Resumo: Este ensaio teórico está fundamentado na seguinte indagação: será possível ou viável considerar a malandragem como uma prática astuta em relação ao modelo capitalista neoliberal? Nesse contexto, exploramos as estratégias da malandragem, como “a recusa”, “o fazer hora” e “ir na valsa”, como recursos de emancipação, ampliação e resistência. A organização conceitual proposta está alinhada com as discussões sobre as problemáticas da dominação feliz que afetam o trabalho nos arranjos contemporâneos. Autores que discutem os desafios advindos da linguagem gerencialista disseminada no cotidiano também são considerados. Propomos conversas que dialogam com a malandragem, conduzidas por Simas e Rufino, desacelerando o ritmo frenético do trabalho atualizado na estrutura capitalista neoliberal. Ao final, tivemos em vista suscitar elementos para uma discussão mais ampla sobre as estratégias de sobrevivência e resistência dos trabalhadores diante do modelo de dominação feliz, autoexploração e violência psicopolítica.
Palavras-chave: Dominação feliz; Autoexploração; Filosofi a da roça.
I REFUSE, I MAKE TIME AND I GO IN THE WALTZ
Abstract: This theoretical essay is based on the following question: is it possible or viable to consider malandragem as a cunning practice in relation to the neoliberal capitalist model? In this context, we explore the strategies of malandragem, such as “refusal,” “killing time,” and “going with the fl ow,” as resources for emancipation, expansion, and resistance. The proposed conceptual organization aligns with discussions on the issues of happy domination that affect work in contemporary arrangements. Authors who discuss the challenges arising from managerialist language disseminated in everyday life are also considered. We propose conversations that engage with malandragem, led by Simas and Rufino, slowing down the frenetic pace of work updated in the neoliberal capitalist structure. In the end, we aimed to raise elements for a broader discussion on the survival and resistance strategies of workers in the face of the model of happy domination, self-exploitation, and psychopolitical violence.
Keywords: Happy domination; Self-exploitation; Philosophy of the countryside.
ME NIEGO, HAGO TIEMPO Y ME VOY AL VALS
Resumen: Este ensayo teórico está fundamentado en la siguiente pregunta: ¿es posible o viable considerar la malandragem como una práctica astuta en relación con el modelo capitalista neoliberal? En este contexto, exploramos las estrategias de la malandragem, como “la negativa”, “hacer tiempo” e “ir con la corriente”, como recursos de emancipación, expansión y resistencia. La organización conceptual propuesta está alineada con las discusiones sobre las problemáticas de la dominación feliz que afectan al trabajo en los arreglos contemporáneos. También se consideran autores que discuten los desafíos derivados del lenguaje gerencialista difundido en la vida cotidiana. Proponemos conversaciones que dialogan con la malandragem, conducidas por Simas y Rufino, desacelerando el ritmo frenético del trabajo actualizado en la estructura capitalista neoliberal. Al final, tuvimos en cuenta suscitar elementos para una discusión más amplia sobre las estrategias de supervivencia y resistencia de los trabajadores frente al modelo de dominación feliz, autoexplotación y violencia psicopolítica.
Palabras-clave: Dominación feliz; Autoexplotación; Filosofía del campo.
A “recusa”, o “fazer hora” e o “ir na valsa”, como enaltecidos na música “Paciência” (Pimentel & Falcão, 1999), podem ser interpretados como malandragem perante o culto à produtividade. Todavia, também podem eclodir como patuás de alargamento dos repertórios psíquicos, materializados na ginga e na astúcia do “corpo mole” ou no “fazer o mínimo” necessário para a realização do trabalho. Essas desacelerações malandras, imersas na homilia do movimento infindável enaltecido pela sociedade performática e diluídas na linguagem gerencialista tarada pela produtividade, desempenho e resultados, são classificadas como preguiça, vagabundagem, desengajamento e até passíveis de valoração ética e moral pejorativa. Entretanto, o que ponderamos aproxima o trabalho também da seara da Psicologia Organizacional e do Trabalho, ou ainda às dimensões e processos da análise institucional. Dessa feita, especulamos as manifestações avessas, alheias e opostas aos determinismos da produção como germes simbólicos de re-existências e multiplicação de esforços na construção da saúde física e mental do trabalhador. Haja vista, a volatilidade, os humores e os temperamentos do mercado como regulador da vida e produtor de subjetividades, insistem em nos encaixotar num padrão de autoexploração, dominação feliz e reprodução de violência psicopolítica.
