Revista CadernoS de PsicologiaS

Manicômios com nova roupagem: o deslocamento do aparato manicomial para comunidades terapêuticas

Carline Engel Krein
Residência em Saúde da Família — Universidade Federal da Integração Latino-americana (UNILA)

Psicóloga (CRP-08/34729) — E-mail:carline.engel@hotmail.com
#Inquietações_teóricas

Resumo: Os modelos de instituições utilizados nos dias de hoje para dar conta de uma população em sofrimento psíquico, mais especificamente, os toxicômanos; podem ser compreendidos como resultantes de uma história social da loucura que deixou marcas, esta história não se restringe ao período em que desdobra sua origem, mas pode-se constatar deslocamentos obtidos a partir dela, os quais mantêm-se presentes na contemporaneidade. O objetivo de tal artigo é realizar uma retomada histórico-social acerca das instituições de internamento bem como o entendimento de questões psicossociais que incidem e se produzem a partir do discurso presente nas instituições para que desta maneira possa-se realizar uma reflexão acerca do tema proposto, utilizando-se de uma pesquisa bibliográfica para atingir tal objetivo. Também serão abordadas questões relativas ao papel da psicologia frente a sujeitos submetidos ao internamento, logo, propõe-se compreender as marcas deixadas pela história no discurso sustentado nos dias de hoje.

Palavras-chave:psicologia social; luta antimanicomial; toxicomanias.

NEW APPEARANCE OF MENTAL HOSPITALS: THE MANICOMIAL ATMOSPHERE DISPLACEMENT TO THE THERAPEUTIC COMMUNITIES

Abstract: The institution models that are used nowadays to deal with people in psychological suffering, specifically the addicted is a result from a social madness history that have left impressions, this history is not only in the period of its origin, but can be realized a displacement that came from it, these are presents currently. The objective of this article is to make a social historic trajectory on the internment institutions comprehending psychosocial issues that concern and are produced by the institutions speech in order to think about the proposed subject, for that it has been used a bibliographic research to reach the objective. Also this article will approach subjects as the role of psychology regarding people who are subordinated to internment, therefore this article proposes to understand impressions that have been left by the history on the people and the speech which society carries currently.

Keywords: social psychology; antimanicomial struggle; addiction.

MANICOMIOS DE NUEVO ROPAJE: EL DESLOCAMIENTO DEL APARATO MANICOMIAL PARA LAS COMUNIDADES TERAPÉUTICAS

Resumen: Los modelos institucionales que se utilizan en la actualidad para sostener una población en sufrimiento psíquico, más específicamente, los toxicómanos pueden ser resultante de un historial social de la locura, que ha dejado marcas. Esta historia no está solamente en el periodo de su origen, sino que, puede constatar que la misma obtuvo dislocamientos, los cuáles están presentes hasta la contemporaneidad. El objetivo de este artículo es realizar una trayectoria histórico-social acerca de las instituciones de internación con la comprensión de cuestiones psicosociales que se producen desde el discurso presente en las instituciones, para que sea posible reflexionar acerca del tema, utilizando una investigación bibliográfica para alcanzar el objetivo.  También, serán abordados cuestiones como el rol de la psicología frente a sujetos sometidos a la internación y de qué manera los mismos se presentan. Por lo tanto, se propone comprender las marcas dejadas por la historia en el discurso social hasta los días de hoy.

Palabras clave: psicología social; luta anti manicômio; toxicomanías.

Introdução

Durante muito tempo, a loucura esteve encerrada entre as paredes institucionais e destinada a ser excluída e apartada da sociedade. Abordar a história da loucura é escancarar uma existência marcada pela dor do ser. Apesar desta história ser marcada por práticas higienistas e excludentes, a mesma não foi completamente superada. 

Para compreensão da temática proposta, utilizou-se de pesquisa bibliográfica de natureza qualitativa, contemplando livros clássicos que abordam questões históricas da loucura, bem como artigos de autores contemporâneos que deram subsídios para a produção desta inquietação teórica e os respectivos documentos que amparam a reforma psiquiátrica. 

Entende-se que as novas concepções propostas pela Reforma Psiquiátrica Brasileira trazem possibilidades de novas reflexões, garantindo por meio da Política Nacional de Saúde Mental os direitos das pessoas em sofrimento psíquico.  No entanto, as expansões dos internamentos em decorrência do uso de substâncias psicoativas com destino às comunidades terapêuticas trazem questionamentos acerca da utilização do enclausuramento com justificativa de fins terapêuticos.

