Revista CadernoS de PsicologiaS

Inventário de Desafetos

Tiago de Matos Peixoto
Mestre em Educação UFPR. CAPS Infanto-Juvenil do Município de Curitiba/PR

Psicólogo (CRP-08/23510) — E-mail: tiagompeixoto.psi@gmail.com
#Estilhaços

No início deste ano escrevi a uma amiga e confidente psicóloga, que trabalhou longos anos na saúde mental, sobre meu estado de ideias enquanto trabalhador também do campo de saúde mental. A sensação era de uma desafetação e desimplicação da equipe. Como se minhas palavras atravessassem às pessoas e as paredes. Pouco antes eu observava os relatórios de pacientes inseridos e me perguntava sobre as diferenças entre eles. As histórias pareciam tão iguais. Tentativas de suicídio, conflitos familiares, crises de ansiedade. E a visão ficava turva ao observar a tela do computador.

Após meses de pandemia e com a perda de importantes parcerias de trabalho — colegas que, provavelmente por sua competência e/ou cansaço, encontravam novas oportunidades de trabalho ou que viram a quase impossibilidade do nosso ofício dentro do contexto político mais amplo —, me vejo sozinho. A solidão que converge com a época da vida em que os caminhos que conduzirão a novos horizontes ainda estão pouco evidentes. Época da vida em que nem a sua mãe responde suas mensagens, pois pensa não tratar de nada urgente, algo que você como sujeito adulto que é consegue lidar tranquilamente sozinho.

Os pensamentos ficam matutando e sendo mastigados pelos meus miolos até parecem comprensados. Os casos são desafiantes, assim como é trabalhar com uma equipe desafetada. Começou por onde? Por mim ou por eles? Foi de repente? Ou foi um processo discreto que nos pegou de surpresa? Seria o desafeto um estado transitório ou um adversário?

Para entender este desenvolvimento retornei ao tempo, naquele momento em que eu chegava a um terreno efervescente e efervescendo de ideias, cheio de vontade de atender situações novas, pensar em desfechos distintos, descobrir estratégias com os usuários que ainda não haviam sido experimentadas, resgatando os potenciais, incluído os meus. Tudo nos conformes. Um caminho de saúde se edificava com a minha participação. Os desafios do trabalho pareciam estar presentes na medida certa para você conseguir manter-se motivado para transpô-los, não tão simples, nem por demais intransponíveis.

Foi pouco tempo até perceber que a equipe era um dos maiores desafios. Logo a gestão imediata mostrou a que veio e por consequência a gestão maior. Atento às questões organizacionais e políticas que implicam um serviço de saúde pública busco informações, busco suporte. Pode-se pensar que no período da pandemia de COVID-19 foi um período de grande comunicação a distância, mas que trouxe uma dificuldade importante para quem dependesse da ação política enquanto qualidade do seu trabalho. Compartilho com os colegas de classe que, com resignação, ouvem as palavras e demonstram concordância até as mesmas palavras atravessarem seus corpos e mentes e darem lugar a outras preocupações.

Tal desafetação é fruto das políticas? Talvez. No município em que vivo, a espera Conferência Municipal de Saúde Mental é feita a toque de caixa, com participação limitada e limitante. A vontade de contribuir é eclipsada pelo cansaço e esgotamento. Questiono-me então se tão desafetação é proveniente das limitações e privações vividas na vida cotidiana? Dos desafios pessoais? Da necessidade de trabalho ter que ser satisfeito em um serviço em que as pessoas não têm identificação nem interesse, mas cujas contas de luz, água e o desconto do empréstimo consignado não cessaram em comparecer?

Engajar-se em projetos de saúde mental comunitária não são deslocados dos aspectos sociológicos e antropológicos que constituem a subjetividade do trabalhador. Sobretudo, quando falamos de Reforma Psiquiátrica, quando falamos também de uma forma de abordar o ser humano e que passa necessariamente por uma reforma de princípios. Ora, isto não se faz sem dor, sem implicação, sem conflito, sem embate, sem afetos. Uma proposta como tal pode ser acolhida em diversas proporções, mas necessariamente atravessará às subjetividades também históricas e que são tangenciadas por diversos outros aspectos estruturantes da sociedade. Forneço dicas em forma de imagens aos interlocutores.

E aqueles profissionais de saúde que buscavam um emprego para pagar as contas e eis que vem-se empregando sua subjetividade como meio de trabalho mais do que gostariam, mais do poderiam? E as colegas do gênero feminino cujo grande interesse e foco maior é a maternidade, mas que as condições financeiras não deixaram-na optar por tal trabalho de forma integral? O conflito tão comum entre vida familiar e doméstica pode ser percebido em tons distintos. O desejo de estar em outro lugar é perceptível. O sorriso ao ligar para os filhos em horário de trabalho acompanha o desleixo com que alguns usuários podem ser tratados, com falta de esmero e candura. E aqueles profissionais de características caucasianas que atribuem a dificuldade de compreensão de migrantes de outros grupos de étnicos a simples “contratransferência” do mesmos? E aqueles colegas que desistiram do trabalho, mas que a proximidade do lar e a percepção de que não encontrarão nada melhor no dito ‘mercado de trabalho’, os faz permanecer como pesados pesos mortos nas equipes? E aqueles colegas, e neste grupo me incluo, que fazem uso contínuo de medicações psicotrópicas? Já somos a maioria?

Percebi que as palavras e ideias, impregnados das discussões que formatam o modelo de reabilitação psicossocial, não atravessaram as paredes. Elas marcaram os espaços, grafaram as mobílias, podendo ser ouvidas ou em forma de diálogo e lembrança ou como alguma forma de sussurro fantasmagórico. A linha tênue que separa uma proposta de saúde vivaz e coletiva com a morbidade de uma instituição onde os profissionais estão desafetos é frágil e, por vezes, invisível. Como uma substância que se esvai, os afetos de quem compartilha estes espaços podem torna-se fina flagrância ou odor putrefato. E a acuidade auditiva destes cômodos que testemunharam trabalho árduo, depende não só de mim, mas das capacidades dos colegas de engatarem-se em redes, reconhecerem suas fragilidades e potencialidades, fazerem interlocuções com outros espaços, tirarem dos baús sua cidadania. Pode-se pensar que os tempos de pandemia tenham atingindo o espírito, ainda emergente da saúde mental como proposta maior, ou, tenham apenas trazido à tona velhas e conhecidas angústias, as quais também é importante ouvir e cuidar de forma singular.

Por hora, as máscaras que nos protegem de vírus letais, nos protegem da toxicidade de nossa apatia. Contudo, pandemias passam e as consequências ficam em forma de memória saudosa ou pura lamentação.

Como citar esse texto

APA – Peixoto, T. M. (2022). Inventário de desafetos. CadernoS de PsicologiaS, 3. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/inventario-de-desafetos/

ABNT – PEIXOTO, T. M. Inventário de desafetos. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 3, 2022. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/inventario-de-desafetos/. Acesso em: __/__/____.