Resumo: O fenômeno de ouvir vozes pode ser explicado de acordo com a época e a cultura de uma sociedade. Apesar de sempre ter existido, há pouco tempo passou a ser tratado como algo patológico. Neste resumo, exploramos, através de revisão teórica, duas outras possibilidades de interpretação dessa experiência: o Movimento Internacional de Ouvidores de Vozes e a ética da psicanálise. As duas concepções entendem essa vivência como algo singular e único, que deve ser escutado e que possibilita a comunicação da história do sujeito. Ao escutar a singularidade, o enlace com o social se torna possível, garantindo que ouvidores de vozes possam fazer parte da sociedade, mesmo com seus aspectos únicos.
Palavras-chave: Ouvidores de Vozes; Psicanálise; Saúde Mental.
LISTENING TO WHAT IS SINGULAR: HEARING VOICES MOVEMENT AND THE ETHICS OF PSYCHOANALYSIS
Abstract: The phenomenon of hearing voices can be explained according to the time and culture of a society. Although it has always existed, it has recently been treated as something pathological. In this abstract, we explore, through theoretical review, two other possibilities for interpreting this experience: the Hearing Voices Movement and the ethics of psychoanalysis. Both conceptions understand this experience as something singular and unique, which must be listened to and which makes it possible to communicate the subject’s story. The hearing of this singularity enables social bond, ensuring that voice hearers can be part of society, even with their unique aspects.
Keywords: Hearing Voices; Psychoanalysis; Mental Health.
ESCUCHAR LO SINGULAR: EL MOVIMIENTO ESCUCHANDO VOCES Y LA ÉTICA DEL PSICOANÁLISIS
Resumen: El fenómeno de escuchar voces se puede explicar según la época y la cultura de una sociedad. Aunque siempre ha existido, recientemente se empezó a tratar como algo patológico. En este resumen exploramos, a través de una revisión teórica, otras dos posibilidades de interpretación de esta experiencia: el Movimiento Escuchando Voces y la ética del psicoanálisis. Ambas concepciones entienden esta experiencia como algo singular y único, que debe ser escuchado y que posibilita la comunicación de la historia del sujeto. Escuchar la singularidad también permite vincularse con lo social, asegurando que los oyentes de la voz puedan ser parte de la sociedad, incluso con sus aspectos únicos.
Palabras-clave: Oyentes de Voces; Psicoanálisis; Salud Mental.
Pessoas que ouvem vozes sempre existiram na humanidade, sendo interpretadas das mais diversas formas, como, por exemplo, mensageiros do que é divino, na Antiguidade Clássica, e endiabrados, na Idade Média. Desde o desenvolvimento da psiquiatria como a conhecemos hoje e da descoberta do primeiro antipsicótico, na década de 1950, o fenômeno passou a ser considerado patológico, como sintoma de uma doença, e, na cultura popular, relacionado ao estereótipo da loucura.
Independentemente da interpretação dada ao fenômeno pela sociedade, é importante lembrar que se está falando de um ser humano, merecedor de respeito e cuidado, cuja vida, em sua completude, vê-se intensamente afetada por essa experiência tão singular, que é a de ouvir vozes. Segundo Muñoz et al. (2011), essa experiência se diferencia do pensamento, ao dificultar para o sujeito o distanciamento entre o que se ouve e a atitude, e é nesse momento que se faz necessária a interlocução de um terceiro. (Muñoz et al., 2011)
Quando Freud (2010) aponta que a única realidade é a psíquica, é no sentido de que, em um tratamento, deve-se considerar aquilo que o sujeito diz de si, aquilo que se passa em seu psiquismo, seus pensamentos, sentimentos e atos. A realidade compartilhada do dia a dia é uma leitura que cada um faz a partir da sua lente particular para ler o mundo, em conformidade com as suas condições psíquicas e a sua história de vida. Dessa forma, tudo aquilo que é dito, pensado e escutado tem um valor real, e nada deve ser desconsiderado (Freud, 2010).
