#Relatos_de_experiências
Resumo: A extensão universitária tem o importante papel de integrar ensino, pesquisa e extensão, proporcionando rica troca com a comunidade, além de contribuir para a formação prática de profissionais qualificados. No contexto da pandemia da Covid-19, projetos de extensão precisaram se reinventar, desenvolvendo atividades em formato remoto e utilizando redes sociais para comunicação com a comunidade. O presente trabalho tem o objetivo de apresentar um relato de experiência da equipe do projeto Luto: Vivências e possibilidades, da Universidade Federal do Paraná, durante a pandemia. Nesse período, o projeto realizou diversas atividades: a divulgação em redes sociais, o desenvolvimento de cartilhas e a realização de grupos de enlutados online. Conclui-se que apesar das dificuldades apresentadas pelo trabalho remoto, com tema sensível, a extensão proporcionou aprendizado relevante para a formação profissional das extensionistas, em especial, a construção de uma escuta sensível no contato com a comunidade.
Palavras-chave: extensão universitária; luto; Covid-19.
BEREAVEMENT IN THE PANDEMIC: EXPERIENCE REPORT OF A UNIVERSITY EXTENSION PROJECT
Abstract: University extension has the vital role of integrating teaching, research, and extension, providing a rich exchange with the community and contributing to the practical training of qualified professionals. In the context of the Covid-19 pandemic, extension projects needed to reinvent themselves, developing activities in a remote format and using social networks to communicate with the community. The present work aims to present an experience report of the Luto: Experiences and Possibilities team, from the Federal University of Paraná, during the pandemic. During this period, the project carried out several activities: divulgation on social networks, the development of booklets, and the organization of groups for the bereaved online. It concludes that despite the difficulties presented by remote work, with a sensitive theme, the extension provided relevant learning for the professional training of extension workers, particularly the construction of sensitive listening in contact with the community.
Keywords: university extension; bereavement; Covid-19.
DUELO EN LA PANDEMIA: INFORME DE EXPERIENCIA DE UN PROYECTO DE EXTENSIÓN UNIVERSITARIA
Resumen: La extensión universitaria tiene el importante papel de integrar la enseñanza, la investigación y la extensión, proporcionando un rico intercambio con la comunidad, además de contribuir a la formación práctica de profesionales calificados. En el contexto de la pandemia Covid-19, los proyectos de extensión necesitarán reinventarse, desarrollando actividades en formato remoto y utilizando las redes sociales para comunicarse con la comunidad. El presente trabajo tiene como objetivo presentar un relato de experiencia del equipo del proyecto Luto: Experiencias y Posibilidades, de la Universidad Federal de Paraná, durante la pandemia. Durante este período, el proyecto llevó a cabo varias actividades: la difusión en redes sociales, la elaboración de cartillas y la organización de grupos online para los enlutados. Se concluye que a pesar de las dificultades que se presentan en el trabajo a distancia, con un tema sensible, la extensión proporcionó aprendizajes relevantes para la formación profesional de los extensionistas, en particular, la construcción de una escucha sensible en contacto con la comunidad.
Palabras clave: extensión universitaria; luto; Covid-19.
A extensão universitária é um dos pilares da formação do estudante de graduação (Santos, Rocha, & Passaglio, 2016). As atividades e ações desenvolvidas na extensão têm o importante papel de vincular a universidade à comunidade em que está inserida. É por meio dela que a universidade pode cumprir com o seu compromisso social, atendendo as necessidades da comunidade e visando a melhoria na qualidade de vida da população (Costa & Neto, 2013; Nunes & Silva, 2011).
Seguindo o princípio de indissociabilidade entre ensino, pesquisa e extensão, que rege as universidades brasileiras, um dos papéis desempenhados pela extensão é o de integrar o ensino e a pesquisa, permitindo a transmissão dos saberes produzidos na universidade, além de gerar novos conhecimentos e frentes de pesquisa, já que coloca a instituição em contato direto com a comunidade, permitindo a apreensão das suas necessidades e condições sociais (Diniz et al., 2020; Hennington, 2005; Santos et al., 2016). A extensão possibilita, portanto, uma via de mão dupla, já que o vínculo desenvolvido com a comunidade propicia uma rica troca de conhecimentos com a sociedade. Nesse sentido, a abertura da universidade para além da comunidade acadêmica mostra-se relevante tanto para a divulgação dos conhecimentos produzidos na universidade quanto para a formação de futuros profissionais (Santos et al., 2016).
