Resumo: A extensão universitária desempenha um papel crucial na integração do ensino, da pesquisa e da extensão, facilitando uma valiosa interação com a comunidade e enriquecendo a formação prática de profissionais capacitados. O presente estudo tem por objetivo apresentar as experiências vivenciadas por acadêmicas do último período do curso de Psicologia, na realização do Projeto de Extensão Universitária denominado Plantão Psicológico, ofertando atendimentos na modalidade de aconselhamento psicológico. Os atendimentos foram oferecidos ao público geral. Destacaram-se dois casos que abordam as temáticas de negligência familiar e cuidados hipossuficientes, os quais foram relatados e discutidos neste estudo. Pode-se compreender a contribuição significativa da escuta empática e do acolhimento para os atendidos, bem como a prática se configurou como uma oportunidade efetiva de conhecimento e formação pessoal e profissional para as acadêmicas, em especial, a construção de uma escuta sensível no contato com diversas demandas.
Palavras-chave: Aconselhamento Psicológico. Negligência. Cuidados Hipossuficientes.
LISTENING AND WELCOME PROMOTING SIGNIFICANT CHANGES: EXPERIENCE REPORT
Abstract: University extension plays a crucial role in the integration of teaching, research and extension, facilitating valuable interaction with the community and enriching the practical formation of qualified professionals. The present study aims to present the experiences lived by academics in the last period of the Psychology course, in carrying out the University Extension Project called Psychological Duty, offering services in the form of psychological counseling. The services were offered to the general public. Two cases were highlighted that address the themes of family neglect and insufficient care, which were reported and discussed in this study. This one helped to understood the significant contribution of empathetic listening and welcoming to those listened, as well as the practice being configured as an effective opportunity for acquiring knowledge, as well as personal and professional experience for academics, in particular, the construction of a sensitive listening in contact with diverse demands.
Keywords: Psychological Counseling. Negligence. Hypo-sufficient Care.
ESCUCHA Y ACOGIDA PROMOVIENDO CAMBIOS SIGNIFICATIVOS: REPORTE DE EXPERIENCIA
Resumen: La extensión universitaria juega un papel crucial en la integración de la docencia, la investigación y la extensión, facilitando una valiosa interacción con la comunidad y enriqueciendo la formación práctica de profesionales calificados. El presente estudio tiene como objetivo presentar las experiencias vividas por académicos en el último período de la carrera de Psicología, en la realización del Proyecto de Extensión Universitaria denominado Deber Psicológico, ofreciendo servicios en la modalidad de asesoría psicológica. Los servicios fueron ofrecidos al público en general. Se destacaron dos casos que abordan los temas de negligencia familiar y atención insuficiente, que fueron relatados y discutidos en este estudio. Se puede comprender el aporte significativo de la escucha empática y la acogida a quienes son atendidos, así como que la práctica se configure como una efectiva oportunidad de conocimiento y formación personal y profesional de los académicos, en particular, la construcción de una escucha sensible en contacto con las diversas demandas.
Palabras-clave: Asesoramiento psicológico. Negligencia. Atención hiposuficiente.
A prática da extensão universitária constitui um dos fundamentos essenciais na formação do estudante de graduação, aproximando a universidade da comunidade local, fazendo valer seu compromisso social. A extensão pode ser considerada vital para a formação profissional, já que permite aos estudantes levar para a prática aquilo que aprendem em sala de aula, indo além da teoria, estabelecendo contato com as demandas da comunidade e promovendo saúde para a população. Por sua vez, a Psicologia ao acessar as necessidades da sociedade, pode abordar questões sociais complexas e promover o debate acima das mesmas (Hennington, 2005).
Uma das áreas que a Psicologia se debruça em seus debates, é sobre direitos da criança e do adolescente. Sabe-se que a família desempenha um papel fundamental na responsabilidade pelos cuidados destes. Todavia, também é nesse contexto em que ocorrem violações, omissões e negligências, sendo a última um dos tipos mais frequentes. Com isso, discute-se as interpretações e critérios para que seja caracterizada uma situação de negligência, pois há casos em que essa acontece não por falta de interesse dos cuidadores, mas sim por falta de condições seja dos indivíduos e/ou socioeconômicas (Fonseca; Ferreira, 2019).