Assim, a característica real do fenômeno de ouvir vozes, estando ele conectado ou não à realidade compartilhada, é reconhecida pela psicanálise. Não obstante, é preciso considerar uma mediação possível, em que se estabeleçam novos cenários e possibilidades, a fim de entender o quanto isso afeta o sujeito, permitindo a redução do sofrimento vivenciado por muitos dos ouvidores de vozes. Para tanto, a psicanálise oferece ferramentas de escuta dessa experiência, de forma antimanicomial1 e sem preconceitos morais, considerando o que cada um diz de si. A partir disso, possibilita a construção de algo novo e que cause menos sofrimento. (Soler, 2016).
Neste contexto, vale destacar a importância de o tema em estudo ser disseminado aos profissionais da saúde, aos cuidadores e aos educadores, uma vez que, frequentemente, eles estão diretamente relacionados à manutenção da qualidade de vida dos ouvidores de vozes (Fontana, 2015).
A experiência de ouvir vozes que outras pessoas não estão ouvindo pode ser muito diversa, com diferentes tons, formas, gêneros, idade; vindo de dentro da cabeça ou de fora dela, sendo uma experiência singular e passível de diversas interpretações (Contini, 2017; Woods et al., 2014). Essa vivência já foi descrita na história da humanidade, e sua interpretação costuma variar de acordo com a cultura, ora sendo descrita como boa ora como ruim, de forma que a rotulação dessa experiência tem impacto direto na subjetividade do sujeito que ouve vozes (Luhrmann, 2017;. Larøi, et al., 2014).
Na cultura ocidental, porém, com a evolução da psiquiatria tradicional, houve uma nova interpretação do fenômeno, colocando-o como patológico e nomeando-o como “alucinação auditiva” (Withaker, 2017), encaixando essa vivência como um sintoma comum de transtorno mental, tal como a esquizofrenia. (Woods et al., 2014). Apesar dessa nomeação, existem outras abordagens que entendem os chamados “sintomas psicóticos” (alucinações e delírios) como vivências humanas, que nem sempre estão relacionadas a uma patologia, e podem ser experimentadas em episódios específicos ao longo da história de cada um, como, por exemplo, as alucinações em períodos de luto (David, 2010; Larøi, et al., 2014).
Essa experiência pode trazer certo impacto sobre a vida cotidiana, principalmente, com relação ao conteúdo das vozes, que pode ser positivo ou negativo, a depender da interpretação que o sujeito faz sobre o fenômeno experienciado. Caso o conteúdo seja negativo, maior a chance de a pessoa buscar ajuda para lidar com a situação (Corradi-Webster et al., 2019; Larøi, et al., 2014), o que, tradicionalmente ou por mero costume cultural, sempre se deu, primeiramente, junto ao consultório psiquiátrico, onde o tratamento primordial é o medicamentoso e, não raro, a internação. No entanto, essa forma de ajuda, por si só, não foi (nem é) suficiente para dar conta de toda a complexidade do “ouvir vozes”.
Assim, em contraposição ao que acredita a psiquiatria tradicional, na década de 1980, surgiu o Movimento Internacional de Ouvidores de Vozes (MIOV), objetivando uma forma não medicamentosa e mais humanizada de se abordar essa experiência. O movimento originou-se da parceria entre o psiquiatra Marius Romme e sua paciente ouvidora de vozes, Patsy Hage, no intuito de ajudá-la com a forma como vivenciava suas vozes, possibilitando novas interpretações e a correlação com sua história de vida (Romme & Escher, 1997; Baker, 2009). Romme começou a pesquisar sobre o fenômeno de ouvir vozes sob outras perspectivas, entendendo que nem todas as pessoas que ouvem vozes buscam tratamento psiquiátrico, e que a existência de diversas interpretações e nomeações para o fenômeno é possível. Por essa razão, passou a juntar interessados no tema e ouvidores de vozes, iniciando, assim, o MIOV. (Romme & Escher, 1997).
