#Relatos_de_experiência
Resumo: O presente artigo consiste em um relato de experiência da oficina de Expressão Corporal desenvolvida em um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas (CAPS AD III) de Curitiba no ano de 2018, como parte do estágio de Psicologia e Saúde do curso de graduação em Psicologia. Sob os fundamentos da Psicologia Histórico-Cultural e da reforma psiquiátrica, elaborou-se a oficina de expressão corporal com o objetivo de promover nos participantes a expressão subjetiva e a autoconsciência por meio do corpo. Como procedimentos metodológicos utilizou-se técnicas do Teatro do Oprimido de Augusto Boal; exercícios de percepção e movimento corporal, para que os usuários pudessem representar-se enquanto sujeitos ativos; assim como reflexões coletivas com os participantes acerca das atividades realizadas. Analisou-se que o recurso da mediação artística, através da expressão corporal, proporcionou acúmulos significativos aos participantes, desenvolvendo e potencializando a capacidade de comunicação e de novas formas de expressão.
Palavras-chave: expressão corporal; psicologia histórico-cultural; saúde mental.
CORPORAL EXPRESSION AND MENTAL HEALTH: PSYCHOLOGY INTERNSHIP EXPERIENCE AT A CAPS
Abstract: The article presents an experience report of a Corporal Expression Workshop developed in Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas in Curitiba in 2018, as part of the psychology and health internship of the Psychology graduation program. Based on the principles of Cultural-Historical Psychology and the Asylum Reform, the main goals of the workshop were to promote subjective expression in the participants and develop selfconsciousness through the body. In order to accomplish that, some techniques were used, such as Theatre of the Opressed, by Augusto Boal; exercises of body perception and movement, so that users could represent themselves as active subjects; as well as moments to elaborate collective impressions of the activities. As a conclusion, the resource of artistic mediation, through corporal expression, enabled some important outcomes to the participants, such as the improvement of their communication and development of new forms of expression.
Keywords: corporal expression; cultural-historical psychology; mental health.
EXPRESIÓN CORPORAL Y SALUD MENTAL: EXPERIENCIA PRÁCTICA DE PSICOLOGÍA EN EL CAPS
Resumen: Este artículo es un informe de experiencia del taller de Expresión Corporal desarrollado en un Centro de Atención Psicosocial de Alcohol y Drogas de la ciudad de Curitiba en 2018, como parte de la pasantía de Psicología y Salud del curso de pregrado de Psicología. Bajo los fundamentos de la Psicología Histórico-Cultural y la reforma psiquiátrica, se desarrolló el taller de expresión corporal con el objetivo de promover la expresión subjetiva y la autoconciencia a través del cuerpo en los participantes. Como procedimientos metodológicos fueran utilizados técnicas del Teatro del Oprimido de Augusto Boal; ejercicios de percepción y movimiento corporal, para que los usuarios pudiesen representarse como sujetos activos; así como reflexiones colectivas sobre las actividades realizadas. Se analizó que el recurso de la mediación artística, a través de la expresión corporal, proporcionó logros significativos a los participantes, desarrollando la capacidad de comunicación y nuevas formas de expresión.
Palabras clave: expresión corporal; psicología historico-cultural; salud mental.
O propósito do presente artigo é apresentar um relato de experiência de uma oficina de expressão corporal desenvolvida como atividade do Estágio Específico de Psicologia e Saúde da graduação em Psicologia. A oficina foi realizada com os usuários de um Centro de Atenção Psicossocial Álcool e Drogas 24h (CAPS AD III) de Curitiba durante o ano de 2018. As atividades foram conduzidas por duas estagiárias [1] com o objetivo de desenvolver intervenções no dispositivo de saúde aliadas aos conhecimentos teórico-práticos da psicologia.