A formação de profissionais qualificados e implicados socialmente não deve se limitar à transmissão de conhecimentos teóricos (Nunes & Silva, 2011). Nesse contexto, a extensão desempenha um papel fundamental nas universidades brasileiras, permitindo o desenvolvimento de uma prática profissional ética e qualificada, expandindo as abrangências curriculares. A prática é, intrinsecamente, um aprendizado formativo que coloca estudantes em contato com problemáticas e necessidades cotidianas que futuramente encontrarão em seu exercício profissional (Santos et al., 2016). Desse modo, a importância da prática na formação de estudantes de graduação suplanta a mera aplicação de conhecimentos teóricos aprendidos em sala de aula, permitindo também a construção de novos conhecimentos.
Segundo Hennington (2005), a extensão universitária representa uma “vivência imprescindível para a sua formação” (p. 259), pois proporciona aos estudantes um aprendizado que ultrapassa o contexto de sala de aula, permitindo a integração entre teoria e prática e contribuindo para a formação profissional e cidadã, consciente das necessidades da comunidade (Hennington, 2005; Costa & Neto, 2013; Diniz et al., 2020). Nesse sentido, a extensão ganha destaque especialmente no curso de psicologia, já que proporciona um espaço de aprendizado prático e supervisionado, mesmo antes dos estágios obrigatórios do último ano (Souza & Neto, 2020), ampliando a perspectiva que estudantes têm do seu campo profissional, ao apresentar novas possibilidades de atuação (Santos et al., 2016).
Com a pandemia da Covid-19 e as consequentes medidas de distanciamento físico, a universidade precisou adaptar suas práticas de ensino, pesquisa e extensão. Mais do que nunca, os serviços prestados pela instituição ganharam destaque e o papel da extensão se viu ampliado pela exacerbação dos problemas e das necessidades sociais (Diniz et al., 2020; Silva et al., 2021). Atendendo a essas necessidades, as universidades de todo o país, em especial as públicas, desempenharam importante papel na rede de combate à Covid-19, seja pela produção e distribuição de equipamentos, pela divulgação de informações relevantes e com linguagem acessível para as camadas mais vulneráveis da sociedade, seja pelo atendimento e acolhimento da população (Diniz et al., 2020; Mélo, Farias, Nunes, Andrade, & Piagge., 2021; Silva et al., 2021).
Antes da pandemia, muitos projetos de extensão no país já colocavam a universidade em contato direto com a comunidade, com atendimentos e prestação de serviços presenciais, por exemplo, e por isso, precisaram se reinventar nesse período (Diniz et al., 2020, Mélo et al., 2021). A tecnologia permitiu um novo caminho para vários deles, que passaram a manter seu vínculo com a sociedade por meio de redes sociais e aplicativos de conversa (Diniz et al., 2020). Na Universidade Federal do Paraná (UFPR), por exemplo, muitos projetos continuaram suas atividades de maneira remota, adaptando ações e criando novos modelos de atuações que permitiram um maior alcance da extensão pelas redes sociais. Do mesmo modo, o projeto Luto: Vivências e possibilidades, se reestruturou durante a pandemia, transferindo suas atividades para o formato online e investindo em novas ações, como a divulgação científica por meio do Facebook e do Instagram.
O objetivo do presente trabalho é apresentar um relato de experiência da equipe do projeto Luto: Vivências e possibilidades no período de pandemia da Covid-19. Para tanto, apresentaremos uma breve trajetória do projeto antes da pandemia, a relevância de um projeto sobre o tema do enlutamento em tempos de pandemia, os desafios da transição para o modelo remoto e, finalmente, apresentamos breves reflexões sobre o impacto da prática de extensão on-line na formação das extensionistas, como estudantes de graduação da área da saúde, especificamente do curso de psicologia.