De acordo com Fossi e Guareschi (2015) nas últimas décadas, a questão do uso de substâncias psicoativas tem ocupado um lugar significativo na mídia, nos planos de governo e no cotidiano dos trabalhadores e dos serviços de saúde, bem como da sociedade em geral. 

Com isso, entende-se a importância de trazer discussões sobre o assunto, pensando como uma questão de saúde pública com fatores biopsicossociais. Contudo, vê-se que mesmo com os movimentos da luta antimanicomial, a forma de tratamento ainda se pauta na segregação, exclusão e utilização de preceitos higienistas como formas de controle social. 

Os investimentos destinados às comunidades terapêuticas a partir de sua entrada na rede de atenção à saúde têm aumentado, ainda que as mesmas tenham uma proposta contraditória à aquela ofertada pelo Sistema Único de Saúde para o tratamento das toxicomanias, o qual preconiza a redução de danos em detrimento da abstinência. 

Portanto, discutir a temática e os possíveis deslocamentos do aparato manicomial para a sociedade contemporânea, e especificamente para as instituições atuais, como as comunidades terapêuticas, faz-se necessário compreender as seguintes questões: seguiriam as comunidades terapêuticas a lógica manicomial? Há um deslocamento do aparato manicomial para estas instituições? As toxicomanias são uma forma de loucura contemporânea? 

O início das instituições de reclusão

Busca-se nesse momento, compreender os processos históricos das instituições de reclusão, com suas características pautadas na lógica de um tratamento para questões desviantes da época, a fim de levantar pontos de discussões que possibilitem, posteriormente, questionar possíveis deslocamentos do aparato manicomial e de instituições asilares para a contemporaneidade. 

Os primeiros modelos de instituições de reclusão foram os leprosários; é com esta população que se inicia o enclausuramento de pessoas com a justificativa de tratamento, portanto, os leprosos eram excluídos da sociedade a qual habitavam e enviados para instituições com a finalidade de contenção dos mesmos, visto que a partir de uma concepção religiosa, estes, eram considerados impuros (Foucault, 1972/2017).

No entanto, os movimentos excludentes não se resumem aos leprosos. De acordo com Foucault (1972/2017) o aprisionamento passa a ser utilizado para o enfrentamento dos problemas sociais, com o apartamento social dos pobres ou todos aqueles desviantes da ordem social pré-estabelecida. 

O movimento higienista europeu com suas práticas de sequestração e enclausuramento se espalham pelo mundo, utilizando-se de Instituições Totais para lidar com questões socialmente rejeitadas. Tais instituições têm por característica o encarceramento dos sujeitos mantendo-os fora do convívio social, adequando-os à realidade da instituição, o que causa uma “mortificação do eu”, a perda de sua identidade e intenso sofrimento (Goffman, 1961/2015). 

 Apresentam-se ao público como organizações racionais e planejadas para atingir determinados objetivos. Dentre estes objetivos, um deles é transformar os internados na direção de algum padrão ideal imposto pelo social, conforme pontua Goffman (1961/2015). Assim, “o gesto que aprisiona não é mais simples: também ele tem significações políticas, sociais, religiosas, econômicas e morais.” (Foucault, 1972/2017, p. 53).

As formas de tratamento utilizadas estavam baseadas no trabalho forçado, pois considerava-se que a essência da desordem afetava na ordem social, a ociosidade era um perigo (Ferrazza, Sanches, Rocha, & Justo Ferrazza, 2016). Este movimento, influencia fundamentalmente nas origens do manicômio, a loucura é aprisionada. Até o momento a loucura ocupava diferentes espaços, não necessariamente de reclusão. Foi, então, a partir de Pinel, conhecido como o pai da psiquiatria, que a loucura passa a estar restrita às instituições (Amarante, 2007). 

De acordo com Amarante (2007) o isolamento, entendido como a institucionalização total do sujeito era um imperativo para que o mesmo pudesse ser tratado “corretamente”; trata-se do debate sobre normalidade/anormalidade de uma ciência produtora de verdades imutáveis.  

Passa-se a organizar instituições destinadas à loucura, as quais caracterizavam-se por serem afastadas, onde os alienados pudessem ser submetidos aos trabalhos “terapêuticos” (Amarante, 2007). Os hospícios, bem como as instituições totais em geral, sempre ocuparam uma função social. 