O presente trabalho trata-se de um relato de experiência que tem como intuito descrever a prática da realização de um projeto de extensão universitária, denominado Plantão Psicológico, oferecido na grade curricular do último ano do curso de Psicologia. O projeto foi realizado oferecendo atendimentos na modalidade de aconselhamento psicológico para a população.
Essa modalidade constitui-se em uma experiência cujo propósito é auxiliar no planejamento, na tomada de decisões, na gestão da rotina sob pressão e no desenvolvimento pessoal. Caracteriza-se como uma relação de apoio que envolve uma pessoa buscando assistência e outra disposta e qualificada para ajudar. A ação de aconselhar consiste em orientar e criar as condições para que a pessoa tome suas próprias decisões e escolha suas opções (Scorsolini-Comin, 2014).
O objetivo do projeto se constitui em ofertar atendimentos para a comunidade, proporcionando um espaço de escuta e acolhimento, levando em consideração cada sujeito frente às situações subjetivas de seus casos, com comprometimento para atender somente o que estiver ao alcance prático e científico, realizando encaminhamentos quando necessários. Se justifica considerando a necessidade de inserção da Psicologia nos diversos contextos, possibilitando ao público mais vulnerável o acesso a mesma, cumprindo assim o compromisso social da profissão.
Dessa forma, os atendimentos foram realizados na Delegacia da Mulher, localizada no município de União da Vitória1, no Estado do Paraná, sendo devidamente supervisionadas por docentes psicólogos da instituição de ensino Ugv – Centro Universitário, instituição pela qual as acadêmicas cursam a graduação. O público alvo dos atendimentos não foram apenas mulheres vítimas de violência, visto que foi ofertado atendimento a qualquer público que o buscasse nesse local ou que fosse encaminhado.
Os atendimentos foram realizados de forma individual e presencial, compondo a quantidade de um a três atendimentos, sem tempo estipulado, variando a depender da demanda. Caso houvesse a necessidade de mais atendimentos, orientava-se a busca por psicoterapia junto ao Serviço-Escola da própria universidade, ao CAPS I – Centro de Atenção Psicossocial ou a UBS – Unidade Básica de Saúde mais próxima à residência do atendido, sendo esses os serviços que compõem a rede de atenção à saúde mental no município.
As singularidades dos cuidados parentais de crianças e adolescentes pode ser considerado como um dos assuntos mais presentes em múltiplos cenários no ambiente desse aconselhar. A criança e o adolescente possuem todos os direitos fundamentais de qualquer outra pessoa. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é uma legislação brasileira que foi promulgada com o objetivo de garantir e proteger os direitos das crianças e adolescentes em todo o país. Em seu art. 4º, o ECA estabelece que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à criança e ao adolescente” (ECA, 2022).
A responsabilidade pelos cuidados da criança e do adolescente é primordialmente da família. Há casos em que esse cuidado passa para terceiros. Todavia, é a família que possui o dever e a função de cuidar e prover as necessidades básicas para com estes. A prática do cuidado e proteção familiar exerce importante papel no desenvolvimento integral da criança e do adolescente, uma vez que a qualidade desse cuidado influencia e reflete diretamente em um desenvolvimento saudável. Entretanto, nem sempre a família é um espaço efetivo de cuidado e proteção, pois muitas vezes é nela que esses direitos são violados (Fonseca; Ferreira, 2019).
As singularidades dos cuidados parentais de crianças e adolescentes pode ser considerado como um dos assuntos mais presentes em múltiplos cenários no ambiente desse aconselhar. A criança e o adolescente possuem todos os direitos fundamentais de qualquer outra pessoa. O Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) é uma legislação brasileira que foi promulgada com o objetivo de garantir e proteger os direitos das crianças e adolescentes em todo o país. Em seu art. 4º, o ECA estabelece que “é dever da família, da comunidade, da sociedade em geral e do poder público assegurar, com absoluta prioridade, a efetivação dos direitos referentes à criança e ao adolescente” (ECA, 2022).