O MIOV entende que as vozes podem ter relação com a história de vida do sujeito, e merecem ser ouvidas, compreendidas e articuladas com a subjetividade. Ou seja, é possível reestruturar a existência das vozes na vida dos sujeitos, a partir da reelaboração da sua história e do entendimento da singularidade (Romme, 2009; Baker, 2009). Entende-se, então, que as vozes são muito mais que um sintoma, e que é possível gerar autonomia e maior qualidade de vida para os ouvidores de vozes (Oliveira et al., 2023).
Uma das formas de atuação do MIOV é a criação de Grupos de mútua ajuda entre pessoas que passam por situações semelhantes, nos quais trocam experiências e acabam fornecendo suporte mútuo. Os grupos buscam expandir o saber sobre as vozes, entendendo que não se deve reduzi-las à um fenômeno patológico, mas, sim, aceitá-las como parte da realidade do ouvinte, que se relaciona com sua subjetividade, reconhecendo a capacidade da pessoa de lidar com estratégias singulares de enfrentamento (Corstens et al., 2014; Baker, 2009). Atualmente, esse tipo de grupo já existe em mais de 30 países (INTERVOICE, 2023).
Dentro dos valores do MIOV, ouvir vozes faz parte da experiência humana, e diversas explicações são aceitas para a existência delas, de sorte que os ouvidores podem se apropriar dessa experiência e defini-la para si, compreendendo e interpretando o fenômeno de forma única, singular e envolvida com a história da pessoa. Esse processo de compreensão e aceitação pode ser útil para a recuperação, abrindo espaço para o compartilhamento e o desenvolvimento de novas conexões. (Corstens et al., 2014, p. 288).
Kantorski & Andrade (2017) falam sobre como os grupos podem favorecer a luta contra o silenciamento e a estigmatização das pessoas que ouvem vozes, entendendo que agem com forte investimento no sujeito; as experiências são validadas, positivadas e relacionadas com sentido próprio (Kantorski & Andrade, 2017). Os ouvidores de vozes desenvolvem estratégias para lidar com esse fenômeno, que tem relação com sua vivência e experimentação, retomando o controle da situação e ativamente colocando-se no centro da experiência. Tal forma de lidar acaba por desenvolver empoderamento e melhorar a possibilidade de articulação com a vivência (Oliveira et al., 2023).
Por fim, entende-se que os grupos de ouvidores de vozes colocam-se como espaços de auxílio para sair do isolamento, constituindo-se como um espaço de laço social (Oliveira et al., 2023).
A psicanálise é uma ciência que se propõe a escutar o que há de mais singular em cada sujeito e como ele se arranja no meio social. Entre várias formas de fazer essa leitura, a psicanálise lacaniana faz o seu recorte, primeiramente, a partir da psicose, e, posteriormente, com a linguística, pois “Lacan é enfático ao anunciar que, sempre que há fala, o interlocutor o faz a um outro, alguém que receba a mensagem” (Fontana, 2015, p. 82).
A partir da psicanálise, há diferentes rumos e autores para pensar os modos de organização psíquica. Como Jacques Lacan, um psiquiatra francês que se interessou pela psicose e iniciou o seu trabalho com a tese de doutorado falando sobre o caso Aimée. Passou a questionar os tratamentos tradicionais que ocorriam por volta de 1930, quando escreveu a sua tese e passou a construir com outras fontes de conhecimento uma nova abordagem para a psicose, para a qual a psicanálise freudiana se tornou uma grande base. (Lacan, 2011).
Historicamente, a psicose detém o lugar pejorativo da loucura, desse outro que está fora da normalidade e que precisa ser detido. Essa visão manicomial e carregada de preconceitos deixou mais distante a possibilidade de novos olhares para o que se apresenta. Pensando na divisão estruturalista entre neurose, psicose e perversão, há uma maioria neurótica (tida como normal), cujos representantes ocupam, principalmente, posições de poder, os quais podem tomar decisões por esses outros (psicóticos e perversos), que, por partilhar uma outra realidade psíquica, são tratados com discriminação e exclusão. Freud já dizia que “tanto na neurose como para a psicose há de considerar não apenas a questão da perda da realidade, mas também a substituição da realidade” (Freud, 2011, p. 221), ou seja, é a partir da realidade psíquica do sujeito que se conduz um tratamento, e não na imposição de um tratamento previamente construído, pois, dessa forma, deixaria de fora a subjetividade do caso. (Fontana, 2015).
