#Relatos_de_Experiências
Resumo: Este relato de experiência descreve o trabalho de uma psicóloga residente junto de seu preceptor em uma Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP) de um hospital público do sul do Brasil. Baseado em fundamentos da psicanálise, o objetivo foi oferecer acolhimento e suporte emocional tanto ao pacientes quanto aos seus familiares, especialmente sua mãe, construindo um espaço relacional por meio da escuta e da criação de vínculos. Através da transferência, o texto evidencia que todos os atores envolvidos no caso foram impactados pelos encontros. A experiência destaca a importância do papel do psicólogo hospitalar e como essas relações não apenas afetam o paciente, mas também moldam a identidade do profissional. Ao final, o relato reflete sobre a importância do acolhimento, para além do princípio do SUS, no processo terapêutico, ressaltando que nenhum encontro clínico deixa o terapeuta ou o paciente imunes às suas influências.
Palavras-chave: transferência; psicanálise; psicologia hospitalar.
LISTENING AND CARE IN THE HOSPITAL: AN EXPERIENCE REPORT IN THE PICU
Abstract: This experience report describes the work of a resident psychologist alongside her supervisor in a Pediatric Intensive Care Unit (PICU) of a public hospital in southern Brazil. Based on psychoanalytic principles, the objective was to offer emotional support and care to both patients and their families, especially their mothers, by building a relational space through listening and creating bonds. Through transference, the text demonstrates that all actors involved in the case were impacted by the encounters. The experience highlights the importance of the role of the hospital psychologist and how these relationships not only affect the patient but also shape the identity of the professional. In conclusion, the report reflects on the importance of providing care, beyond the SUS principle, in the therapeutic process, emphasizing that no clinical encounter leaves either the therapist or the patient unaffected by its influence.
Keywords: transference; psychoanalysis; hospital psychology.
ESCUCHA Y ACOGIMIENTO EN EL HOSPITAL: UN INFORME DE EXPERIENCIA EN LA UCIP
Resumen: Este informe de experiencia describe el trabajo de una psicóloga residente junto a su supervisor en una Unidad de Cuidados Intensivos Pediátricos (UCIP) de un hospital público en el sur de Brasil. Basado en principios psicoanalíticos, el objetivo fue ofrecer apoyo emocional y acogimiento tanto a los pacientes como a sus familiares, especialmente a las madres, construyendo un espacio relacional a través de la escucha y la creación de vínculos. A través de la transferencia, el texto demuestra que todos los actores involucrados en el caso fueron impactados por los encuentros. La experiencia destaca la importancia del papel del psicólogo hospitalario y cómo estas relaciones no solo afectan al paciente, sino que también moldean la identidad del profesional. Al final, el informe reflexiona sobre la importancia del acogimiento, más allá del principio del SUS, en el proceso terapéutico, subrayando que ningún encuentro clínico deja al terapeuta o al paciente inmune a sus influencias.
Palabras-clave: transferencia; psicoanálisis; psicología hospitalaria.
“A psicanálise nunca estará no hospital de um modo definitivo, o que a convoca a um retorno sobre a experiência” (Brunhari & Darriba, 2019, p. 01). Partindo dessa citação, a escrita deste relato possui como objetivo organizar e dar sentido a um intenso acontecimento ocorrido no cotidiano dos primeiros meses da prática da Residência Multiprofissional em Psicologia em uma Unidade de Terapia Intensiva Pediátrica (UTIP). Buscando, assim, promover a reflexão, transformação e também o compartilhamento do vivido em aprendizado. Destaca-se que o cenário em que ocorreu o caso que, nas páginas que seguem será exposto, situa-se dentro de um hospital terciário do Sistema Único de Saúde (SUS), 100% público, o qual pode ser compreendido como uma instituição especializada “ou com especialidades, destinado a prestar assistência a clientes em outras especialidades médicas além das básicas” (Brasil, 1987, p. 14), de grande porte no sul do Brasil.