O presente artigo ensaístico está assentado na indagação: É possível ou viável pensar a malandragem como uma prática de astúcia frente ao modelo capitalista neoliberal? Esse questionamento firma um ponto e considera a tríade ética-estética-política na encruzilhada perante à dominação feliz pautada no individualismo/competitividade, empresarização de si, gestão das emoções, cultura da performance e no binômio sucesso-fracasso como elementos da autoexploração e da violência psicopolítica. Diante disso, confabulamos “a recusa”, “o fazer hora” e o “ir na valsa” como estratégias da malandragem, ou recursos de emancipação, ampliação e esgarçamento.
A organização didática da supracitada proposta teórica está alinhada com as discussões atinentes às problemáticas da dominação feliz que afetam o trabalho solúvel nos arranjos contemporâneos. Partindo da leitura de autores que discutem os percalços advindos da linguagem gerencialista, disseminada no cotidiano, fazemos uma sucinta análise reflexiva no tocante aos instrumentos de expropriação. Sendo assim, embasados no recorte de um ideário muito enaltecido no universo organizacional, materializado na “ideia do desempenho da plena potência mediante a ativação máxima do colaborador rumo ao topo”, traçamos alguns pontos de análise referendados por diversos autores que discutem de forma crítica e reflexiva a ideia de autoexploração preconizada no capitalismo neoliberal. Paralelamente ao exposto, propomos alguns lacônicos diálogos com a malandragem apresentada por Simas e Rufino (2018), desacelerando o ritmo frenético atualizado na estrutura capitalista neoliberal. Dessa maneira, esperamos, ao final desse trajeto, fomentar elementos para compor uma discussão ampla acerca de viáveis estratégias de sobrevivência e resistência dos trabalhadores perante o modelo de dominação feliz, autoexploração e violência psicopolítica aventado pelo ideário do capitalismo neoliberal por meio da manutenção da linguagem gerencialista.
No campo teórico, entendemos que a malandragem pode emergir como uma forma de resistência, ampliação e emancipação, e não ser apenas pensada como o abandono do emprego ou “a demissão do patrão”, mas como uma possibilidade para que os trabalhadores se apropriem de outros modos de relacionamento saudáveis com o trabalho. Colocado de outra forma, fazer o mínimo possível (necessário) para a manutenção de seus empregos. Neste quadro, não vamos adentrar aqui ao âmbito da valoração ética ou julgamento moral, embora a ideia que possuímos e nutrimos desses conceitos esteja carregada de estigmas e rótulos do ranço capital-colonial-moderno-ocidental-cristão e suas derivações macunaimescas.
Talvez, poderíamos refletir sobre o demitir, neste cenário, aplicado ao desligamento dessa estrutura abjeta de produção-lucro acima de tudo, cristalizada em nosso psiquismo. Esse sistema nos impõe um ritmo desumano embasado na imago do sujeito que se faz sozinho graças a seus esforços e dedicação – meritocracia. Para mais, outro aspecto que demanda atenção é a ideia de “(…) qualificação permanente do trabalhador, a fim de que ele se mantenha empregável, competitivo e mais informado sobre as últimas tendências em sua área de atuação” (Mansano, 2020, p. 5). Esse sujeito se torna um protótipo desejável do que é ser alguém bem-sucedido e de sucesso, visando a todo custo chegar ao topo e ativar seu máximo, seja lá o que isso signifique.
Os sujeitos imersos no mundo do trabalho são convocados a agirem como verdadeiros “empresários de si”, ascendendo como gestores de si mesmo e rivalizando com todos os outros, “(…) pois subjetivamente se relacionam consigo mesmos, como um capital a ser constantemente autovalorizado, comportamento materializado no consumo desenfreado de coisas materiais e imateriais” (Gama & Mendes, 2020, p. 8). Cooptado pelos arranjos e manejos do trabalho, assentados na gestão da vida e de si como uma empresa, o indivíduo assume internamente os valores dessa formatação, vivenciando essa realidade, de superação constante de seus limites, como formadora de modos de subjetivação e, assim, transformando sua relação consigo e com o entorno circundante.