O projeto de extensão Luto: Vivências e possibilidades é vinculado ao Departamento de Psicologia (DEPSI) da UFPR e surgiu por meio de uma parceria entre o Laboratório de Psicopatologia Fundamental e o grupo Amigos Solidários na Dor do Luto (ASDL). O projeto realiza ações desde 2011, tendo sido formalizado no ano de 2014. Desde o início, a coordenação é realizada pelas professoras Joanneliese de Lucas Freitas e Maria Virginia Filomena Cremasco do DEPSI/UFPR.
Até 2019, o objetivo principal do projeto foi acompanhar e dar suporte emocional às pessoas do grupo ASDL e desenvolver conhecimento científico sobre o tema. Em 2020 e 2021, com a pandemia e as imposições das medidas sanitárias, o projeto começou a trabalhar com parcerias dentro da própria universidade. Em um primeiro momento, integrou uma ação de prevenção em saúde mental e acolhimento da comunidade acadêmica, junto ao programa UFPRConvida (Você Importa), também vinculado ao DEPSI.
Com o objetivo de se aproximar da comunidade externa e de divulgar conhecimento de qualidade visando o suporte mútuo e o autocuidado, o projeto investiu na produção de materiais no formato de cartilhas. Com discentes egressos da disciplina optativa Psicologia da Morte, produziu três cartilhas de suporte ao luto, a saber, Como ajudar alguém em luto[1], Mitos sobre luto[2] e Luto e profissionais da saúde[3]. Essa última, também em parceria com o Instituto Federal do Paraná (IFPR) que desenvolveu o design da cartilha. Em parceria com o projeto Português Brasileiro para Migração Humanitária (PBMIH), elaborou material informativo sobre a vivência do luto na pandemia. Para acessibilidade do público migrante, esse material foi traduzido para seis línguas e divulgado nas redes sociais de ambos os projetos. Conjuntamente ao projeto de extensão da UFPR Movimentos Migratórios e Psicologia (MOVE) foram produzidas mais quatro cartilhas sobre saúde mental, luto e migrações direcionadas a profissionais da saúde.
No segundo semestre de 2020 o projeto iniciou uma nova ação de atenção em saúde mental, oferecendo grupos de suporte emocional on-line a enlutados. A ação se caracterizou como uma pesquisa-ação, com objetivo de oferecer suporte e também produzir conhecimento sobre a experiência do enlutamento por Covid-19. Para o desenvolvimento dos grupos, o trabalho contou com extensionistas do projeto e também com estagiárias em psicologia da saúde, todas orientadas pela professora coordenadora. Entre outubro de 2020 e julho de 2021 foram realizados dez grupos de acolhimento a enlutados, alcançando cerca de cem pessoas. Essa ação mostrou a necessidade de formação de profissionais no contexto do enlutamento, o que nos levou a organizar em maio de 2021 um curso para profissionais da saúde nomeado Luto, existência e clínica.
Diante do alcance das cartilhas, que foram consultadas por mais de duas mil pessoas nesse período, decidimos manter ações no contexto da Educação para a Morte, que entendemos como um conjunto de ações que visam permitir uma maior aproximação da comunidade em geral a temas relacionados à morte, ao morrer e ao luto, por meio da apresentação e reflexão crítica de conhecimento filosófico e científico, de situações e temas da literatura e de diversas artes, abrindo possibilidades para a desmistificação do morrer e dos tabus que envolvem a morte, tornando-a mais próxima de nossa condição humana e existencial. Para tanto, foi aberta uma conta no Instagram e uma no Facebook, que contam hoje com mais de 1500 seguidores, somadas as duas redes.
Além dessas ações, no ano de 2021 as extensionistas envolvidas no projeto apresentaram três trabalhos no 5° Fórum de Direitos Humanos e Saúde Mental. Os trabalhos foram intitulados O dispositivo grupal no cuidado mútuo na pandemia – experiência dos grupos de enlutados, O enlutamento por Covid-19 e Considerações e perspectivas sobre a morte e o luto a partir das cartilhas sobre o tema. As temáticas trabalhadas versaram, respectivamente, relatar a experiência dos grupos de enlutados, debater o enlutamento por Covid-19 por meio dos dados iniciais da pesquisa em andamento e tecer considerações sobre a morte e o luto a partir das cartilhas produzidas pelo projeto. Por meio dessas apresentações, as extensionistas puderam refletir acerca do trabalho desenvolvido ao compartilhar suas produções e ter a possibilidade de conhecer outras experiências e ouvir comentários sobre seu trabalho. A participação em eventos científicos e sociais mostrou-se como um importante momento de intercâmbio com pessoas de outros locais do Brasil que também se interessam pelas temáticas que o projeto trabalha e estuda, neste caso, direitos humanos e saúde mental.