A intervenção do estágio foi fundamentada na Psicologia Histórico-Cultural, cujos pressupostos advém do método materialista histórico e dialético. Segundo Marx e Engels, citado por Netto (2011), o ponto central da investigação materialista histórica e dialética são as condições materiais de vida dos indivíduos produzidas em sociedade, condições estas que foram engendradas historicamente e que estão em constante processo de construção via práxis humana. A partir de tais pressupostos, a Psicologia Histórico-Cultural compreende o psiquismo como uma imagem subjetiva da realidade e estuda os fenômenos em sua gênese, processualidade e totalidade, enquanto síntese de múltiplas determinações de uma realidade que é complexa e fruto de um percurso histórico (Monteiro, 2015).
O desenvolvimento das indústrias, no processo de constituição do capitalismo, gerou concentração dos meios de produção nas grandes cidades, assim como aumentou e aglomerou a população urbana. Contudo, a indústria era incapaz de absorver todo o contingente de expropriados do campo – trabalhadores “livres” para vender a sua força de trabalho –, o que gerou um grande contingente de miseráveis (Marx & Engels, 2004). Aos desempregados, desocupados e pobres, excluídos da cadeia produtiva, restavam medidas de controle social tal qual o asilo, cuja função, como analisado por Foucault (1978), era segregar, punir e moralizar a miséria. O contexto asilar gesta a psiquiatria, que passa a condenar e ocultar a miséria sob o domínio do poder da medicina (Schühli, 2008). Como oposição a esse sistema excludente e punitivo, é desenvolvido um processo de luta social – a reforma psiquiátrica – que contrapõe a lógica manicomial e a razão diagnóstica através da construção de formas de cuidado humanizadoras e libertadoras.
A reforma psiquiátrica ganhou maior expressão no contexto brasileiro no período do fim da ditadura militar (1964-1985) com a ascensão das lutas da classe trabalhadora. Os movimentos de saúde e de saúde mental no Brasil conquistaram importantes avanços dentro da institucionalidade, como a aprovação do Sistema Único de Saúde (SUS) e a Lei da Reforma Psiquiátrica Brasileira (Lei nº 10.216/2001), que definiu a diminuição gradual dos manicômios e a criação de uma rede alternativa enquanto política estatal. Foram criados também os Núcleos de Atenção Psicossocial (NAPS) e os Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), este último caracterizado por oferecer
atendimento diuturno às pessoas que sofrem com transtornos mentais severos e persistentes, num dado território, oferecendo cuidados clínicos e de reabilitação psicossocial, com o objetivo de substituir o modelo hospitalocêntrico, evitando internações e favorecendo o exercício da cidadania e da inclusão social dos usuários e de suas famílias. (Brasil, 2004, p. 12)
Os CAPS integram a rede SUS e são divididos em modalidades por porte/complexidade e abrangência populacional. São distinguidos em CAPS I, II e III [2] e,entre estes, em modalidades para pessoas com transtornos mentais severos e/ou persistentes (em Curitiba, popularmente chamado de TM); para pessoas que fazem uso abusivo de álcool e outras drogas (popularmente chamada de AD); e para a população infantil (CAPSi) (Brasil, 2004).
Em 2017, a Secretaria Municipal de Saúde (SMS) de Curitiba apresentou uma nova proposta de modificação dos CAPS, propondo a hibridização das modalidades de transtornos mentais severos com a de uso abusivo de álcool e outras drogas. Usuários e profissionais do campo reagiram a essa proposta (Conselho Regional de Psicologia do Paraná, 2017), demonstrando que a fusão dos dois públicos atendidos, altamente diferenciados, acarretaria na perda de especificidade técnica e na fragmentação do cuidado, apontando que a motivação fundamental da medida era o desmonte dos serviços públicos. Apontaram que tal mudança provocaria precarização e perda de qualidade do serviço, aumentando os desafios já enfrentados pela rede. Por mais que a proposta da SMS tenha sofrido ampla resistência, o Estado reagiu com repressão policial para impedir a participação de usuários e profissionais nas reuniões deliberativas.