Ante o supracitado e referendado por Simas e Rufino (2018), podemos pensar-sentir outros caminhos, giras e gingas nas encruzilhadas para as relações malandras com o trabalho, articuladas com uma amarração entre a poética da malandragem e a alegria e liberdade intransigente da Pomba-Gira. Como articulam os autores, a poética da malandragem é um termo utilizado “(…) para compreender o vasto repertório de produções derivadas das sabedorias dos malandros, saberes em transe e trânsito, fronteiriços, inventados e praticados na síncope” (Simas & Rufino, 2018, p. 84). Concernente a Pomba-Gira, os autores salientam que ela “(…) é senhora dos desejos do próprio corpo e manifesta isso em uma expressão corporal gingada, sedutora, sincopada, desafiadora do padrão normativo” (Simas & Rufino, 2018, p. 92). Em adendo, a síncope ou o sincopado é a cisão com o tempo Chronos e com o aceleracionismo, isto é, configura a emergência de um contratempo ou contrapasso. Dessa feita, as práticas malandras coadunam da poética da malandragem, e da alegria e liberdade da Pomba-Gira como transgressões, transbordamentos e derrames aos ditames do mundo uno e da vida mono.
Precisamos mergulhar nesses diversos universos corporificados onde as práticas malandras se (re)fazem cotidianamente, (re)produzindo encantamentos circulares e alinhavados nos encantos dos terreiros, nos afetos dos quilombos e na magia das florestas. Conforme apontam Simas e Rufino (2018), é necessário nos reconectar aos encantamentos (afetos e magia) que abrem novos caminhos para a vida vivida em sua essência, permeada pelos encontros inebriantes entre os seres em relação e vínculo (nós em nós). Dito de outra maneira, é preciso reconectar e encantar os processos de refazimento de si nos vaivéns de nossas interações.
A partir disso, aqueles considerados “malandros”, adeptos da malandragem, percebem que não precisam se despir de suas vestimentas para vestir a camisa da empresa. Melhor dizendo, os malandros não precisam dar o sangue pelo “patrão”, porque a exploração de seus corpos e o assalto do seu tempo só enriquece o dono do capital. Eles não fazem horas extras, nem levam tarefas para finalizar em casa. Da mesma forma, não se voluntariam para tarefas adicionais, nem ficam até mais tarde à disposição da empresa. Não permitem que as perturbações do trabalho (WhatsApp, ligações e e-mails fora do horário de expediente) invadam sua ambiência doméstica e relacional, roubando-lhes o merecido descanso. Em outras palavras, não comprometem sua vida familiar, seu convívio social, seus hobbies e lazer, apenas para beneficiar a vida profissional.
Isso equivale a dizer que esses comportamentos malandros não emergem como categoria conceitual pejorativa e depreciativa dos indivíduos no contexto ocupacional, mas, pelo contrário, nascem como recursos ou estratégias (patuás de defesa e alargamento psíquico) na manutenção da saúde física e mental. Ou por outra, ascendem como instâncias de ampliação, emancipação e multiplicação de recursos simbólicos na relação abissal e assimétrica com os empregadores e com a própria organização moderna da tarefa/atividade geradora de sofrimento. Cogitamos essa desaceleração como um contraponto ou contragolpe à lógica ideológica de dominação, exploração e expropriação no trabalho. De tal maneira que o sentido-significado da malandragem deve ser pensado como “a recusa”, “o fazer hora” e “ir na valsa”, imbuídas das potências éticas, estéticas e políticas pela via da transformação psíquica frente ao modelo adoecedor e triste.
Diante disso, o trabalho, compreendido como uma ação humana reguladora e transformadora (envolvendo sujeito, natureza e sociedade), ocupa um lugar central em nossas vidas. Através das exigências do trabalho, regulamos as demais esferas da existência, alinhando-as ao tempo imposto pela atividade ocupacional. A centralidade e a obrigação do trabalho na contemporaneidade têm um impacto significativo na organização da vida em sociedade, relegando ao segundo plano todas as outras instâncias e esferas do existir-agir. Em outros termos, ninguém escapa das implicações do trabalho como um denominador comum. De acordo com Castro (2022), os efeitos prejudiciais do trabalho afetam indiscriminadamente todos os seres humanos, independentemente de classe, etnia, origem, condição socioeconômica e se estão ou não trabalhando.