Como anteriormente abordado, a extensão universitária funda-se no compromisso social de produzir conhecimento com e para a comunidade de modo a auxiliar no enfrentamento de problemáticas sociais. No contexto da pandemia de Covid-19, a universidade e, especificamente a extensão, é chamada a cumprir esse papel, respondendo às demandas sociais que surgem ou são exacerbadas neste momento. Nesse sentido, por conta da pandemia, a temática do enlutamento passou a se fazer mais presente em nossa vida cotidiana, com lutos ocasionados pelas bruscas mudanças no âmbito da vida diária e, principalmente, pelas perdas causadas pelas mortes por Covid-19. Esse contexto fez com que pensássemos sobre a formação de profissionais, em especial psicólogos, para atuar com o fenômeno do luto.
A formação acadêmica de profissionais da saúde acerca da terminalidade e finitude possui diversas lacunas (Lima & Buys, 2008; Santos, Corral-Mulato, & Bueno, 2014). Essas ausências revelam o caráter biológico da formação, em detrimento de um foco humanista, o que pode produzir uma visão de saúde voltada à doença e ao prolongamento da vida, isto é, dentro de um paradigma do curar (Pessini, 2001 apud Kovács, 2005). Essa noção, comum entre profissionais da saúde, pode produzir sofrimento diante da dificuldade de ressignificação do luto frente às inevitáveis perdas de pacientes.
Nesse contexto, sobretudo no momento de pandemia, compreende-se a importância da temática da morte e do luto na formação de profissionais da saúde, por meio de aulas, palestras, projetos de pesquisa e extensão e, principalmente, disciplinas englobadas no currículo que permitam a continuidade da discussão na formação acadêmica. Em especial, uma formação que aborde os processos relacionados à morte e ao morrer e suas implicações sociais e psicológicas, visando o cuidado integral dos pacientes em suas dimensões físicas, sociais, psicológicas e espirituais (Lima & Buys, 2008). Tal enfoque, ao propiciar maior contato com a temática de modo teórico e pessoal, abre a possibilidade de construção de modos mais éticos no cuidado dos pacientes, ao considerar que a morte faz parte da existência e, mais do que curar ou salvar vidas a qualquer custo, faz-se mister cuidá-las em suas singularidades.
A temática do enlutamento e suas especificidades sempre foi relevante na formação acadêmica e profissional na área da saúde, todavia, durante a pandemia essa importância se torna mais evidente. Em novembro de 2021, momento da escrita do presente trabalho, o Brasil contabilizava 610.491 mortes por Covid-19[4]. Sendo que, se para cada morte há, no mínimo, quatro pessoas enlutadas, temos mais de 2.400.000 enlutados no Brasil, diretamente relacionados à crise sanitária do novo coronavírus. As dores do luto e dos impactos da pandemia, podem deixar marcas, produzindo reverberações que serão sentidas no âmbito pessoal e coletivo por muitos anos.
As atuações realizadas no projeto, somadas às pesquisas recentes na área da saúde, mostram que a pandemia anunciou reformulações da experiência do morrer e seus rituais (Cardoso et al., 2020), fazendo com que os enlutados pela morte por Covid-19 vivam experiências particulares. Nesse sentido, há características da pandemia que podem dificultar o processo de ressignificação do luto, como a morte repentina e inesperada, o isolamento, a ocorrência de múltiplas perdas, a supressão ou modificação dos rituais fúnebres, a impossibilidade de ver o corpo, a distância das redes de suporte, as disputas políticas de narrativa sobre a morte pelo vírus (Cardoso et al., 2020; Dantas et al., 2020).