Em 2018, o CAPS AD III em que foi realizado o estágio não era hibridizado. Contudo, diferente dos anos anteriores, passou a ter duas coordenações, uma contratada pela Fundação Estatal de Atenção Especializada em Saúde (FEAES) e outra pela SMS. Tal administração, diferente das últimas gestões, apresentava uma relação mais distanciada e pouco comunicativa com a equipe, gerando um tensionamento na relação, o que gerou impactos no desenvolvimento do trabalho cotidiano da instituição.
O que a trajetória da reforma psiquiátrica demonstra é que a luta antimanicomial é um processo constante e cotidiano na atividade profissional dos técnicos de saúde. Compreendemos que a existência dos CAPS é uma conquista da luta social, que está sob constante ameaça pela política nacional neoliberal de desmonte de serviços estatais de proteção social; e que os processos de sofrimento psíquico que muitas vezes levam ao uso abusivo de substâncias manifestam, em nível individual, uma insuportabilidade das condições da vida social engendradas por tais políticas. A proposta de intervenção do estágio parte de tal compreensão da realidade material, para desenvolver uma atuação com sentido emancipatório.
A primeira etapa do estágio, realizada entre março e maio, destinou-se à elaboração da caracterização do serviço e levantamento de demandas, para que, posteriormente, se delineasse uma proposta de intervenção. Dentre as demandas levantadas nesse período, a principal necessidade sinalizada pelos usuários do serviço foi a ausência de atividades que envolvessem o corpo, pois predominavam no CAPS atividades no formato de rodas de conversa. A partir dessa demanda e considerando suas possibilidades técnicas, as estagiárias desenvolveram a proposta de uma oficina de Expressão Corporal. A aproximação com o teatro de uma das estagiárias proporcionou aliar seus conhecimentos sobre a linguagem artística à elaboração da oficina, tendo como campo a psicologia. Nesse sentido, a oficina teve como objetivo promover nos participantes a expressão subjetiva e a autoconsciência por meio do corpo.
Cabe salientar que se optou por utilizar a oficina terapêutica como modalidade de intervenção, pois essa tem se mostrado como uma potencialidade para a proposta de atuação dos psicólogos e demais profissionais nos serviços de atenção à saúde. As oficinas terapêuticas são capazes de proporcionar a “invenção de complexas redes de negociação e de oportunidades, de novas formas de sociabilidade” (Minas Gerais, 2006, p. 72), potencialmente promovendo singularização e emancipação nos participantes.
Pelo caráter desta oficina e da dinâmica do serviço, a participação dos usuários do serviço era livre e aberta, podendo qualquer interessado ingressar, o que acabou resultando em uma grande rotatividade de participantes, que oscilava entre 10 e 20 pessoas em cada encontro. O perfil dos participantes da oficina reproduziu o perfil dos atendidos pelo CAPS: majoritariamente homens, na faixa etária entre 20 e 60 anos, que se encontravam em situação de desemprego ou vulnerabilidade social.
A oficina de expressão corporal ocorreu uma vez por semana e totalizou 13 encontros, ministrados por duas estagiárias de psicologia, nos meses de maio a junho, e setembro a novembro de 2018. As atividades foram desenvolvidas sob os pressupostos da Psicologia Histórico-Cultural e da reforma psiquiátrica, utilizando-se de técnicas do Teatro do Oprimido de Augusto Boal, exercícios de percepção e movimento corporal, assim como um momento para elaborar reflexões coletivas acerca das atividades realizadas. A metodologia dos encontros foi: (1) iniciar com a apresentação do nome próprio atrelado a um movimento corporal, o qual todos os demais deveriam repetir em seguida; (2) realização da atividade planejada para o encontro; (3) discussão coletiva sobre o ocorrido. Durante o primeiro semestre foram realizados cinco encontros, os quais tiveram como tema central o reconhecimento do próprio corpo e o vínculo com os integrantes do grupo, discutindo o que é expressão corporal. Para estimular o relato da história de vida dos participantes, foram realizadas atividades de criação de personagens e exercícios de mímica. Nesse período, houve alta rotatividade do grupo e os usuários demonstravam resistência em realizar as atividades, visto a exposição e disponibilidade do corpo que os exercícios demandavam, predominando um caráter de experimentação.