As repercussões do mundo do trabalho permeiam tanto as relações interpessoais quanto o ambiente doméstico e privado de cada indivíduo, moldando a maneira como estruturamos nosso próprio tempo. Dessa forma, emergem entrelaçadas com a exigência de uma existência ligada à valorização da individualidade, à competição, ao desempenho, à excelência e às normas de desempenho. A busca pela maximização e potencialização da performance na vida, semelhante ao perfeccionismo e à excelência, pode ser comparada ao “desempenho atlético”, envolvendo a superação contínua de limites e o aprimoramento incessante do corpo e da mente (Da Rocha, 2018). Por esse ângulo, as vastas demandas e imposições do trabalho, enfatizando uma excelência doentia, afetam demasiadamente nossa vida cotidiana, determinando nossas escolhas, valores e até mesmo nossa saúde física e mental.
A excelência, quando aplicada à vida cotidiana, não se trata apenas de perfeccionismo, mas sim de uma postura pessoal que busca a qualidade máxima em todas as ações. Essa busca pela excelência envolve o aprimoramento contínuo, o compromisso com resultados excepcionais e a gestão estratégica das emoções e habilidades aspirando a produtividade e o lucro. Como consequência, alertam Silva e Silva (2020), esse imaginário de um trabalhador excepcional, perfeccionista, comprometido e hábil na realização de diversas tarefas, isto é, “pau para toda obra”, que “veste a camisa da empresa” e “dá o sangue pelo patrão”, gera em seu ventre, um trabalhador desolado e acometido pela crescente insatisfação, vulnerável à frustração e alvo fácil ao desespero, em decorrência do imperativo da felicidade.
A supracitada formatação é cultivada análoga ao ideário de sucesso profissional-individual através da “(…) crença coletiva na vinculação naturalizada entre felicidade e capital” (Nalli & Mansano, 2019, p. 7). Sob outro enfoque, a felicidade é comercializada como um produto e colocada como um objetivo final, ou por outra, o trabalho seria a forma de acesso ao capital que possibilitaria a aquisição da felicidade diluída no consumo de coisas e experiências. O desejo excessivo pelo ideal de felicidade e sucesso, promovido pelos gurus (coaches e mentores) do empreendedorismo pessoal, está ligado à crença exacerbada no “homem que se faz e vence sozinho”, resultando em insatisfação constante.
Conforme Corrêa (2019), essa configuração leva à emergência do “empresário de si”, um trabalhador que se dedica vigorosa e incansavelmente para atingir metas inalcançáveis ou imensuráveis, assumindo essas responsabilidades para si mesmo. Vale ressaltar que o empreendedor de si se assemelha a um atleta de alto nível: dedicado, disciplinado e comprometido com seu desempenho, buscando constantemente os melhores resultados e ultrapassando os limites físicos e mentais para alcançar seus objetivos e conquistar o lugar mais alto do pódio (Da Rocha, 2018).
Como nota, o autor ainda destaca que a busca incessante por sucesso é amplamente observada e valorizada no contexto organizacional e empresarial. Essa ênfase é reforçada nos discursos gerencialistas, que frequentemente culpabilizam e responsabilizam os colaboradores pelo sucesso ou fracasso. Essa dualidade repousa assentada na “(…) falácia de que o trabalhador deve agir cotidianamente como um herói desportista para bater as suas metas, seus objetivos e sucessivamente ‘vencer suas batalhas’” (Da Rocha, 2018, 159). Na verdade, essa nefasta formatação corrobora a fé ignóbil na meritocracia, uma vez que a perspectiva enfatizada é a de que o indivíduo aflora como único responsável por si, capaz de se fazer sozinho, vencendo todos os percalços e intempéries pelos seus méritos, esforços e dedicação. Consequentemente, em um mundo cada vez mais hostil, onde todos parecem ser inimigos uns dos outros, perdemos a experiência de viver em comunidade. O individualismo prevalece, obscurecendo a possibilidade de vivenciar o bem comum como princípio ético, estético e político.