Diante deste contexto, com o enlutamento tão presente e as possíveis dificuldades de ressignificá-lo, o projeto de extensão Luto: Vivências e possibilidades é convocado a permanecer em sua atuação com enlutados, porém, voltando-se com maior ênfase às pessoas que perderam entes queridos pela Covid-19. Em nosso projeto, partimos da perspectiva de que o luto não é uma experiência que se supera, no sentido de que termina como um processo ou como se houvesse uma possibilidade de retorno a uma vida anterior, mas se incorpora ao existir dos enlutados, permitindo novas significações diante da própria vida (Freitas, 2018). Assim, o luto demanda um trabalho de ressignificar a relação com aquele que se foi, que embora deixe de existir corporalmente permanece vivo nos que ficaram.
Com essa perspectiva, foram realizadas intervenções de suporte entre pares com a mediação de estudantes de psicologia, a fim de produzir um espaço grupal de acolhimento e confiança em que as pessoas enlutadas possam expressar e ressignificar seu sofrimento, evitando assim, possíveis complicações ou patologizações. Os grupos de enlutados têm proporcionado a possibilidade dessa ressignificação, sendo um espaço de fala, escuta e troca a respeito da morte e do morrer. Espaço relevante dada a interdição cultural acerca desses temas, restringindo os espaços sociais onde são bem recebidos (Kovács, 2005). Contudo, mesmo que na comunicação cotidiana estejam dificultados, podem ser compartilhados entre pessoas que vivem o luto, com ganhos para sua saúde mental.
O acolhimento a enlutados por Covid-19 durante a pandemia ocasionou, portanto, o contato dos estudantes de psicologia com o luto e a finitude, aprofundando sua formação de graduandos em psicologia que irão lidar com o luto em seus diversos campos de trabalho, e cumprindo um papel de resposta de cuidado à comunidade brasileira.
Com as medidas de distanciamento social impostas pela pandemia, como explicado anteriormente, as atividades que antes eram desenvolvidas presencialmente foram suspensas, como o acompanhamento do grupo ASDL. Não foi possível dar continuidade a essa atividade, pois o grupo ASDL é gerido pelos próprios participantes, que não se adaptaram ao formato remoto. A partir disso, o projeto suspendeu suas atividades durante algumas semanas até que fosse possível vislumbrar outras possibilidades de atuação. As supervisões, que antes eram presenciais, passaram a ocorrer de forma remota pela plataforma Microsoft Teams.
A pandemia exigiu reformulações e adaptações nas extensões universitárias, sendo que nem todos os projetos conseguiram dar continuidade às suas atividades. Segundo pesquisa sobre extensões universitárias e seus desafios durante a pandemia, desenvolvida por Mèlo et al. (2021), apenas 51% das instituições analisadas continuaram atendendo a comunidade externa durante a pandemia. Entretanto, mesmo que o projeto Luto: vivências e possibilidades tenha conseguido dar continuidade às atividades, esse processo foi bastante desafiador. Para que seja garantida a viabilidade do processo de ensino e aprendizagem no ensino superior em tempos de pandemia, Gusso et al. (2020) apontam que alguns fatores devem estar presentes, como: a proporção entre a quantidade de computadores disponíveis e a quantidade de pessoas que necessitam utilizá-los para trabalho ou estudo, o acesso à internet e a qualidade de conexão, o repertório de professores e estudantes para manejar a plataforma de ensino, as características do ambiente de trabalho e estudo, os tipos de dificuldade que professores e estudantes enfrentam e as expectativas que cada pessoa envolvida no processo de ensino e aprendizagem possui em relação a esse processo.
As extensionistas estavam sensibilizadas com a conjuntura, com as medidas de distanciamento físico e as perdas vividas, experimentando muitas incertezas em relação a suas vidas pessoal e acadêmica. Surgiram receios de diferentes ordens em relação à viabilidade e à possibilidade de adaptação do trabalho para o modelo virtual, com todas as suas implicações, como por exemplo: o acesso a uma conexão de internet de qualidade, a computadores funcionais e a lugar adequado para participar das reuniões em casa. Ainda, era notória a sobrecarga de trabalho acumulado entre atividades acadêmicas e familiares, os dilemas sobre a viabilidade dos processos de ensino e aprendizagem no modelo virtual e as exigências sobre a disponibilidade pessoal para desenvolver e sustentar ações voltadas ao luto na pandemia, estando todas com a saúde mental fragilizada e vivendo também os desafios desse momento.