Já no segundo semestre foram realizados oito encontros, com um grupo de participantes mais regular, propiciando uma gradual complexificação das atividades depois da rotina de aquecimento que acontecia no início de cada encontro. As atividades foram divididas em dois módulos: (1) sensibilização e experimentação do corpo, perpassando a respiração, o movimento e os sentidos; (2) corpo como forma de expressão. Os exercícios cênicos realizados nesses módulos tiveram como enfoque trabalhar a criação e apresentação de imagens artísticas através do corpo, estáticas e em movimento, a partir de temas gerais e de temas específicos, estes últimos relacionados à singularidade das vivências dos participantes.
No primeiro semestre, houve maior resistência às atividades propostas, sendo mais expressas em dificuldades de experimentar com o corpo do que na recusa em realizar as atividades. Contudo, após a familiarização de cada participante com seu próprio corpo – perpassando a respiração, o movimento e os sentidos – foi possível operá-lo enquanto instrumento de expressão. Esse salto de qualidade ocorreu principalmente no segundo módulo, em que foram trabalhados exercícios da Técnica do Oprimido, de Augusto Boal. Os exercícios cênicos, utilizando-se da criação e apresentação de cenas com ações corporais, possibilitaram partir de temas genéricos para, na continuidade, trabalhar as vivências dos próprios participantes. Através deste instrumental, os exercícios continham a finalidade de conscientização da posição social dos participantes perante as relações de produção, pela representação de situações de opressão vivenciadas por eles através da composição de fotografias e cenas com o corpo. As atividades propunham um momento final de superação – no campo da encenação – das situações de opressão, propiciando aos participantes assumirem papel ativo em cena, instigando novas formas de operar com a realidade vivida. Durante o transcorrer dos encontros, foi possível perceber um avanço em como os usuários se expressavam, de modo que, no início, faziam-no de forma desorganizada e individualizada e, no decorrer da oficina, desenvolveram uma dinâmica de ajuda mútua para que o grupo como um todo participasse plenamente das atividades.
A utilização da mediação artística pela expressão corporal, principalmente por meio da mímica e do teatro, traz em si algumas potencialidades. Barroco e Superti (2014) apresentam a teoria da psicologia da arte de Vigotski, na qual ele apresenta que a vivência artística é capaz de promover alterações no psiquismo, proporcionando uma nova organização psíquica. Ela provoca efeitos profundos não somente sobre a imaginação e os sentidos, mas também sobre o pensamento e a vontade (Teplov, 1991). O contato com a obra de arte possibilita a reconstrução psíquica do representado pelo espectador, o que pode suscitar uma série de sentimentos e reflexões novas para a pessoa. Essa relação com a obra possibilita que o espectador reconstrua a emoção representada, processo que o modifica (Vigotski, 2003). Nessa perspectiva, quando os participantes da oficina relatavam que representar uma cena ou assistir a uma encenação os faziam pensar em atitudes que nunca tiveram na vida, mas que poderiam ter, eles foram transformados pela experiência artística.
A possibilidade de expressão subjetiva através de novos meios, como o corpo, proporcionou também o desenvolvimento de novas habilidades de comunicação. Isso ficou bem expresso na experiência de um participante que, no início da oficina, se portava de maneira bastante tímida, reservada e pouco participativa; e, no decorrer dos encontros, foi assumindo um papel de participação ativa no grupo. Observamos que a oficina proporcionou aos usuários compartilharem suas habilidades pessoais – o mesmo participante acima mencionado demonstrou ter uma imaginação muito desenvolvida. No exercício em que os grupos apresentaram cenas compostas por imagens corporais estáticas, que sintetizavam uma história, ele imaginou e relatou toda a narrativa somente a partir da visualização da cena. De tal forma, a oficina também contribuiu para o reconhecimento das capacidades de cada um, aos poucos sendo reveladas pela realização dos exercícios, tendo efeitos também no processo de autoestima dos participantes. Reconstruir a confiança de que são sujeitos capazes é muito importante, visto que, na maioria das vezes, os usuários do CAPS AD têm sua auto imagem degradada por conta do estigma social do “viciado” e pela culpabilização reforçada pelo processo de individualização dos problemas sociais.