A responsabilidade pelos cuidados da criança e do adolescente é primordialmente da família. Há casos em que esse cuidado passa para terceiros. Todavia, é a família que possui o dever e a função de cuidar e prover as necessidades básicas para com estes. A prática do cuidado e proteção familiar exerce importante papel no desenvolvimento integral da criança e do adolescente, uma vez que a qualidade desse cuidado influencia e reflete diretamente em um desenvolvimento saudável. Entretanto, nem sempre a família é um espaço efetivo de cuidado e proteção, pois muitas vezes é nela que esses direitos são violados (Fonseca; Ferreira, 2019).
O ECA (2022) em suas diretrizes também estipula em seu art. 5º que: “nenhuma criança ou adolescente será objeto de qualquer forma de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão, punido qualquer atentado, por ação ou omissão, aos seus direitos fundamentais”. Porém, há espaço a interpretações distintas sobre o viés dos significados tratados como negligência. A respeito do campo das interpretações, adentra-se as condições inerentes aos formatos de enfrentamento, considerando a gama de discussões entre negligência2 e cuidados parentais hipossuficientes3, posto a confusão existente no momento de tomadas de decisão sobre os casos entendidos como de negligência e casos de cuidados hipossuficientes.
Nessas implicadas argumentações Fonseca e Ferreira (2019) esmiuçam os conceitos de negligência e cuidados hipossuficientes, como também as interferências da cultura na produção de cuidado. O que se dialoga com a negligência, posto em questão mais do que um se abster da prestação de necessidades básicas, afeto e responsabilidade perante a criança e o adolescente, provoca-nos a racionalizar o fato de que algumas condições e recursos são inexistentes na realidade familiar dos supostos negligentes.
Portanto, afirma-se que ao colocar em avaliação situações de negligência seria de relevância três elementos, sendo a circunstância de cuidado, os atributos de cuidado e os danos que essas falhas podem vir a causar no desenvolvimento da criança e adolescente. Intercede-se ainda que há ocorrências em que são constituídos as circunstância de cuidado, mas são faltantes na realidade de tal família condições básicas como as socioeconômicas, cognitivas, educacionais e até mesmo emocionais, desse modo, existe o desejo da prestação de cuidados, mas por falta de recursos esse cuidado se encontra à deriva (Fonseca; Ferreira, 2019).
O atenuado fio que passa a negligência para cuidados parentais hipossuficientes se endereça às limitações da família em sua função de cuidado. Diante das recorrentes deficiências e dificuldades de acesso aos serviços públicos sofridas pelas famílias, estas adaptam-se à sua realidade de recursos mínimos ou inexistentes, em evidência avessa às exigências impostas pela sociedade. Em consequência das misérias e da falta de meios para alcançar recursos, os cuidados parentais hipossuficientes são aqueles onde há incapacidade no atendimento das necessidades básicas, assim como também no desconhecimento sobre questões relacionadas aos direitos da criança e adolescente, estabelecendo, desse modo, cuidados a partir de experiências pessoais e das raízes culturais da sociedade (Fonseca; Ferreira, 2019).
Em suma, a negligência parental pode ser entendida como a omissão no cuidado quando há existência de recursos protetivos, se refere ao não cumprimento das necessidades básicas, abrangendo a ausência de cuidado, carinho e comprometimento com a criança e o adolescente. Para diferenciar a negligência de cuidado hipossuficiente, necessita-se avaliar e diferenciar se a família abandonou os cuidados da criança, ou se a família não possui as condições suficientes para prover esses cuidados. Sendo assim, cuidados hipossuficientes ocorrem quando uma família, devido às suas situações desfavoráveis, carece de recursos para fornecer os cuidados necessários, sejam eles de natureza financeira, intelectual, social, educacional ou emocional, e, como resultado, restringem ou não estimulam o desenvolvimento das crianças e adolescentes sob sua responsabilidade (Fonseca; Ferreira, 2019).
Durante a realização dos atendimentos do Plantão Psicológico, houve o contato com diferentes demandas, entre elas a violência contra a mulher, fato este principalmente por se tratar da realização dos mesmos nas dependências de uma Delegacia da Mulher. Todavia, os atendimentos foram destinados ao público geral, possibilitando o contato com demandas diferentes da exposta.