Apesar das dificuldades enfrentadas, é possível avaliar que conseguimos viabilizar a continuidade dos processos de ensino e aprendizagem mesmo no modelo remoto. Não é possível tecer comparações precisas entre o modelo remoto e o presencial, pois as atividades desenvolvidas foram alteradas, nem metrificar com precisão os reais impactos dessa mudança para o ensino. Mas, é possível destacar que ao longo desses quase dois anos de modelo remoto, conseguimos desenvolver estratégias que nos ajudaram no processo de aprendizagem, formação e atuação junto às comunidades. Durante algumas supervisões online, além do espaço de orientação quanto à realização das atividades, criamos um espaço de compartilhamentos de nossas vivências e dificuldades enfrentadas na pandemia. Esses aspectos facilitaram nosso desenvolvimento e continuidade na extensão e nos abriram possibilidades de mantermos os vínculos com a universidade e o projeto, mesmo diante das incertezas apresentadas pelo modelo remoto e pela pandemia.
Participar de um projeto de extensão pode assumir sentidos diferentes para cada extensionista, mas existem pontos em comum vividos por todas, como por exemplo: a possibilidade de aprofundar leituras sobre a temática trabalhada, aprender sobre a psicologia para além da sala de aula, desenvolver a escuta que é tão cara à psicologia e ter a possibilidade de construir de forma ativa o lugar de futuros psicólogas e psicólogos, por meio dos contatos que fazemos com a comunidade, as relatorias que escrevemos nos grupos de enlutados ou a produção de materiais que realizamos (postagens nas redes sociais, pesquisas ou cartilhas).
Uma das principais atividades neste período foi a produção de conteúdo por meio de cartilhas e posts nas redes sociais. Segundo (Mélo et al., 2021):
Alguns projetos mantiveram o mesmo enfoque temático, fazendo uso das redes sociais e das Tecnologias da Informação e Comunicação (TIC) para se adaptar ao novo cenário, enquanto outros mudaram o enfoque do projeto uma forma de se adequar ao cenário atual. (p. 9)
Esse foi o nosso cenário, reformulamos algumas atividades e ampliamos as postagens nas redes sociais com uma perspectiva de educação para a morte.
A partir da educação para a morte, entende-se a relevância em criar espaços de reflexão e discussão acerca da morte e do morrer, em especial “numa sociedade na qual convivem a morte interdita, a busca da reumanização da morte e a morte escancarada no cotidiano das pessoas’’ (Kovács, 2005, p. 488) se torna relevante. Encontrou-se nas redes sociais uma via para trabalhar por esta perspectiva, conectando-se com a comunidade e divulgando conhecimento científico, de modo a propor e incentivar reflexões sobre a morte, o morrer e o luto.
Nesse processo de produção de conteúdo, as extensionistas puderam se apropriar da temática do luto abordando distintos atravessamentos – como luto e migração, luto e profissionais da saúde, entre outros – buscando transmitir esses conhecimentos de modo condizente aos públicos almejados. Isto é, pensando em maneiras de adaptar a linguagem acadêmica, para muitos abstrata e incompreensível, às linguagens utilizadas nas redes sociais, alcançando públicos distintos. Esse trabalho de comunicação com a comunidade não acadêmica, foi também incrementado pela produção de materiais, em especial de cartilhas informativas. Além da dimensão comunicativa e da adaptação da linguagem, houve importante aprendizado sobre seus processos de produção, com suas diferentes etapas, desde a concepção, revisão, diagramação, publicação, até a divulgação.
Outra direção do trabalho impactante no processo formativo foi o acompanhamento dos grupos de acolhimento para enlutados. Nesses espaços, as extensionistas tiveram a chance de acompanhar o desenvolvimento desses grupos, aprendendo sobre seu funcionamento, sobre as particularidades que atravessam a prestação de serviços psicológicos por meio de Tecnologias da Informação e da Comunicação (TICs), assim como observar a função das facilitadoras que foi desenvolvida por estagiárias do curso de psicologia. Essa atuação se tornou relevante para o aprendizado sobre o papel da psicologia na escuta e no trabalho com o luto e com grupos.