Os loucos eram considerados mais uma dentre as tantas outras figuras indesejadas pelo social, o enclausuramento que os mesmos estavam submetidos era legitimado pelo discurso social com o objetivo de torná-los submissos e dóceis, utilizando-se do disciplinamento dos corpos (Ferrazza et al, 2016). Eis que surge através de tantos movimentos repressivos, um sujeito, que a partir de sua insanidade sustenta sua existência, o louco. O mesmo, visto como uma exceção, um ser que lhe falta razão.

 A loucura passa a ser objeto de dois olhares: um olhar provindo da moral e o outro do saber médico. Os rostos já desenhados da loucura não mudam com as construções provindas do saber médico. O internamento apenas manifesta aquilo que a loucura é em sua essência: o não ser.  

De acordo com Amarante (2007), após a segunda guerra mundial, passa-se a olhar para questões de sofrimento psíquico, retirando-as do aprisionamento por meio de uma reflexão acerca dos campos de concentração. No entanto, é a partir desse período que se inicia a medicalização da loucura.  Os sujeitos antes estraçalhados pelo internamento foram silenciados e reprimidos, este é seu novo aprisionamento.

Uma história com cheiro: o Holocausto Brasileiro

Ao se falar de internamento e exclusão do diferente, a partir de um padrão social imposto, inicia-se um percurso histórico. Este percurso tem sua origem na Europa, porém, não quer dizer que se restringe a mesma; o Brasil também teve sua história marcada pela exclusão desenfreada, principalmente entre os anos de 60 e 70.

Daniela Arbex (2019) por meio de sua pesquisa in loco a respeito do hospital Psiquiátrico de Barbacena, constatou que o hospital localizado em Minas Gerais abrigava um número significativo de pessoas; privadas de liberdade, as mesmas eram tratadas com descaso e negligência.

Dentre elas estavam mulheres consideradas desviantes do padrão solicitado pela sociedade da época; crianças órfãs; pessoas marginalizadas, entre outras populações estigmatizadas, tais como pessoas em situação de rua ou de extrema pobreza (Arbex, 2019). Qualquer semelhança com o que acontece na Europa, não é mera coincidência.

Segundo Arbex (2019) o tratamento “terapêutico” utilizado, assemelhava-se ao do século XVIII incluindo diversas técnicas concebidas como formas de tortura. Em decorrência disso, ocorreram cerca de 60 mil mortes dentro do hospital. 

Segundo relato de moradores que a autora traz em sua obra, a cidade cheirava a corpos em decomposição. Cheiro que marca a história de tantas pessoas que não tinham um lugar social, o cheiro que tomou o lugar de sua existência antes nunca notada.

A tarefa da instituição é adaptar os indivíduos, sendo que sua única possibilidade é aceitar que o que lhes cabe é serem objeto de violência e rejeitarem sua autonomia e subjetividade (Basaglia, 1985/2001). Tal atitude marca a história da loucura no Brasil e no mundo. 

As práticas anteriores à reforma psiquiátrica apresentaram-se como formas de contenção dos sujeitos, utilizando-se da violência, comum nas instituições manicomiais, fazendo parte do método de tratamento que as mesmas utilizavam. “A violência e a exclusão são justificadas por serem necessárias[…]” (Basaglia (1985/2001, p. 101) por conta da culpa e da doença.

A objetalização não ocorre somente com o corpo, mas também com os sujeitos, estes portadores de uma história, não se leva em consideração a sua subjetividade, logo, os colocando no lugar de objeto. A questão não está na loucura, mas na relação que a sociedade estabelece com a mesma. Para Goffman (1961/2015, p. 661) “Toda instituição total pode ser vista como uma espécie de mar morto.” Pois, através dela pode-se constatar de maneira significativa o assujeitamento e inércia dos aprisionados.

Tal ação pode-se considerar-se de caráter violento, para com um sujeito já violentado por sua realidade psicossocial sob o disfarce da necessidade de uma “terapêutica” (Basaglia, 19895/2001).

As instituições lhes impõem uma modalidade passiva, cuja mesma impede que os sujeitos que ali residem não se posicionem frente às situações diversas, tampouco permitindo que o mesmo viva de acordo com seus princípios, adequando-se aos moldes institucionais, logo tornam-se definitivamente coisificados.