Moraes (2018) apresenta que o adoecimento e o consumo de drogas são compreendidos tradicionalmente de forma individualizada ou pelas propriedades químicas da substância psicoativa, sem estabelecer qualquer relação com a estrutura e dinâmica social, reforçando uma visão superficial e culpabilizadora sobre os aspectos envolvidos no consumo. Como alternativa à essa concepção individualizante e culpabilizadora de quem faz o consumo de substâncias, pautamos nossa análise na teoria da determinação social do consumo de drogas, ao compreender que, no sistema de produção capitalista, a necessidade do uso de substâncias está atrelada a processos e padrões coletivos. Ainda que atrelada a esses processos, a necessidade do uso apresenta-se como uma resposta individual (Moraes, 2018). Sendo assim, trata-se de um comportamento voluntário, mediado por motivos, sentidos e significados. Diante disso, é necessário atuar sobre a consciência dos usuários, explicitar os mecanismos sociais e “elaborar os motivos e as decisões envolvidas na origem e no desenvolvimento de um padrão problemático de uso de álcool e outras drogas” (Santos & Vecchia, 2018, p. 209).
Um grande desafio enfrentado durante o estágio foi a presença de diferentes concepções de cuidado na equipe profissional, de modo que a concepção manicomial, culpabilizadora e medicalizante ainda é muito presente na prática e discurso nos serviços de saúde, o que dificultava a construção de uma atuação mais conjunta. No período de caracterização do serviço realizada pelas estagiárias foi constatado que o CAPS AD em questão continha uma quantidade grande de atividades, principalmente grupos conduzidos por profissionais. A quantidade de atividades contrastava com as demais instituições da cidade, o que chamou a atenção da equipe de estágio. Ademais, a coordenação estava constantemente exigindo mais grupos, imprimindo uma dinâmica produtivista em detrimento, muitas vezes, do cuidado e da construção de bases materiais para o desenvolvimento dos sujeitos em sofrimento.
As falas dos participantes na avaliação final da oficina revelou que estes estabeleceram uma boa relação com os exercícios corporais, sentiram que conseguiram desenvolver capacidades novas e perceberam o movimento de desenvolvimento geral do grupo, além de avaliarem como benéfica e necessária uma oficina com propostas de atividades diferentes das tradicionais no CAPS. A oficina demonstrou que é necessário e possível explorar novas mediações e abordagens com os sujeitos, e foi capaz de promover desenvolvimento na direção dos objetivos propostos.
A perspectiva da Psicologia Histórico-Cultural foi importante aliada para conduzir uma atuação crítica na intervenção do estágio, através de uma avaliação criteriosa dos elementos da realidade brasileira, do serviço de saúde mental e da realidade dos usuários, direcionando com maior eficácia a intervenção com os indivíduos singulares e a relação com a equipe do serviço. A utilização da mediação artística pela expressão corporal proporcionou desenvolvimento nos participantes em relação à utilização e percepção das práticas corporais enquanto atividade física e forma de expressão, potencializando a capacidade de comunicação e consciência sobre si dos usuários. Portanto, através do contato com a linguagem artística
o sujeito vive diversos personagens e, por meio deles, experimenta outras possibilidades de vida e de existência. Este recurso pode ser importante para criar estratégias coletivas de enfrentamento ao modelo manicomial, uma vez que proporciona, aos seus participantes, um lugar, um espaço de convivência e de exercício da autonomia: elementos preconizados na atenção psicossocial. (Santos, Joca, & Souza, 2016, p. 369)
Apesar de não atuar diretamente sobre os motivos do uso da substância, a oficina estimulou o autoconhecimento e capacidade de autocontrole da conduta dos participantes, suscitando a reflexão de como relacionar-se de maneira mais consciente nas relações sociais das diversas esferas da vida. Somado a isso, à medida que colocávamos na oficina exercícios que exigiam reflexo e concentração, os participantes puderam trabalhar tais habilidades, sendo notório como, ao longo do tempo, foram progredindo não só individualmente como no coletivo, na mediação uns com os outros, desenvolvendo-se enquanto grupo.