A seguir evidencia-se e relata-se o atendimento de um adolescente, sob a ótica da abordagem psicanalítica e uma mulher, a partir do viés da Gestalt-terapia, que entre as diversas demandas, destacam-se por contemplar o tema da negligência familiar e cuidados hipossuficientes, qual é de interesse da investigação, como também possuem contextos endereçados a atuação da psicologia perante a esse campo.
Atravessamentos deste caso de negligência ao escopo cultural e político discutido através da psicanálise, que dispõe da capacidade de ressignificação do sujeito, inserido as questões sociais e singulares. Mesmo que a prática da clínica clássica possua ressalvas quanto ao atendimento breve, existem vértices que retomam a história, a política e o sujeito, e desse modo, a colocam em circunstâncias sociais, possibilitando sua aplicação nesse contexto (Rosário, 2015).
Sendo assim, expõe que um adolescente chegou ao plantão a partir de uma orientação de seu professor. Durante o atendimento apresentou-se pouco comunicativo, pouco expressivo e com dificuldades em expor como se sentia. Com intervenções voltadas a fazer com que o mesmo compreendesse que o espaço do acolhimento psicológico é um local de escuta empática, seguro e sigiloso, como destaca Scorsolini-Comin (2014).
Assim, relatou que mora sozinho a alguns meses porque sua mãe havia o expulsado de casa, sendo sua única saída a locação de um espaço, esclarecendo que não possui irmãos e seu pai é falecido – mas não colocou-se a discorrer sobre o assunto. Também disse que os familiares não são próximos o suficiente para o receber em suas casas. A sua condição financeira para suprir as despesas vêm justamente da pensão que recebe pelo falecimento de seu pai e assim, parcialmente, o adolescente mantém suas necessidades básicas supridas.
Nas implicações da escuta, acolhimento e manejos sobre essas questões foi visível a coerência para seguimento do tratamento na clínica em psicoterapia, de modo a investigar minuciosamente essas dores. Pois bem enfatiza Freud (1930, p. 315) “talvez devêssemos nos contentar em afirmar que aquilo que passou pode ficar conservado na vida anímica e não precisa, necessariamente ser destruído”. Caso que não foi investigado a fundo no acolhimento psicológico, devido ao curto tempo, o qual não se tornaria acessível para as elaborações do atendido.
Em suas queixas o adolescente expunha que sentia-se só em casa. Relatou também como essa falta de suporte materno o atrapalhava em suas relações e em competições referentes ao esporte de Karatê, o qual o adolescente pratica há cerca de cinco anos e tem apreço pelo esporte. É a partir do Karatê que este disse criar vínculos de amizades seguras e de confiança, as quais por muitas situações acabavam se perdendo pelo desânimo em ir aos treinos, desânimo citado pelo adolescente como decorrência dos conflitos com sua mãe. Sobre as motivações de sua mãe em não o querer morando com ela, demonstrou nunca ter entendido, mas destacou que esta tem o hábito de discutir e de ser agressiva verbalmente.
Durante os três atendimentos foram realizadas intervenções intencionadas a manifestar ao adolescente seus direitos estabelecidos no ECA e também foram feitos questionamentos em relação a como este sente-se diante das negativas da mãe em aceitá-lo em sua casa. Atendendo as demandas junto a imersão dos determinantes culturais quais contaminam a realidade do atendido, visualizando nesse escopo a contenção de sua singularidade, a qual revela seus desejos e o insere ao meio (Rosário, 2015).
Ao finalizar os três atendimentos propostos pelo plantão psicológico, apontou-se a importância de um quarto atendimento focado em transmitir orientações sobre a alternativa de denúncia dessa mãe negligente, junto aos órgãos de direitos da criança e do adolescente. Porém, devido a insegurança do atendido em relação a reação que sua mãe poderia ter perante a denúncia, solicitou-se a possibilidade de conversar com esta sobre as formas que ela o tratava. Dada a impossibilidade do contato com a genitora, foi contatado o Conselho Tutelar e a Vara da Infância e Juventude, Família e Anexos, estabelecidos como órgãos de direitos da criança e do adolescente no município, a fim de torná-los cientes das negligências sofridas pelo adolescente atendido. Em contato, informaram a existência de um processo jurídico em prol do adolescente e classificado como negligência familiar.