Marcando um lugar: Reforma Psiquiátrica no Brasil e o compromisso com uma sociedade sem manicômios

Considerando a segregação e higiene social descrita anteriormente, mencionadas as violências, o movimento denominado de Reforma Psiquiátrica ganha expressão no cenário brasileiro, o que elucida uma luz no fim do túnel. 

A Reforma Psiquiátrica no Brasil consistiu em um processo social complexo que envolveu mudanças na assistência de sujeitos em sofrimento psíquico, a qual lança um olhar de subjetividade e propõem discutir a loucura (Brasil, 2005), com o objetivo de dar um espaço humanizado com respeito e dignidade para os sujeitos em sofrimento.

“Após o reconhecimento da força histórica que impelia a loucura para a condição de exclusão social, política e discursiva […]” (Kyrillos Neto, 2003, p. 73), vê-se a necessidade de dar voz por meio da reivindicação da cidadania dos então chamados de loucos. 

No entanto, para compreender a Reforma Psiquiátrica no Brasil, faz-se necessário considerar um marco da saúde no país, a Reforma Sanitária que propunha pensar questões de saúde e propor transformações no cenário brasileiro, principalmente por meio do processo de redemocratização da saúde (Brasil, 2005). A criação do Sistema Único de Saúde, e a preconização do direito à saúde garantido pelo estado foram impulsionadores da Reforma Psiquiátrica no país. 

Compreendida como um conjunto de transformações, a Reforma Psiquiátrica reuniu trabalhadores de saúde mental, através do Movimento dos Trabalhadores de Saúde Mental (MTSM), movimento plural que tem por maior objetivo construir coletivamente uma crítica ao saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico no que se refere às pessoas com sofrimento psíquico (Brasil, 2005). 

Também, protagonizaram essas transformações familiares, sindicatos e pessoas com longo histórico de internação psiquiátrica, a fim de buscar melhorias no tratamento das pessoas em sofrimento e denunciar os maus-tratos dentro dos manicômios (Kyrillos Neto, 2003). 

É sobretudo este Movimento, através de variados campos de luta, que passa a protagonizar a partir deste período a denúncia da violência dos manicômios, da mercantilização da loucura, da hegemonia de uma rede privada de assistência e a construir coletivamente uma crítica ao chamado saber psiquiátrico e ao modelo hospitalocêntrico na assistência às pessoas com transtornos mentais. (Brasil, 2005, p. 7).

Em 1987 ocorreu o II Congresso Nacional dos Trabalhadores em Saúde Mental (MTSM), realizado em Bauru, SP, elegendo o lema “Por uma sociedade sem manicômios”. Mas, é somente em 2001 que surge a Lei 10.216 que dispõe sobre a proteção e os direitos das pessoas em sofrimento psíquico e redireciona o modelo assistencial em saúde mental (Brasil, 2005).

“A desinstitucionalização é um trabalho prático de transformação que pretende desmontar a lógica manicomial para remontar o problema.” (Kyrillos Neto, 2003, p. 75). A lógica manicomial está para além dos fechamentos dos manicômios, esta lógica é discursiva, portanto, faz-se necessário romper com os mecanismos excludentes e higienistas utilizados como forma de tratamento, considerando as políticas públicas existentes na atualidade. 

De acordo com Ferrazza et al (2016) os serviços substitutivos são um caminho para a superação dos manicômios, no entanto, não há garantias de que estes serviços superem a lógica manicomial, como é o caso das comunidades terapêuticas, conforme apontam. Portanto, Basaglia (1985/2001) sugere que o fim ideal está relacionado ao desmantelamento da estrutura manicomial e que para tal, fechar os manicômios não é fim, e sim o início.

O deslocamento do aparato manicomial para as Comunidades Terapêuticas

Quando se refere ao uso e abuso de substâncias psicoativas, percebe-se que as informações trazidas, principalmente à mídia e ao discurso social são, por vezes, moralizantes e superficiais, tratando o fenômeno como originário na atualidade.

Conforme Bolonheis-Ramos e Boarini (2015) no século XX tal fenômeno não se demonstrava enquanto preocupação social, visto que somente pessoas abastadas faziam uso. Tal preocupação inicia-se com o pânico relacionado ao uso do crack, e é com isso que atualmente 80% das pessoas que fazem uso de substâncias psicoativas encontram-se em atendimento nas Comunidades Terapêuticas. 