Nesse sentido, a intervenção através da oficina buscou impulsionar, pela potencialidade da arte, o desenvolvimento da personalidade e da capacidade de expressão dos usuários. Porém, é necessário registrar que os limites da intervenção esbarravam também na capacidade de o serviço de concretizar as condições materiais necessárias na vida dos sujeitos para a construção de seu cuidado e autonomia. Estas, por sua vez, esbarravam nas limitações da economia e da política brasileira, em um contexto de aumento do desemprego e de piora das condições de vida da classe trabalhadora.
Analisou-se que as principais dificuldades de funcionamento do serviço e de formação da equipe advém das limitações do processo da reforma psiquiátrica brasileira. Apesar de ter logrado importantes avanços nas políticas e práticas de atenção psicossocial, a luta antimanicomial cambaleia em ser assumida enquanto pauta sindical ou social mais ampla. Pelo contrário, foi capitaneada pela crescente institucionalização e burocratização dos movimentos sociais (Albrecht, 2017) e sofre crescentes ataques, com destaque para a política de drogas. Alguns importantes setores do movimento antimanicomial foram incorporados aos aparelhos do Estado em cargos de coordenação de políticas públicas e, apostando nas reformas políticas, realizaram uma série de concessões que mantiveram a iniciativa privada na saúde e a existência de manicômios na RAPS, abandonando o projeto radical de estatização e desinstitucionalização da assistência em saúde mental. O resultado, após anos de luta antimanicomial, foi o consentimento com uma rede de atenção psicossocial frágil, embora relevante, que coexiste com a iniciativa privada e os manicômios, e está sob constante ameaça enquanto política social no contexto de arrochamento dos gastos públicos.
Desde 2015, assistimos a um processo cunhado por Pinho e Giannini (2019) de “Contrarreforma Psiquiátrica”, caracterizado por uma série de retrocessos e ataques contra os avanços nesse campo. Diante disso, a rede de atenção psicossocial está sob forte ameaça. É, portanto, de crucial importância que retomemos a luta antimanicomial em defesa dos CAPS, que sejam construídos laços fortes entre os profissionais em conjunto com usuários, familiares e comunidade pela explicitação da origem social dos processos de adoecimento e pela necessidade de mobilização social contra o retorno da lógica coercitiva nos aparatos de saúde e contra a piora das condições de vida da classe trabalhadora.
Isto posto, retomando Basaglia (1979), é necessário que os profissionais de saúde não cessem na busca por conhecer a sua realidade com o objetivo de transformá-la. Somente explicitando as contradições em seu caráter universal é possível criar as condições necessárias para a superação das condições materiais que originam o sofrimento psíquico, em uma luta que extrapola os limites do campo da saúde mental, envolvendo o conjunto da classe trabalhadora. Nesse sentido, buscamos explicitar neste artigo a potencialidade da arte para compor esse processo e a necessidade de continuar desenvolvendo recursos pautados na visão crítica da realidade e expressão dos sujeitos.
Notas
[1] As atividades do estágio foram supervisionadas pela professora Drª Melissa Rodrigues de Almeida, do Departamento de Psicologia da Universidade Federal do Paraná.
[2] O CAPS I atende municípios com população entre 20 e 70 mil habitantes e o CAPS II os municípios de 70 a 200 mil habitantes. Ambos funcionam de segunda à sexta-feira, das 8 horas às 18 horas. O CAPS III atende municípios com população acima de 200 mil habitantes e funciona 24 horas, diariamente e nos fins de semana (Brasil, 2004).
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