Uma diferença radical entre a neurose e a psicose é a forma com que essas estão inseridas na linguagem, o que influencia na forma como é feito o laço no meio social. Na neurose, existe um discurso predominante que facilita a comunicação entre os pares, permitindo ao neurótico menor dificuldade no exercício das interações sociais. Já na psicose, há uma forma muito particular de se relacionar, o que pode ser fonte de sofrimento pela dificuldade de estar com os outros. Considerando as limitações que enfrenta internamente e com pouco apoio no mundo externo, “o psicótico faz uma tentativa de se reconhecer no mundo por meio do delírio, pois, como Freud anunciava, os temas deliriogênicos não são aleatórios, são produções do sujeito, mesmo que ele não se reconheça nelas” (Freud, 2010 p. 94). A saída antiga para isso era cercar o sujeito em um hospital em nome de um tratamento e do cuidado, porém, o muro é diferente de laço (Muñoz et al., 2011).
O psicótico está inserido na linguagem, no entanto, de sua forma muito particular. As verdades inconscientes que surgem, no caso das vozes, são informações não interpretadas e não dialetizadas que necessitam de uma rearticulação com seu saber, a fim de causar menos sofrimento ao sujeito, o que é feito por meio da amarração com um outro, seja ele um analista ou um grupo de apoio.
O surto psicótico evidencia a falência da lei que organizaria a linguagem, ocasião na qual se passa da categoria de habitante à difícil posição de ser por ela habitado. (…). Ao prescindir da via padrão, o psicótico precisa então recorrer a um artifício próprio para se localizar no mundo. É no meio de um mar de palavras e frases desconexas que um elemento novo e não atrelado à norma fálica deverá ser acrescido de forma a possibilitar que o sujeito possa conquistar um lugar na linguagem. (Muñoz et al., 2011, p. 85).
Assim como Lacan nos adverte sobre o quanto a psicose tem a ensinar aos analistas, o Movimento Internacional de Ouvidores de Vozes (MIOV) também o tem. A possibilidade de compartilhar com um semelhante uma experiência singular faz da diferença uma comunidade em que o tratamento pode ser outro. A dimensão de não carregar sozinho um sofrimento e poder encontrar novas saídas a partir de um lugar comum é muito eficaz na redução de sofrimento. “(…) afere-se então, que o psicótico está fora do discurso, pois o que ele fala é a sua língua própria, e essa não passa por um código marcado pelo universal da castração. Contudo, por mais particular que isso pareça, ela estabelece uma forma de comunicação, uma tentativa de estar no discurso” (Lacan, 2008, p. 90). A escuta analítica, enquanto potencial para uma articulação do sujeito com o mundo e seus pares, consiste em criar um saber fazer com essa expressão inconsciente. A possibilidade criativa e inventiva a partir da troca de experiência tem se mostrado, principalmente nesses casos, muito mais rica do que uma aplicação padrão de procedimentos (Muñoz et al., 2011).
A pertinência das vozes se manifesta enquanto irrupção de um elemento sem sentido, que atravessa e faz parte da vida daquele sujeito e carece de espaço para que, na relação com o outro, possa retornar diferente, como uma reestruturação, “uma palavra que não podemos dizer que é uma palavra vazia, e sim uma espécie de transitivismo da palavra” (Soler, 2016, p. 58), que é diferente de ser preciso ser excluído, por ser algo ruim. O inconsciente se apresenta como algo que precisa ser lido e interpretado, e isso só acontece na dialética com o outro, uma escuta atenta e antimanicomial que possa propor um novo laço diante desse arranjo inconsciente que se apresenta. (Soler, 2016).