Nesse contexto, a intervenção psicológica se dá de diversas maneiras, especialmente em formato de acolhimento, apoio ou orientação. O objetivo central é avaliar o estado emocional do paciente e seus familiares, visando esclarecer as dúvidas quanto ao diagnóstico e hospitalização, acalentando as angústias e ansiedades que venham a surgir no processo (Tonetto & Gomes, 2007). A equipe também pode solicitar a colaboração do psicólogo nas situações em que apresenta alguma dificuldade de manejo do caso, logo o psicólogo será mediador na comunicação, por exemplo (Reuse & Siqueira, 2019). Nota-se que o suporte psicológico no hospital é imprescindível, uma vez que o paciente e seus acompanhantes vivenciam uma situação de fragilidade da dinâmica familiar, sendo a escuta e acolhimento nesses momentos cruciais para tornar a internação menos dolorosa. Tendo em vista que a psicologia trabalha para além do cuidado orgânico, através do aporte teórico da psicanálise é possível realizar a escuta desse sujeito. Sujeito o qual, na teoria psicanalítica, é inconsciente.
O sujeito da psicanálise é o sujeito do desejo, delineado por Freud através da noção de inconsciente, marcado e movido pela falta, distinto do ser biológico e do sujeito da consciência filosófica. Esse sujeito se constitui pela inserção em uma ordem simbólica que o antecede, atravessado pela linguagem, tomado pelo desejo de um Outro e mediado por um terceiro […]. Assim, temos o sujeito à mercê de um Outro. (Torezan & Aguiar, 2011, p. 525-526).
E para que seja possível realizar esse trabalho de escuta, é necessário que seja estabelecida a transferência entre o terapeuta e o paciente. Destaca-se que a transferência – conceito psicanalítico – refere-se ao vínculo e aliança de trabalho formada entre o psicólogo e o paciente em questão. Sendo que, a partir dessa vinculação, será possível fortalecer o diálogo e, assim, realizar o trabalho psicológico proposto. Logo, o vínculo promove a inter-relação durante o atendimento, possibilitando que aspectos da queixa inicial ou que surjam no decorrer do processo do atendimento sejam tratados de forma efetiva e conjunta, visando o alívio do sofrimento (Costa e Costa et al., 2020).
O termo transferência designa em psicanálise o processo pelo qual os desejos inconscientes se atualizam sobre determinados objetos no quadro de um certo tipo de relação estabelecida com eles e, eminentemente, no quadro da relação analítica. Trata-se aqui de uma repetição de protótipos infantis, vivida com um sentimento de atualidade acentuada. É a transferência no tratamento que os psicanalistas chamam, na maior parte das vezes, de transferência, sem qualquer outro qualitativo. “A transferência é classicamente reconhecida como terreno em que se dá a problemática de um tratamento psicanalítico, pois, são a sua instalação, as suas modalidades, a sua interpretação e a sua resolução que caracterizam este” (Laplanche & Pontalis, 1982/2004, p. 514).
Dito isso, na próxima seção será apresentado o relato de caso, as intervenções e os (e)feitos gerados a partir de seu acontecimento. E, por fim, na sequência são feitas algumas considerações finais acerca de toda a experiência proporcionada pelos atendimentos realizados.
Para relatar o caso em questão, será utilizada a temática e a figura de personagens infantis, dando destaque para o Hulk. Uma vez que o paciente o adorava e, assim como o herói, era alguém muito forte. O pequeno grande Hulk aqui descrito, nasceu com uma má formação congênita no esôfago, tendo, desse modo, os diagnósticos médicos de atresia de esôfago, divertículo traqueal e fístula traqueoesofágica.