Ao que cabe elucidar sobre o contato com os órgãos de direitos da criança e do adolescente, este ocorreu de modo a assegurar o que prevê o Código de Ética Profissional do Psicólogo em seus princípios fundamentais: “o psicólogo trabalhará visando promover a saúde e a qualidade de vida das pessoas e das coletividades e contribuirá para a eliminação de quaisquer formas de negligência, discriminação, exploração, violência, crueldade e opressão (CFP, 2005). Sob orientação do supervisor, foi comunicado à Vara da Infância e Juventude, Família e Anexos sobre a existência de sofrimento psicológico e a necessidade de um apoio das políticas públicas para o encaminhamento à psicoterapia, pois a menoridade do adolescente prejudicava a iniciativa, bem como, as demais demandas não pertenciam às competências do que abrange o plantão psicológico.
Assim, cabe destacar e enlaçar ao que já foi descrito como negligência familiar. Correlacionando-a com o caso relatado, considerando o abandono dos cuidados básicos, afetivos, de segurança, intelectual e, considerando ainda, que essa mãe ainda se desresponsabiliza de seu filho adolescente. Os atendimentos do plantão psicológico possuem intenção pontual, o que foi colocado ao adolescente, que até mesmo após alguns meses da finalização dos atendimentos nos procurou e relatou sua melhora durante as competições, mas, essa informação ainda é distante da real relevância de um processo de psicoterapia para que suas questões referentes à falta de cuidados sejam abordadas. Para Carraro (2015, p. 116) a adolescência é um período conturbado e bombardeado com novas situações constantes, novas formas de enxergar e se colocar para si e para a sociedade, condições que exigem atenção de adultos capazes de acolher e orientar. Essa função cabe aos pais ou a quem exerce esse cuidado.
A lacuna propiciada pela ausência da mãe do atendido, tendo em vista também o falecimento do pai, priva-o de desenvolver-se enquanto um sujeito que sente, vive e expressa-se ante ao meio. Possivelmente, há influência na forma que esta mãe mantêm a comunicação com o filho, expressando-se agressivamente, como este mesmo relatou (Carraro, 2015). Por fim, pode-se compreender que além das negligências praticadas, o adolescente também sofre violência psicológica, podendo ser danosa para o desenvolvimento, para relacionamentos e ainda causa efeitos prejudiciais na condição física e mental de curto, médio e longo prazo (Abranches; Assis, 2011).
A natureza deste próximo relato foi experienciada pela perspectiva da Gestalt-Terapia, outra abordagem da Psicologia. Nesse sentido, reconhece-se a Gestalt-Terapia enquanto clínica ampliada, à medida que nos demanda “um modo de se pensar a intervenção em todo e em qualquer lugar aonde existem relações humanas fragilizadas” (Belmino, 2020, p. 169), sendo não só capazes de ouvir e acolher as angústias e vulnerabilidades emergidas pelo cliente, mas também de dar lugar às infinitas nuances em que o sofrimento se dispõe. A partir desse campo relacional cocriado, manifesto na relação terapêutica, permite então ao terapeuta vivenciar em conjunto esse sofrimento e diante disso, encontrar meios de ampará-lo, enfrentá-lo e atravessá-lo (Belmino, 2020).
Partindo dessa perspectiva, o sujeito a ser citado no presente relato de experiência diz respeito a uma mulher entre 30 e 35 anos de idade. No primeiro atendimento demonstrou-se emocionada, chorando demasiadamente. Quando questionada sobre os motivos que a trouxeram até o local, relatou que estava muito nervosa pois havia perdido a guarda de seu filho, sendo alegado que a mesma não possuía condições de saúde mental para prestar os devidos cuidados ao infante, pelo fato de apresentar um quadro de depressão. Porém, relata estar em processo de tratamento. A procura pelo atendimento na Delegacia da Mulher se deu com o intuito de conseguir alguma orientação a respeito de seus direitos legais, pois não tinha nenhum conhecimento sobre como funcionava o processo de guarda e apenas queria seu filho junto de si novamente.