Na presente revisão bibliográfica, foram utilizadas a pesquisa bibliográfica e a pesquisa descritiva. Para tanto, a obtenção de dados se deu por meio da leitura analítica de livros físicos e digitais, bem como de artigos eletrônicos, todos listados nas referências abaixo relacionadas.
As presentes “Inquietações Teóricas” ancoraram-se na resposta para a pergunta: Como o MIOV e a Ética da Psicanálise se entrelaçam para o cuidado terapêutico dos ouvidores de vozes?
Para responder a essa questão, foram realizadas pesquisas em livros físicos e digitais, bem como em artigos eletrônicos, com a finalidade de coletar dados sobre o Movimento Internacional dos Ouvidores de Vozes e a Ética da Psicanálise.
Na revisão bibliográfica, verificou-se que o MIOV atua por meio de grupos de mútua ajuda, nos quais os participantes, em sua maioria, ouvidores de vozes, trocam relatos e experiências, possibilitando novas interpretações e a reestruturação da existência das vozes, a partir da reelaboração da sua história e do entendimento da singularidade. O movimento busca oportunizar a compreensão das vozes como algo muito além do sintoma de uma patologia, situando-as como parte da subjetividade do sujeito. Assim, o compartilhamento das experiências dá ao ouvidor a autonomia e o empoderamento para lidar com o fenômeno de forma singular, personalizada, não medicamentosa e mais humanizada. Por fim, o MIOV favorece a luta contra o silenciamento e a estigmatização, oferecendo espaço de auxílio para o ouvidor sair do isolamento e criar laços sociais.
Já com relação à Psicanálise, podemos aferir que se trata de uma disponibilidade de tratamento que visa à subjetividade do sujeito como um todo, que se dispõe a fazer parte da dinâmica psíquica de cada um para que o que é singular seja peça central. Essa conduta ética se faz a partir de uma teoria que discute e se enlaça com temas atuais e não visa a uma normatividade.
Isto posto, observam-se três pontos de convergência entre o MIOV e a ética da Psicanálise, quais sejam: a escuta, a singularização da experiência e o enlace social. O primeiro se dá por meio da mediação do fenômeno vivenciado pelo ouvidor de vozes, uma vez que tanto o MIOV quanto a Psicanálise estabelecem tratamento por meio da linguagem e da escuta, com teor antimanicomial e sem preconceitos. Tanto a escuta analítica quanto a troca de experiências nos grupos de ajuda mútua do MIOV oportunizam o diálogo aberto, a compreensão da experiência de forma não patológica e o enfrentamento dos conteúdos negativos das vozes, a fim de estabelecer novos cenários e possibilidades.
O segundo reside no fato de que o MIOV e a ética da psicanálise oportunizam a singularização da experiência, uma vez que, por meio da dialética, no uso da linguagem e da escuta, as experiências são validadas, positivadas e relacionadas com sentido próprio, dando ao ouvidor empoderamento para enfrentar o fenômeno de forma única e subjetiva.
O terceiro e último ponto de convergência trata do enlace social. Infelizmente, muitas vezes, o ouvidor de vozes é tratado como um pária; ou, ainda, é possível que ele não se sinta confortável no convívio com os outros, o que interfere sobremaneira na construção de laços sociais. E, nesse caso, o MIOV e a ética da Psicanálise novamente se relacionam, pois permitem a ressignificação de vivências, das vozes e de conteúdos recalcados que interferem na socialização. Vale destacar que, por meio do MIOV, o ouvidor encontra seus pares, troca experiências com o grupo e entende que sua experiência também é compartilhada por outras pessoas, o que lhe permite sair da condição de excluído pela sociedade e lhe traz a sensação de pertencimento.
Destarte, resta claro que a combinação do MIOV com a ética da Psicanálise não só é possível como pode trazer resultados muito benéficos para os ouvidores de vozes, pois os coloca como detentores da sua própria história, dando-lhes ferramentas para afastarem-se do isolamento e da estereotipação.