Encara-se o problema a partir de um ponto de vista de segurança nacional, não se questionando sobre os pontos biopsicossociais relacionados à esta sintomática, que tem caráter social, e não se resume às questões individuais, no entanto, essa visão acaba por legitimar a internação (Bolonheis-Ramos & Boarini, 2015). 

Logo, o toxicômano está marcado por estigmas que fazem frente ao seu modo de sofrer, relacionando-o ao não humano, à monstruosidade dos instintos. Seres que não tem controle sob seus instintos e lhes falta a razão; seres que devem ser normalizados e ajustados, pois a sanidade não é algo que lhes sobra (Fossi & Guareschi, 2015), seres que deveriam ser considerados, nada mais que, humanos. A lógica do manicômio permanece, a exclusão foi reeditada. 

As comunidades terapêuticas surgem na Grã-Bretanha na década de 1940. Inicialmente utilizadas para pessoas com problemas psiquiátricos “crônicos”, tem-se por influência, o retorno dos militares da segunda guerra mundial, os quais apresentavam sofrimento psíquico intenso e que antes eram tratados em hospitais gerais (Fossi & Guareschi, 2015). 

Por meio desta influência, com o passar dos anos, as comunidades terapêuticas ampliam-se, então, por volta da década de 1960, surgiram as primeiras comunidades dedicadas ao tratamento do uso abusivo de substâncias psicoativas que preconizavam os princípios dos Alcoólicos Anônimos (Bolonheis-Ramos & Boarini, 2015). O que pauta o modo de funcionamento de outras comunidades terapêuticas, principalmente, no Brasil.

De acordo com o Glossário de álcool e drogas (Brasília, 2010), as comunidades terapêuticas são caracterizadas por um ambiente estruturado onde os indivíduos com transtornos por uso de substâncias psicoativas residem para alcançar a reabilitação e são, em geral, isolados geograficamente. (Fossi & Guareschi, 2015, p. 99).

Por serem instituições fechadas, utilizam-se da segregação social como forma de tratamento aos usuários, com normas rígidas de funcionamento e controle sobre a vida dos sujeitos, remetem à memória dos antigos leprosários e manicômios (Fossi & Guareschi, 2015). 

Tais instituições apresentam caráter confessional que demonstram oposição os princípios do Sistema Único de Saúde, ainda assim, em 2010, as mesmas passam a compor a rede de atenção, mesmo pautadas no proibicionismo e na abstinência, sendo contrária a lógica de redução de danos proposta pelo SUS (Fossi & Guareschi, 2015). 

Assim, parecem reeditar o modelo manicomial, agora sob a justificativa moralizante de uma dependência química, as práticas destas instituições foram questionadas pela Reforma Psiquiátrica, no entanto, se encontram na condição de existência por estarem arraigados à um discurso social (Fossi & Guareschi, 2015). 

Em 2019, por meio da Política Nacional de Drogas (Decreto nº 9.761/2019), ocorre a mudança do paradigma no que se refere ao tratamento das toxicomanias, preconizando a abstinência, sendo o investimento maior nas instituições que tem por este modelo de tratamento sua prioridade. 

Para Amarante (2007) há um deslocamento do aparato manicomial, a fim de manter a ordem social por via da contenção e aprisionamento. Segundo Bolonheis-Ramos e Boarini (2015) daqueles que são considerados um peso morto e nocivos à sociedade, sendo a loucura deslocada para a toxicomania; o que traz à tona a insuficiência de investimentos nos serviços territoriais para as toxicomanias, não dispondo de forma eficaz o acolhimento necessário à essa população (Bolonheis-Ramos & Boarini, 2015). Pois, o internamento demonstra maior aceitação social no que se refere ao uso de substâncias psicoativas. 

Há uma política de normalização daquilo que é entendido como anormal pelo social, neste caso, um sujeito despossuído de razão por fazer uso de substâncias psicoativas, o que o torna suscetível a que alguém tome as rédeas de sua vida. Logo, um sujeito desprovido de seus direitos. “A institucionalização é o artifício para práticas desumanizadas, tornando-os sujeitos desprezíveis.” (Fossi & Guareschi, 2015, p. 103).

Na visão de Bolonheis-Ramos e Boarini (2015) percebe-se o investimento em um processo contrário às perspectivas da Atenção Psicossocial e da Reforma Psiquiátrica Brasileira. “As denominadas Comunidades Terapêuticas mais parecem recuperar, como um retorno do recalcado, velhos preceitos da história das práticas de internação […].” (Ferrazza et al, 2016, p. 372).