O discurso manifesto no contexto organizacional/empresarial, que enfatiza a coesão de grupo, valorizando a equipe e a harmonia interpessoal, é confrontado pelo conteúdo latente na perspectiva do colaborador, influenciado pela concorrência e competição interna e externa. Essa perspectiva inclui slogans como: “Deus ajuda quem cedo madruga”, “Trabalhe e estude enquanto eles dormem” e “Que vença o melhor”. Cabe dizer, como observa Mansano (2020, p. 5), com o “(…) crescente individualismo competitivo, são poucas as mobilizações coletivas por reivindicações de melhorias nas condições de trabalho que encontramos na contemporaneidade”. Portanto, o individualismo ascende como um imperativo relacional.
Desse modo, a força do coletivo, que deveria ser uma esperança radical para enfrentar o patronato e superar as vicissitudes socioeconômicas que limitam o acesso às oportunidades, é apagada. Em vez disso, emerge o culto ao individual como modelo de sucesso ou fracasso. Em ambos os casos, o trabalhador é responsabilizado pela construção e manutenção de sua saúde física e mental. O capitalismo utiliza todos os meios possíveis para perpetuar sua ideologia burguesa, garantindo sua permanência e privilégios. Essa ideologia consiste em um conjunto sistemático de ideias produzidas pela classe dominante, ou “(…) novos colonizadores, os agentes da subjetivação capitalística (…)” com o escopo de manutenção do status quo e a finalidade de ocultação dos seus reais intentos de produção, consumo e lucro (Mansano & Carvalho, 2022, p. 1076).
Isto posto, a percepção do trabalho se apresenta como uma atividade subordinada aos valores ideológicos burgueses (colonial-capital-moderno-ocidental), revelando uma construção paradoxal. Por um lado, a ação laboral pode ser vista como uma oportunidade de autonomia, emancipação e promoção da saúde física e mental no âmbito social, além de ser uma expressão criativa, produtiva e prazerosa. Já, por outro lado, também carrega características de opressão, submissão, imposição e despersonalização do trabalhador, contribuindo para diferentes formas de sofrimento no e pelo trabalho.
O que está colocado aqui, conforme destacado por Braz (2018), é o fato de que o trabalho pode ser percebido de duas maneiras distintas: como uma sentença que acarreta sofrimento, empobrecimento e angústia, quando a serviço e garantia apenas da produtividade e lucratividade, ou como uma fonte de emancipação, prazer, desenvolvimento pessoal e espaço para a realização de desejos, visando a busca pela emancipação. Não obstante, “(…) o indivíduo vivencia prazer e sofrimento. O primeiro está na ordem do desejo, da pulsão, da invocação e do gozo. O último, dele não se escapa, sendo o tédio muitas vezes apresentado como um dos seus algozes”. (Dias, Siqueira, & Medeiros, 2019, p. 7). Com isso, a atividade trabalho “(…) organiza o tempo e o espaço das atividades da vida dos indivíduos, tornando-se elemento fundamental na constituição da condição humana, por ser fator determinante de integração social e de realização pessoal, bem como legitimador das diferentes fases da vida” (Dias, Siqueira, Morais, & Gomes, 2019, p. 188).
Aquela antiga ideia de que o trabalho dignifica o homem e enobrece o espírito caiu por terra nos tempos contemporâneos. A precarização e o sucateamento do trabalho, agravados pelas frequentes crises no sistema capitalista, deixaram o indivíduo em um labirinto, buscando formas de sobreviver aos impactos do mundo do trabalho. Isso se deve, sobretudo, à expansão do capitalismo neoliberal assentado no ideário do livre mercado como um regulador natural da sociedade e das relações humanas (Muniz, Teixeira, & Silva, 2020). Como aventam Dardot e Laval (2016, p. 17), “(…) o neoliberalismo é a razão do capitalismo contemporâneo (…)”, e essa racionalidade está arraigada na gestão da vida em conformidade aos princípios universais da concorrência.
Nesse cenário, as miríades de reverberações e ressonâncias na vida cotidiana nos levam a inferir que a busca por elementos que possam configurar resistências ou (re)existências salutares é imprescindível. Quer dizer, aprender a desacelerar, descansar, desconectar e desligar é primordial. Assim, ansiamos por um alento diante do trabalho maçante, desumano e da vida acelerada que nunca desliga, nos lançando ao espetáculo do desempenho, do consumo e ao movimento constante e infindável da autoexploração e dominação feliz.