A experiência de ouvir vozes é algo complexo, com nuances únicas atreladas à história de vida do indivíduo, e, caso tenha conteúdo negativo, pode ser fonte de intenso sofrimento do ouvidor. Uma singularidade que, por muito tempo, foi estigmatizada como mero sintoma de transtorno mental e cujo tratamento se resumia à inserção manicomial, medicalização e exclusão.
Contudo, a resposta manicomial não foi nem é suficiente para abarcar esse fenômeno, especialmente por se tratar de uma experiência muito diversa e passível de muitas interpretações. Diante dessa insuficiência, psiquiatras, como Jacques Lacan e Marius Romme, buscaram respostas que fugiram da psiquiatria tradicional, dando voz ao paciente e oferecendo-lhe meios para lidar com a experiência.
E, por isso, a combinação entre o MIOV e a ética da psicanálise não apenas traz uma alternativa antimanicomial para a compreensão e o enfrentamento do fenômeno em estudo, mas tem o potencial de devolver ao ouvidor de vozes o protagonismo sobre sua própria história, de permitir a ressignificação de conteúdos inconscientes e de possibilitar a reestruturação da sua vida.
A ausência de políticas públicas de cuidado explicita uma decisão política. Não se trata de campo impensado, ausência de demanda social ou mesmo de inexistência de experiências públicas; trata-se de decisão política de manter o cuidado na esfera da pessoalidade ou, no máximo, da filantropia.
Construir políticas de cuidado eficazes é uma maneira de romper com o paradigma do familismo, retirando o Estado de seu papel secundário. A responsabilização familiar, como fundamentado e exemplificado neste artigo, não representa uma resposta efetiva às necessidades existentes. O desenvolvimento de políticas públicas de cuidado devem objetivar a promoção do bem-estar, proteção e dignidade a todos, independentemente de seus corpos, classe social, raça/etnia ou gênero, com o Estado assumindo sua responsabilidade nessa garantia.
A responsabilização familiar, somada à ausência de oferta de estratégias públicas sistemáticas de apoio cotidiano às necessidades de suporte, pode contribuir para a fragilização de uma situação familiar já em vulnerabilidade devido à sobrecarga nas atividades de cuidado. E, neste processo, quanto mais fragilizada a dinâmica familiar, mais implicações poderão ser percebidas no acesso à direitos, de forma geral, para as pessoas com deficiência com necessidades específicas de cuidado. Desta maneira, profissionais da Psicologia precisam analisar as implicações de tais processos e promover formas éticas e responsáveis de orientar e convocar a família a seu legítimo lugar enquanto uma das partes envolvidas em assegurar a efetivação dos direitos das pessoas com deficiência, sem fazer, com sua atuação, pesar sobre ela as responsabilidades das quais se ausentam Estado e sociedade.
[1] Termo referente à exclusão da loucura, oposto à lógica manicomial, a qual está pautada no princípio de isolamento dos sujeitos dissidentes, que, no Brasil e no mundo, acabou por criar uma cisão entre sociedade e pessoas em sofrimento psíquico. A reforma psiquiátrica surge em contraposição a essa lógica, repensando o lugar da loucura na sociedade, dando a esses dissidentes o direito de ir e vir e de acessar todas as estruturas sociais. A lógica antimanicomial parte, portanto, da compreensão de que a pessoa em sofrimento psíquico tem direito à cidadania. (Amarante, 2018).
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ABNT — ESCRIVANI, D., LIMA, F. A. Escutar o que é Singular: Movimento Internacional de Ouvidores de Vozes e a Ética da Psicanálise. CadernoS de PsicologiaS, n. 4. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/escutar-o-que-e-singular-movimento-internacional-de-ouvidores-de-vozes-e-a-etica-da-psicanalise/. Acesso em: __/__/___.
APA — Escrivani, D., Lima, F. A. (2023). Escutar o que é Singular: Movimento Internacional de Ouvidores de Vozes e a Ética da Psicanálise. CadernoS de PsicologiaS, 4. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/escutar-o-que-e-singular-movimento-internacional-de-ouvidores-de-vozes-e-a-etica-da-psicanalise/