Atresia esofágica é um defeito congênito no qual o esôfago se estreita ou tem uma extremidade fechada. A maioria dos recém-nascidos com esta patologia apresenta também uma conexão anormal entre o esôfago e a traqueia, denominada fístula traqueoesofágica. O esôfago é um órgão comprido semelhante a um tubo que conecta a boca ao estômago. Na atresia esofágica, o esôfago é estreitado ou se desenvolve como duas seções separadas que não se conectam (atresia). Devido ao defeito, alimentos e líquidos são retardados ou impedidos de ir do esôfago ao estômago. A traqueia é a principal via aérea para os pulmões. Normalmente, o esôfago e a traqueia são separados. No entanto, na fístula traqueoesofágica, uma conexão anormal (fístula) se forma entre o esôfago e a traqueia. Devido ao defeito, alimentos e líquidos entram na traqueia e nos pulmões. Atresia esofágica e fístula traqueoesofágica costumam ocorrer simultaneamente (Belkind-Gerson, 2023, s.p.).
Divertículo traqueal ou cisto paratraqueal é uma afecção benigna caracterizada por invaginações única ou múltiplas na parede da traqueia. Tem origem, na maioria dos casos, na parede posterior da traqueia, onde os aneis cartilaginosos são incompletos. É uma condição rara, com poucos casos relatados na literatura mundial (Carvalho, Lima, & Vilela, 2017, p. 86).
Desse modo, Hulk iniciou seu acompanhamento de saúde logo após o nascimento. No entanto, os atendimentos e intervenções que serão descritos neste trabalho se referem aos últimos 04 meses da última internação do paciente e sua família, quando ele tinha 04 anos. Pontua-se que o foco da escrita se dará ao trabalho psicológico desenvolvido com Hulk e seus familiares, especialmente com sua mãe, a qual aqui será referenciada como Sarabi, haja vista que a genitora era uma mãe bastante sensível e protetora, tal qual a leoa da animação do filme O Rei Leão. Durante o período mencionado, foram realizados 26 encontros, sendo os 04 primeiros separados cronologicamente por 02 meses dos demais em virtude de orientações médicas de retorno para casa antes de uma grande abordagem cirúrgica. Assim, alguns atendimentos foram apenas com o paciente, outros com ele e sua genitora, alguns em sua maior parte apenas com ela e outros, de modo pontual, com o pai, o Homem-Aranha. Afinal, assim como o personagem, o genitor não media esforços para cuidar de sua família.
Conforme mencionado, os fios que tecerão a escrita a partir de agora serão oriundos dos atendimentos com Sarabi. É válido pontuar que, de acordo com a equipe, tanto ela quanto seu filho e marido apresentavam bastante resistência com atendimentos psicológicos em decorrência de experiências e opiniões anteriores. Acredita-se, então, que o bom vínculo gerado só se efetivou, pois, no primeiro contato psicóloga-paciente-mãe o atendimento iniciou-se sem a apresentação formal da profissão da profissional. Tal ato permitiu que Sarabi não fizesse nenhuma associação prévia e conseguisse, assim, falar sobre si e sobre a internação atual do filho. Ao final dessa anamnese, quando informada a profissão, a mãe verbalizou: “nossa, você é psicóloga? não pareceu… Eu não costumo gostar de psicólogas” (sic).
Tendo em vista que ainda nos tempos atuais o estigma com a saúde mental e com a categoria psi – psicólogos e psiquiatras – estão presentes, no contexto hospitalar é bastante corriqueiro se ouvir falas como a dita por Sarabi, afinal essa instituição é constituída e marcada pela lógica médica centrada e, partindo das análises de Foucault (1972), a visão estigmatizante em relação à loucura e saúde mental no ocidente iniciou-se por volta do século XVIII e permeia até hoje. Naquela época, houve uma mudança epistemológica que reconheceu a loucura como doença mental a partir dos registros psiquiátricos e suas formas de tratamento baseadas no isolamento e na segregação. Desde então, alimenta-se um pensamento, que hoje tenta-se desconstruir, que apenas os “loucos” precisam de auxílio em demandas emocionais.