Acreditamos ser primordial contemplar relações minimamente saudáveis que abarquem as vastas possibilidades de qualidade de vida no trabalho. Os arranjos do trabalho, intermediados pelo capitalismo neoliberal e suas métricas alienantes, geram tensões excessivas, influenciando negativamente o bem-estar no ambiente laboral. Esse formato é perceptível, acima de tudo, ao nomear “(…) o mal-estar contemporâneo como uma disfunção, em que é preciso recuperar a peça falha e recolocar o sujeito na linha de montagem” (Pinto & Moura, 2022, p. 7). Em resumo, como observam Rocha e Santos (2024, p. 3) “(…) o pensamento neoliberal é marcado por uma racionalidade capitalista que sai do marco econômico, produz uma lógica político-cultural que tira do capitalismo seu modo de funcionamento para aplicá-lo a outras esferas”.
Com base nisso, como pensar em formas de resistência ao trabalho, se o salário (instância de controle), decorrente do ato de trabalhar, é o único meio de ascensão ao mundo do consumo? Ou melhor, como driblar o ciclo de vida – acoplado no way of life – que envolve trabalhar, receber, consumir, descartar e, consequentemente, endividar-se? Nesse contexto, além de considerar outras abordagens para o trabalho, também devemos refletir sobre outras maneiras de sobreviver e preservar nosso mundo. É imprescindível reavaliar o culto ao “consumismo” nas relações sociais. Essa liturgia está profundamente enraizada em nosso psiquismo desde a infância, uma vez que, no processo de escolarização e colonização, somos educados, ensinados e “preparados” (domesticados, adestrados e doutrinados) para nos inserirmos no mercado de trabalho e alcançarmos o mundo do consumo como um ideal ou meta de vida.
Nessa sequência, a instituição escolar emerge como um espaço de preparação para o mundo do trabalho, produção e consumo. O trabalho, que antes era um fim em si mesmo, agora se torna um meio para atingir o objetivo final: o consumo. Vivemos em um ciclo interminável, trabalhando para adquirir dinheiro e consumir. Como consequência, nos endividamos para trabalhar mais e pagar as contas desse consumo desenfreado, algo semelhante ao “hamster satisfeito em sua rodinha, que acredita que o mundo é sua gaiola”.
Em contrapartida, a malandragem, enquanto instância micropolítica que acolhe a “recusa”, o “fazer hora” e o “ir na valsa”, dialoga com as (re)existências que eclodem como contraponto e contragolpe à narrativa hierárquica. Essas (re)existências brotam das rachaduras do autoritarismo hierarquizado e da imposição ditatorial verticalizada de mão única. A (re)existência malandra rompe com a revolta e a rebeldia (singular e unívoca), esgarçando a unidade e pavimentando o trajeto para a revolução como um encontro coletivo de emaranhados (nós em nós).
Entendemos, que na atual conjuntura dos arranjos e manejos do trabalho, os discursos que aprisionam os trabalhadores são diversos e constantemente atualizados em novas roupagens da moda e sabores palatáveis. Por isso, a própria ideologia gerencialista “(…) caracteriza-se como sistema de representação mental por preconizar que as esferas da atividade humana podem e devem ser gerenciadas (…)” objetivando o máximo sucesso (Castro, Medeiros, Dias, & Siqueira, 2021, p. 251). Inclusive, a gestão estratégica das emoções investe na captura e potencialização dos afetos como uma das suas primordiais ações (Siqueira, Medeiros, & Dias, 2023). Neste funcionamento, o trabalhador é responsabilizado por promover condições de manutenção da sua saúde física e mental, além de maximizar suas capacidades, habilidades e aptidões numa lógica individualizante.
No contexto contemporâneo, a potência realizadora do trabalho, que historicamente gerava modos de sociabilidade, produzia identidades e fornecia ferramentas de emancipação e empoderamento, agora se submete às normas do capitalismo neoliberal. Essa submissão transforma o trabalho em uma prática de devoção ao modelo exploratório vigente. O dualismo entre trabalho como fonte de prazer e sofrimento mantém o trabalhador aprisionado à ideologia capitalista, disfarçada por novas linguagens e roupagens que simulam autonomia e liberdade.