Dentro das instituições tem-se como obrigatoriedade a participação das atividades, sejam estas religiosas ou de trabalho, visto que o trabalho é considerado, nesse contexto, um recurso terapêutico de determinação obrigatória ressaltando os “malefícios da ociosidade” (Ferrazza et al, 2016). 

Segundo Basaglia (1985/2001) há um perigo que corremos com relação à institucionalização, um perigo que diz respeito a cair em um simples reformismo psiquiátrico. No que se refere ao internamento, Amarante (2007) afirma que estes, sempre se darão com limitações, isto é, utilizando-se do aparato institucional, e que podem causar retrocesso.  

Ora, é evidente que, para que tais disposições sociais possam ser mantidas, é preciso exercer alguma forma de controle social, a fim de manter as pessoas dentro da ordem, para fazer com que cumpram seus acordos e sua obrigação de realizar favores e cerimônias em favor dos outros. (Goffman, 1961/2015, p. 242).

Conforme disposto pelo Conselho Federal de Psicologia (2011) para conquistar os preceitos da ordem moralizante, há realização de trabalhos forçados sem remuneração; utilização de violência e contenção física ou medicamentosa; práticas punitivas; obrigatoriedade de comparecimento à momentos religiosos ainda que não se tenha crença, entre outras práticas.

Com isso, observa-se que há um pensamento higienista, excludente e de caráter manicomial no que se refere ao tratamento ofertado pelas comunidades terapêuticas, não possibilitando o sujeito a sua autonomia e estando de encontro aos princípios do SUS; bem como da Lei 10.216/2001 que preconiza os direitos das pessoas em sofrimento psíquico, o tratamento com dignidade e em liberdade. 

Portanto, questionar-se o que está em pauta no tratamento das toxicomanias é um compromisso social. A relação da sociedade com a loucura está marcada pela violência e o abandono (Amarante, 2007). No entanto, aquilo que se entende por loucura está amplamente relacionado ao discurso social e aquilo que o mesmo considera desviante da norma, normalizar é também manicomializar. 

Considerações finais

O presente artigo mostra faces históricas acerca do internamento com o intuito de pensar um possível deslocamento do aparato manicomial para as nomeadas comunidades terapêuticas, esta hipótese apresentada se dá devido às semelhanças das práticas adotadas comparadas às utilizadas nos antigos manicômios. 

Cabe reiterar que, o objetivo de tal artigo é refletir sobre esses possíveis deslocamentos e práticas, cujas mesmas encontram-se arraigadas e aprovadas pelo discurso social. É importante ressaltar que não se tem por objetivo esgotar ou encerrar as discussões acerca da temática e sim que, apesar das diferenças apresentadas, pode-se estabelecer paralelos. 

Ainda que as propostas de tais instituições tenham sido relacionadas à reforma psiquiátrica, não deram conta de resolver o problema da exclusão, dentre outras questões, sendo que sujeitos que são considerados a escória da sociedade são submetidos ao internamento, de modo a realizar a higiene e o controle social, tal qual na idade média. 

O internamento é a morada da loucura, seja na idade média ou na contemporaneidade. A questão não está atrelada aos modos de sofrimento, e sim à forma com que a sociedade lida com o sofrer, trazendo à tona uma visão pejorativa, principalmente no que se refere ao toxicômano. 

De acordo com Amarante (2007) nesse processo muitas pessoas em sofrimento psíquico morreram, tais acontecimentos, nem chegam ao conhecimento da opinião pública, o fato é, até quando a sociedade permanecerá vendada? Na atualidade, um dos lugares ocupados pela loucura é a toxicomania, um lugar que possui portões e paredes, não somente físicas, mas psíquicas, a loucura nasce e permanece sempre reduzida ao cárcere.

Referências

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Como citar esse texto

APA — Krein, C. E. (2022). Manicômios com nova roupagem: o deslocamento do aparato manicomial para comunidades terapêuticas. CadernoS de PsicologiaS, 3. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/manicomios-com-nova-roupagem-o-deslocamento-do-aparato-manicomial-para-comunidades-terapeuticas/

ABNT — KREIN, C. E. Manicômios com nova roupagem: o deslocamento do aparato manicomial para comunidades terapêuticas. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 3, 2022. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/manicomios-com-nova-roupagem-o-deslocamento-do-aparato-manicomial-para-comunidades-terapeuticas/. Acesso em __/___/___.