Dessa forma, foi perguntado para a atendida quais eram as suas dúvidas e angústias, reiterando que aquele espaço era seguro e sigiloso. Expôs então que tem vivenciado situações de estranhamento para com seu marido e em seu relato, está presente aspectos caracterizados como abuso sexual, pois avistou o pai em momentos distintos tocando as partes íntimas do filho. De acordo com Falcão e Felizola (2022) o abuso sexual intrafamiliar se qualifica como toda e qualquer relação de natureza sexual que se origine dentro do seio familiar. Diante disso, com muita cautela, foi elucidado para a mesma que seu filho estava sendo abusado sexualmente, que essa não era uma conduta normal e sim uma situação de abuso.
Em um primeiro momento sua reação foi de confusão diante daquela informação. Após, ao se dar conta de que seu filho estava de fato sofrendo abuso, a atendida começou a chorar. Posteriormente, foi questionado a respeito de sua relação com seu marido, a mesma novamente se emocionou, mostrando-se relutante em falar sobre o assunto e disse sentir muito medo dele e vergonha. Sendo assim, foi reforçado para ela que aquele espaço se tratava de um lugar de acolhimento e livre de julgamentos. Expôs então, que seu marido a obrigava a ter relações sexuais e ela acabava cedendo, pois na sua concepção esse era seu dever como esposa.
É devido a essas concepções influenciadas pelo viés patriarcal enraizado nas relações conjugais que ainda hoje atribui-se ao marido a posição de poder dentro do seio familiar, enquanto que a esposa ocupa uma posição de submissão, nesse sentido, quando violências ocorrem dentro desse meio essas são frequentemente normalizadas social, cultural e historicamente, o que abre margem para que mulheres permaneçam nessas relações de violência por acreditarem que pelo fato de estarem casadas possuem a obrigação de satisfazer as necessidades do marido, mesmo contra sua vontade, onde seu direito de escolha em relação ao seu próprio corpo é violado (Almeida, 2018).
Toda a situação foi relatada com muita dificuldade pela atendida, a mesma se demonstrava abalada e envergonhada4. Expressou ainda que seu marido fazia com que se sentisse constrangida em relação ao seu corpo e que proferia diversos insultos, o que resultava em grande impacto na sua autoestima. A partir do declarado foi esclarecido para a atendida que ela também estava sendo vítima, tanto de abuso sexual, quanto de violência psicológica, pontuando que o fato do marido a obrigar a ter relações sexuais enquadra-se em violência conjugal, que segundo Rosa e Falcke (2014), se caracteriza como atos de violência física, psicológica e sexual, quais ocorrem entre parceiros dentro da instituição do casamento.
Diante de todo esse contexto foi sugerido que fosse realizada uma denúncia. No entanto, em um primeiro momento, a mulher demonstrou certo receio, devido ao medo que sente do marido. Foi explicado sobre a importância da denúncia para sua proteção e proteção de seu filho, bem como foi realizada a informatização a respeito de todas as etapas do processo. Após a conversa, houve concordância por parte dela e a denúncia foi efetuada.
Em suma, evidencia-se através do declarado a existência de cuidados parentais hipossuficientes. Os mesmos se apresentam em virtude do desconhecimento da genitora em relação ao que configura situações de abuso e violação de direitos, ocasionada pela falta de acesso à informação, que nesse caso se dá pela condição de vida muito humilde dessa mulher, que também possui baixa escolaridade. Reforça-se que foi visível o interesse da vítima em proteger seu filho no mesmo tempo em que assimilou que o mesmo estava sendo vítima de abuso sexual.
Ao analisar esse viés, tornou-se notório o quanto situações de desigualdade influenciam na desinformação a respeito dos tipos de violências e como identificá-las, pois a partir do relato percebe-se que a ignorância em relação a essa temática é reflexo do meio social no qual a atendida está inserida, qual expôs ser de origem humilde e possuir baixa escolaridade. Perante a isso, valida-se que nesse contexto a informatização foi essencial para a identificação das violências sofridas, ao mesmo tempo que evidenciou o quanto a falta de acesso à informação é um aspecto dificultante para que o sujeito conheça seus direitos, e possa a partir disso reivindicá-los em situações onde venha a ocorrer a sua violação (Almeida et al., 2005).
