citação do Manifesto de Bauru, se apresentando como um documento importante na história da luta antimanicomial no Brasil, redigido em 1987 e posteriormente sua reedição em 2017, durante o Encontro Nacional de Trabalhadores da Saúde Mental em Bauru, São Paulo, em que expressa os princípios e objetivos do movimento antimanicomial no país. O principal objetivo da “Carta de Bauru” na luta antimanicomial foi reafirmar o compromisso do movimento com a reforma psiquiátrica no Brasil. A reforma psiquiátrica é uma iniciativa que visa transformar o sistema de saúde mental, promovendo a desinstitucionalização e a promoção de tratamentos baseados na comunidade, com um enfoque nos direitos humanos e na dignidade das pessoas.
A “Carta de Bauru” defende a ideia de que as pessoas com transtornos mentais não devem ser submetidas a tratamentos desumanos e degradantes em hospitais psiquiátricos, mas sim devem ser tratadas em serviços de saúde mental comunitários, onde possam receber apoio, cuidado e tratamento adequados, bem como ser reintegradas na sociedade. Este documento desempenhou um papel fundamental na promoção dos princípios da luta antimanicomial no Brasil, incluindo a desinstitucionalização, o tratamento baseado na comunidade e a defesa dos direitos humanos das pessoas com transtornos mentais. Ela foi um marco na afirmação da reforma psiquiátrica no país e na busca por um sistema de saúde mental mais humano e inclusivo.
Nossa atitude marca uma ruptura. Ao recusarmos o papel de agente da exclusão e da violência institucionalizadas, que desrespeitam os mínimos direitos da pessoa humana, inauguramos um novo compromisso. Temos claro que não basta racionalizar e modernizar os serviços nos quais trabalhamos. O Estado que gerencia tais serviços é o mesmo que impõe e sustenta os mecanismos de exploração e de produção social da loucura e da violência. O compromisso estabelecido pela luta antimanicomial impõe uma aliança com o movimento popular e a classe trabalhadora organizada. O manicômio é expressão de uma estrutura, presente nos diversos mecanismos de opressão desse tipo de sociedade. A opressão nas fábricas, nas instituições de adolescentes, nos cárceres, a discriminação contra negros, homossexuais, índios, mulheres. (Manifesto de Bauru, 2017, grifo nosso).
Os resultados obtidos pelo NUMAPE são expressivos e impactantes. O projeto tem contribuído para a transformação de vidas, proporcionando às mulheres vítimas de violência doméstica uma nova perspectiva de vida. Através do suporte jurídico e psicológico oferecido, as beneficiárias recuperam o controle sobre suas vidas e sua integridade física e psicológica. Além disso, a conscientização promovida pelo projeto tem sido eficaz na prevenção da violência, empoderando as mulheres para romperem com ciclos de abuso e degradação. O NUMAPE representa um importante passo na luta contra a desigualdade de gênero e na busca por uma sociedade mais justa e igualitária. Este relato de experiência destaca a importância do trabalho realizado pelo NUMAPE na Universidade Estadual do Centro-Oeste (UNICENTRO), demonstrando como a extensão universitária pode desempenhar um papel significativo na transformação social e na promoção dos direitos das mulheres.
[1] Cabe destacar que o autor atua dentro do NUMAPE como Professor Orientador de Psicologia, ou seja, auxilia na discussão e acompanhamento dos casos clínicos executados pela Psicóloga responsável pelos atendimentos propriamente ditos. Além disso, o autor realiza estudos e aprofundamento técnico-científico, produção de artigos e trabalhos em eventos na comunidade acadêmica e orientação geral dentro do campo da teoria e prática da psicologia. O presente caso foi fundamentado a partir dos documentos internos do Núcleo no período de Julho de 2022 a Agosto de 2023, além de conversas com a estagiária de psicologia que acompanhava o caso juntamente com a psicóloga, a qual deixou de compor o quadro da instituição no período da escrita deste relato de experiência.
[2] Nome fictício para assegurar a identidade da usuária. “Maria” corresponde às Marias da Lei Maria da Penha.
Bandeira, L. M. J. (2014). Violência de gênero: a construção de um campo teórico e de investigação. Revista Sociedade e Estado, v. 29, n. 2, maio/ago.
Brandino, G. (2017). Dez anos da Lei Maria da Penha: enfrentamento da violência psicológica ainda é um grande desafio. Secretaria do Estado da Saúde. Acessado em 09 de outubro de 2023.
Brasil. (2002). Ministério da Saúde. Violência intrafamiliar: orientações para prática em serviço. Brasília: Ministério da Saúde.
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Kronbauer, J. F. D.; Meneghel, S. N. (2005). Perfil da violência de gênero perpetrada por companheiro. Rev. Saúde Pública, São Paulo, v. 39, n.5, p. 695-701.
Manifesto De Bauru. (2017). II Congresso Nacional de Trabalhadores em Saúde Mental. Revista insurgência: revista de direitos e movimentos sociais. Brasília. Ano 3. V.3. n.2. 2017. Disponível em: < https://periodicos.unb.br/index.php/insurgencia/article/download/19775/18235/33979>
Monteiro, A. C. (2014). Autores de violência doméstica e familiar: um estudo sobre um grupo de reflexão no Paranoá/DF. Dissertação (Mestrado) – Departamento de Sociologia, Universidade de Brasília, Brasília.
Moura, L. B. A. et al. (2009). Violências contra mulheres por parceiro íntimo em área urbana economicamente vulnerável, Brasília, DF. Rev Saúde Pública, São Paulo, v. 46, n.6, p. 944-953.
Passos, R.G. (2017) “De escravas a cuidadoras”: invisibilidade e subalternidade das mulheres negras na política de saúde mental brasileira. O Social em Questão, Rio de Janeiro, n. 38, mai./ago.
ABNT — LIMA, G, A. Entre vozes das “Marias Brasileiras”: relato de experiência do Núcleo Maria da Penha (NUMAPE). CadernoS de PsicologiaS, n. 4. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/entre-vozes-das-marias-brasileiras-relato-de-experiencia-do-nucleo-maria-da-penha-numape/
APA — Lima, G. A. Entre vozes das “Marias Brasileiras”: relato de experiência do Núcleo Maria da Penha (NUMAPE). CadernoS de PsicologiaS, 4. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/entre-vozes-das-marias-brasileiras-relato-de-experiencia-do-nucleo-maria-da-penha-numape/ . Acesso em: __/__/___.