Nesse sentido, a decisão de não mencionar a categoria logo de início, adotada pela residente, faz parte do que muitos autores chamam de identidade profissional do psicólogo (Dimenstein, 2000; Figueiredo, 1993; Mazer & Melo-Silva, 2010), que se constrói na forma de exercer o trabalho. O exercício profissional possibilita a expressão de parte da personalidade do terapeuta, suas aspirações, ideais, ambições e ética, os quais são compostos de forma única e coletiva (Mazer & Melo-Silva, 2010). Afinal, sabendo que Sarabi, Hulk e Homem-Aranha apresentavam resistência com a categoria, mencioná-la apenas ao fim do atendimento foi uma estratégia de aposta adotada para evitar que ideias pré-concebidas impedissem a tentativa de construir a aliança terapêutica.
Dessa forma, a identidade profissional vai ao encontro da possibilidade da estruturação do vínculo de trabalho, dando espaço para a transferência acontecer. Destaca-se que sem vínculo não é possível realizar o trabalho psicológico e para a sua formação, é necessário que o paciente sinta-se confortável, acolhido e compreendido. Ou seja, a forma de ser psicólogo pode possibilitar ou não, de acordo com Mazer e Melo-Silva (2010), o surgimento e crescimento de sentimentos de acolhimento e compreensão por parte do paciente. Logo, no caso em questão, mediante uma escuta inicial marcada pela não identificação da profissão em um primeiro momento e do uso do humor para com o Hulk – o menino não queria conversar e como intervenção a psicóloga brincou de roubar o seu nariz e quando questionada se lhe devolveria, informou que sim se ele ao menos dissesse seu nome para ela – a construção da transferência enquanto vínculo se tornou possível.
É necessário pontuar que tendo como base a obra freudiana (Freud, 1912/1980), a transferência pode apresentar-se de três modos: como sugestão, repetição e/ou resistência. A transferência como sugestão pode ser compreendida pelo fato da própria situação terapêutica em si produzir um poder de sugestão, já que o paciente possui uma tendência a ouvir seu terapeuta. Já a repetição, diz respeito a projeção de conflitos inconscientes atualizados na/para a figura do analista; e a resistência pode ser percebida através de um fechamento do inconsciente pela fala, na qual o paciente resiste ao tratamento e suas intervenções (Fernandes, 2006).
A transferência na teoria freudiana é inerente ao tratamento, apresenta-se como repetição de padrões estereotipados de relação, que são constituídos a partir das primeiras relações infantis. Aparece no momento de resistência ao tratamento, justamente por este ter tocado em questões cruciais do sujeito. Estas se referem a conteúdos que, por sua natureza, provocam um duelo de forças. Se, por um lado, eles devem vir à tona para que o sintoma se desloque, por outro, há todo um esforço do sujeito em mantê-lo encapsulado. Há a dor de não saber e a dor de saber. Todo tratamento opera nesta luta entre o saber e o não saber (Fernandes, 2006, p. 124).
A partir dessa estruturação relacional, Sarabi nos atendimentos explanou questões ligadas à maternidade e seus significados para sua vida e expôs o quanto desde o nascimento de Hulk o exercício de seus outros papeis sociais – mulher, esposa, trabalhadora, etc. – ficaram em segundo plano. Com isso, a genitora pouco fazia uso de sua rede de apoio e acabava por se sobrecarregar, pois “sempre penso que é melhor eu fazer todas as coisas, do meu jeito” (sic). Sabendo que no atendimento psicológico quem direciona o tratamento no que diz respeito à demanda é o paciente, a queixa em relação ao medo e angústia com o quadro de saúde de Hulk fora expandida e deu lugar para o olhar sobre como Sarabi estava vivendo sua vida de forma geral. Logo, a singularidade da escuta psicanalítica no hospital se dá ao passo que o profissional se propõe a escutar esse sujeito a partir de uma compreensão inconsciente do que se fala e como se consegue lidar com as modificações postas pela instituição hospitalar: frequência dos atendimentos, demanda inversa – o que levou o paciente à instituição foi algo de ordem orgânica, assim o psi oferece seu trabalho – e tempo de escuta (Elias, 2008).