Em um sistema que nos impõe velocidade, constância e movimento incessante, ganhar alguns segundos na vida torna-se um objetivo comum. Além disso, a busca por “vantagens” em todas as situações, parece refletir o ethos de uma sociedade que valoriza o sucesso, conquistas, destaque e o culto a aparência e a performance como metas de vida. Nesse cenário, as malandragens surgem como formas de acolher, expressar e compartilhar vivências, comportamentos e sentimentos que visam romper com a prática enclausurada de autoexploração e dominação feliz no modelo capitalista neoliberal.
A malandragem, como prática de astúcia do trabalhador, pode ser pensada como um espaço vago ou uma lacuna entre o que fazemos por obrigação moral, soberba, arrogância, ostentação e a busca pela aprovação dos outros, e aquilo que realmente é necessário. A prática malandra é àquela da zona de conforto, que visa uma vida mansa e sossegada. Como efeito, tenta escapar dessa manipulação das massas obedientes que fabrica uma sociedade fascinada pelo progresso técnico, científico e convencida do admirável desenvolvimento alucinado de uma humanidade desumanizada.
Neste sentido, podemos contrapor o funcionamento acelerado e prejudicial com a valorização de uma vida mais tranquila, isto é, aprender a desacelerar, desligar, desconectar e descansar. Ao mesmo tempo, é essencial reconhecer que a força da coletividade reside na valorização do que nos une e nos faz crescer – encantamento. O individualismo e a competitividade, por outro lado, tendem a gerar uma vida utilitarista – desencantada. Por conseguinte, como nos ensina o mestre Nêgo Bispo (Santos, 2023) através de sua filosofia da roça, que possamos abandonar essa vida agitada e estressante, cultivando a tranquilidade de uma existência mais serena, mansa, em oposição à intensidade nervosa, e menos preocupada com o desenvolvimento, com a importância e com essa vida sintética ordenada na cosmofobia. Que valorizemos o envolvimento, a necessidade e a confluência orgânica entre o bem-viver, os afetos e a diversão despretensiosa, enlaçados e entrelaçados pelos laços coletivos que nos unem (Santos, 2023).
Na verdade, especulamos a malandragem como (re)ação anticolonial e contracolonial, isto é, uma derradeira barricada de sobrevivência, rota de escape ou linhas de fuga como diriam os esquizoanalistas, almejando a revolução insurgente contra a opressão, exploração e silenciamentos do fazer-sofrer no trabalho enclausurante. Desejamos alcançar um outro topo que possibilite enxergar outras sendas e veredas, contribuindo na efetivação de rupturas contra a passividade e conformidade, sinalizando um corpo que ainda pulsa, existe, resiste, fala, sente e está vivo para além do trabalho capital. Um corpo que, na mencionada canção “Paciência” (Pimentel & Falcão, 1999), deseja um pouco mais de alma (calma) perante uma vida que não cessa e um tempo que acelera e pede pressa, atropelando tudo. Portanto, a malandragem, como nos ensinam Simas e Rufino (2018), pode englobar a “recusa”, o “fazer hora” e o “ir na valsa” como fruição política, ética, estética e poética de sobrevivência psíquica aos desmandos de um mundo que nos impulsiona ao tempo acelerado e à pressa (urgência/emergência) em tudo o que fazemos. Por isso, vislumbramos outros meandros na interação/relação humana com o trabalho, fomentando a saúde física e mental.
Por fim, resta-nos uma derradeira provocação, no formato de indagação, uma vez que ser e existir no contexto societário da hiperprodução e hiperestímulos inseridos no hipercapitalismo neoliberal, onde o ócio, a preguiça e a contemplação de uma vida mansa e simples são banalizados, permanece um incômodo que não cessa de repetir. Quer dizer, caso concebamos a ociosidade e a malandragem como perda ou como algo prejudicial e descartável, o que realmente estamos ganhando ou deixando perder nesta formatação de sociedade, de trabalho e de vida?
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ABNT — LOPES, Fábio Cardoso. Eu me recuso, faço hora e vou na valsa. CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/eu-me-recuso-faco-hora-e-vou-na-valsa/. Acesso em: __/__/___.
APA — Lopes, F. C. (2024). Eu me recuso, faço hora e vou na valsa. CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/eu-me-recuso-faco-hora-e-vou-na-valsa/.