Considerando o contexto de violência exposto no relato, o qual as vítimas estavam habituadas, aliado a desinformação, nota-se que ambos os aspectos contribuíram para que essa situação de violência permanece-se de forma oculta até o momento da busca por informação, onde foi possível a realização de todo esse processo de elucidação e constatação das violências sofridas, bem como a realização da denúncia. Cabe ressaltar que não foi realizado encaminhamento da atendida para a rede de atenção à Saúde Mental, pois a mesma já fazia uso desses serviços por meio do Centro de Atenção Psicossocial (CAPS) do município.
De modo geral, a realização dos atendimentos proporcionou às acadêmicas atuantes uma vasta gama de conhecimentos acerca de contextos e demandas distintas. Essa prática possibilita ir além da sala de aula e embora a teoria seja importante e indispensável, é a prática que faz os olhos brilharem. Essa experiência possibilitou ver a Psicologia acontecendo, reconhecendo ainda mais a sua importância.
Quão gratificante foi ouvir e acolher tantas histórias, únicas e singulares, cada uma contada à sua maneira, no seu tempo e poder de certa forma auxiliar no processo de tomada de conhecimento do sujeito acerca de sua própria história. Trazendo-o como protagonista de sua história. Ressignificando o seu sentir. E promovendo um ambiente onde o sujeito se sinta confortável para compartilhar suas dores, se permitindo sentir, validar e entendê-las.
Nesse viés, cabe ressaltar a importância da atuação da Psicologia como lugar potente de acolhimento, reconhecimento e validação do sofrimento humano, sendo uma experiência que por si só já é transformadora. Destaca-se ainda, a importância desta na articulação da rede de atenção à saúde mental do município, informando e favorecendo o acesso aos dispositivos de atenção à saúde mental: Serviço-Escola, CAPS I e UBS, além dos órgãos de proteção a criança e adolescente, como o Conselho Tutelar e a Vara da Infância e Juventude, Família e Anexos, promovendo o cuidado integral da saúde e das necessidades da pessoa atendida.
Contudo, cabe pontuar que a maioria dos sujeitos atendidos não conheciam de fato a Psicologia, tampouco já tinham frequentado um profissional da área. Fato este que nos propõe a reflexão do quanto, ainda, a Psicologia não atinge a população de maneira equitativa e o quanto ainda é estigmatizada. Embora seja necessária e o bem-estar mental seja determinante para o indivíduo ter saúde, há uma lacuna na acessibilidade desse serviço.
Nesse contexto, evidencia-se ainda mais a importância desse projeto de extensão universitária, não só pelo viés do aprendizado acadêmico e da produção científica, mas pelo impacto que gera na comunidade, com a oferta do acesso ao atendimento, a psicoeducação sobre o trabalho da(o) psicóloga(o) e o trabalho em rede junto de outros profissionais e instituições, reforçando a necessidade da inserção deste profissional nos espaços de acolhimento.
Por fim, levanta-se a questão sobre a relevância desse projeto, para que a própria categoria de profissionais da Psicologia reflita sobre esses vieses e busque participar dos espaços de discussão sobre formulação de políticas públicas e outras ações nesse sentido. Dessa forma, podemos contribuir para que essas práticas saiam da oferta temporária de projetos universitários e se fixem como atividades permanentes de acesso aos cuidados em saúde mental.
[1] Município localizado na divisa com o estado de Santa Catarina, possui 55033 habitantes, Indíce de Desenvolvimento Humano Municipal – IDHM de 0,740 e salário médio mensal dos trabalhadores de 2,1 salários mínimos (IBGE, 2023).
[2] A negligência se refere ao não atendimento das necessidades básicas, incluindo falta de interesse, afeto e responsabilidade em relação à criança e ao adolescente (Fonseca; Ferreira, 2019).
[3] Quando uma família, em virtude de suas condições (hipossuficientes), não dispõe de recursos de cuidados, sejam eles econômicos, cognitivos, sociais, educacionais ou emocionais e, a partir disso, limitam ou não promovem o desenvolvimento das crianças e adolescentes sob seu cuidado (Fonseca; Ferreira, 2019).
[4] Compreende-se o conceito de vergonha como o sentimento de insegurança qual provém do receio do sujeito de ser julgado e ridicularizado, está frequentemente associado a idealizações desvalorosas de si mesmo, que em demaseio atua enquanto causadora de processos psíquicos de sofrimento, devido ao efeito paralisante que incita ao sujeito (Yontef, 1998).
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