Além da particularidade da escuta pelo viés analítico, o psicólogo enquanto profissional da saúde deve-se atentar a sua atuação ligada e comprometida aos princípios do SUS dentro do hospital. Ou seja, cabe ao psicólogo também auxiliar na organização e articulação prática das demandas que o paciente e sua família necessitam; não impondo, mas contribuindo para a visualização do que pode ser feito visando o melhor para o quadro e a saúde de todos (Conselho Federal de Psicologia [CFP], 2019). Assim, a partir dos atendimentos com Sarabi, foi possível trabalhar questões sobre a necessidade de controle situacional da família e consequente sobrecarga, a importância do descanso para sua saúde e para o exercício do papel de cuidadora e a preciosidade de exercer também outros papéis sociais além da maternidade. Destaca-se que foi possível visualizar diversos efeitos do trabalho terapêutico, pois com o passar do tempo de internação, Sarabi conseguiu se dar conta que precisava também dar espaço para o Homem-Aranha cuidar do filho no leito e, para que ela então, pudesse descansar e cuidar de sua saúde física indo a consultas de rotina e saúde mental ao rever sua família e amigas, por exemplo. Um momento bastante marcante dos atendimentos foi logo após o dia das mães, haja vista que Sarabi passou o domingo todo em contato com sua família e relatou para a psicóloga o quanto foi bom e como não se sentiu culpada de aproveitar esse momento. Esse foi um passo muito significativo no caso, afinal Sarabi no começo não saia nem por um minuto do lado do filho e conseguiu, nesse dia, permitir-se vivenciar o cuidado de sua rede de apoio para consigo.
Tais movimentos foram essenciais para que Sarabi fosse criando mais recursos para enfrentar as difíceis situações que estavam por vir. Afinal, ela conseguiu se reposicionar enquanto protagonista de sua história e isso foi bastante importante para o desfecho do caso. Infelizmente, após a cirurgia a qual Hulk foi submetido, inúmeras complicações ocorreram e o paciente veio a falecer. Esse fato desestabilizou muito Sarabi e o Homem-Aranha, pois Hulk era o único filho do casal e ele havia sido muito desejado por ambos. No entanto, no último atendimento – no dia em que a morte ocorreu – a genitora expressou muita gratidão à psicóloga e disse “obrigada por me atender sem parecer ser um atendimento, acredito que foi por causa das nossas conversas que ouço de várias pessoas que estou lidando com tudo isso de um jeito calmo” (sic). Essa fala retoma a ideia já esplanada: o quanto a identidade profissional de cada psicólogo é muito singular e, junto da construção coletiva de trabalho, vai possibilitar ou não o vínculo e transferência terapêutica (Dimenstein, 2000; Figueiredo, 1993; Mazer & Melo-Silva, 2010). Ou seja, é necessário exercer um trabalho ético, tomando como condução clínica um método que possui valor científico, basear-se no Código de Ética Profissional do Psicólogo e nos princípios do SUS sem esquecer, no entanto, do jeito singular que cada um tem enquanto pessoa e o quanto a personalidade do psicólogo afeta o trabalho e não pode ser desconsiderada.
Há alguns dias atrás, em homenagem ao dia do psicólogo – 27 de agosto – uma postagem em uma rede social gerou inquietações. A mensagem era a seguinte: “os pacientes que atendo são pessoas que eu também escolho dividir parte do tempo da minha vida. O encontro com cada um deles é uma memória na minha existência. Nenhum terapeuta sai ileso do encontro com seu paciente” (Lima, 2024). E tendo como base que na rotina hospitalar trabalha-se com a lógica da demanda inversa – nós oferecemos nossa escuta – a parte da postagem na qual é mencionado a escolha de dividir parte do tempo, fez bastante sentido. Fez bastante sentido ao passo que nesse caso, a partir da transferência e vínculo de trabalho criado, ambas as partes – psicóloga e paciente – escolhiam ter encontros. Afinal, muitas vezes o atendimento se iniciava por iniciativa de Sarabi nos corredores, por exemplo. E enquanto postura e exercício profissional, a psicóloga residente do caso, junto com o seu preceptor, compreendeu que seria importante propiciar de duas a três visitas semanais para aquela família, especialmente para a genitora. Construindo, assim, um espaço relacional.