No que tange à aprendizagem e ao aprofundamento da escuta, foi possível perceber que essa se caracteriza como um processo que pode se dar de diversas formas. Na extensão, aprendemos a ouvir as vivências de luto a partir da perspectiva fenomenológico-existencial e de todo o saber vivencial transmitido pelas próprias pessoas enlutadas. Tanto no grupo ASDL, quanto nos grupos de acolhimento para enlutados por Covid-19, as participantes, ao compartilharem suas experiências de enlutamento, nos abrem a possibilidade de nos aproximarmos do fenômeno do luto em sua singularidade. Além disso, a escuta dessas experiências nos permite a reflexão sobre nossa existência e finitude, bem como a de pessoas próximas, contato importante que sem dúvida terá repercussões em nosso exercício profissional futuramente.
A possibilidade de estar em contato direto com o fenômeno do luto, por meio das vivências compartilhadas pelos participantes da comunidade que aderiram ao nosso trabalho e por meio do conjunto de todas as ações que realizamos, contribuiu para a construção de um conhecimento vinculado à prática e contextualizado. E, a partir disso, tivemos a oportunidade de expandir nossa formação em psicologia. Além disso, no que tange à experiência de enlutamento, com a prática extensionista, pudemos caminhar para um fazer profissional mais aberto, ético e que respeite as experiências singulares. Essas possibilidades não poderiam ser vislumbradas apenas com o conhecimento teórico que aprendemos em sala de aula, deslocados da própria vida.
Devido às limitações criadas pela pandemia da Covid-19, muitos projetos de extensão universitária precisaram se reinventar em todo o país, com o objetivo de continuar cumprindo o seu importante papel social. Do mesmo modo, o projeto Luto: Vivências e possibilidades adaptou algumas de suas atividades para o modelo remoto, com grupos de acolhimento para enlutados por Covid-19, além de iniciar um trabalho amplo de divulgação científica pelas redes sociais. O presente trabalho buscou expor brevemente o histórico do projeto, bem como o processo de adaptação para o virtual, as atividades desenvolvidas e a relevância de um projeto de extensão sobre o luto nesse período pandêmico, para finalmente, refletir sobre tais aspectos em seu impacto na vida acadêmica e formação das extensionistas.
Apesar das grandes barreiras impostas pela pandemia em todas as dimensões da vida, a participação no projeto proporcionou às extensionistas um período de grande aprendizado, com a construção de novos conhecimentos e habilidades que modificaram de forma decisiva sua formação e futura prática profissional. Com o intercâmbio com outros profissionais em congressos, o desenvolvimento de cartilhas e posts para a educação para a morte, divulgadas nas redes sociais, as estudantes puderam aprofundar os seus estudos sobre a temática do morrer e do luto, que não são amplamente abordadas no currículo obrigatório. Além disso, a participação nos grupos de enlutados permitiu o contato com a atuação prática da psicologia, possibilitando o desenvolvimento da escuta e de uma sensibilidade essenciais para a profissão.
[1] Disponível em: https://plataformaintegrada.mec.gov.br/recurso/357318
[2] Disponível em: https://plataformaintegrada.mec.gov.br/recurso/357871
[3] Disponível em: https://plataformaintegrada.mec.gov.br/recurso/357543
[4] Dados segundo “Painel Coronavírus”, site interativo do Ministério da Saúde Ministério desenvolvido como veículo oficial de comunicação sobre a situação epidemiológica da pandemia de Covid-19 no Brasil com atualização diária. Disponível em: https://covid.saude.gov.br/. Dados relativos ao acesso realizado em: 13 nov 2021.
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ABNT – MUNIZ, A. M. et al. Luto na pandemia: relato de experiência de um projeto de extensão universitária. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 2, 2021. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/luto-na-pandemia-relato-de-experiencia-de-um-projeto-de-extensao-universitaria/>. Acesso em: __/__/____ .