O Espaço Relacional se constitui dentro de uma perspectiva da relação que as pessoas podem ter entre os diversos pontos do espaço absoluto, reunidos por vários meios, como a internet; ou a ocupação de outros pontos do espaço que são construídos pelo sentido, e a necessidade das relações humanas. O Espaço Relacional é o espaço das emoções, das partilhas, do espaço-tempo vivido e das interações (COSTA, 2014) […] O espaço relacional, na perspectiva da psicoterapia, teria como construto principal a relação psicoterapêutica, como o indicativo para a ocupação de um espaço e para torná-lo psicoterapêutico (CFP, 2022, p. 35).
Sabe-se que o leito, o hall de entrada de uma unidade de internação ou até mesmo a copa não são locais acolhedores por si só. Dessa forma, possibilitar o acolhimento através de uma construção relacional marcada pela presença e implicação de escuta, é transformador para ambas as partes que ali estão. Afinal, a constituição da identidade profissional é formada também por esses encontros proporcionados pela psicologia enquanto prática e (e)feito. E o caso do Hulk mostra o quanto essa categoria profissional no contexto hospitalar se faz necessária e potente. Foi possível visualizar isso ao passo que a equipe como um todo – médicos, enfermeiros, assistente social e técnicos – valorizavam a presença da profissão para além dos momentos de crise/agudização do caso e pelo reconhecimento e associações feitas por Sarabi em suas falas.
E por mencionar falas, retomo aqui o último diálogo com a genitora, pois foi nele que ela expressou sua gratidão pelos atendimentos – que não pareceram atendimentos – e, neste instante, a clássica e clichê frase de Carl Jung (c2024) “conheça todas as teorias, domine todas as técnicas, mas ao tocar uma alma humana, seja apenas outra alma humana”, foi internalizada na profissional que atendia o caso. Afinal, atender alguém que se sabe que não gosta de atendimentos psicológicos exige resiliência para (tentar) realizar o trabalho e, nesses casos, penso que ainda mais humanidade da nossa parte enquanto suporte de escuta e presença. Para além, nesse último diálogo a pauta do amor surgiu. Pois, “a dor do luto é proporcional à intensidade do amor vivido na relação que foi rompida pela morte, mas também é por meio desse amor que conseguiremos nos reconstruir” (Arantes, 2016, p. 105).
Ao passo que, em meio aos prantos do óbito de Hulk, o espaço tomou-se de gratidão e amor, foi possível exercer uma reflexão final de tudo isso junto à Sarabi e ao Homem-Aranha: o quanto, infelizmente, vivenciar a morte faz com que seja refletida a forma com que se tem vivido a vida. Pontua-se que, a partir de Arantes (2016), na morte, para além da saudade que fica, a falta do olhar do outro sobre nos gera desamparo. Uma vez que “precisamos do outro como referência de quem somos. Se a pessoa que eu amo não existe mais, como posso ser quem sou?” (Arantes, 2016, p. 106). Dito isso, é possível afirmar que nenhum dos envolvidos no caso saiu do mesmo modo que chegou, especialmente esses psicólogos que aqui escrevem.
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ABNT — Escuta e acolhimento no hospital: um relato de experiência na UTIP. CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/escuta-e-acolhimento-no-hospital-um-relato-de-experiencia-na-utip/. Acesso em: __/__/___.
APA — Pereira, L. K. de A., & Portela, M. V. Z. (2024). Escuta e acolhimento no hospital: um relato de experiência na UTIP. CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/escuta-e-acolhimento-no-hospital-um-relato-de-experiencia-na-utip/