Revista CadernoS de PsicologiaS

Máscaras que matam:
pandemia e (des)continuidade da alienação negra no desejo branco

Daniel Fauth Washington Martins
Psicólogo (CRP-08/30338). E-mail: danieltranquilo@gmail.com
Ramon Andrade Ferreira
Psicólogo (CRP08/28114). E-mail: ferreiramonn@gmail.com
#Inquietações_teóricas

Resumo: Apresenta-se os impactos da COVID-19 no contexto do racismo brasileiro a partir de revisão bibliográfica de caráter narrativo, com o intuito de trazer um fio de indagações que possa ser de proveito à elaboração de impasses teóricos referentes, em especial, ao estudo, à clínica e à formulação de políticas públicas que levem em conta a racialização como fator estruturante da subjetividade no Brasil. Inicia-se o texto com uma breve contextualização do racismo em âmbito nacional para então passar-se ao questionamento da psicologia enquanto saber e fazer impossibilitado de neutralidade ante a realidade racializada. Assim, problematiza-se o racismo enquanto fator de risco e adoecimento na pandemia, em razão da subjetividade branca reforçada sobre os corpos negros, alienados de seu desejo. Finaliza-se o trabalho apontando a necessidade de processos coletivos e individuais de constituição de si que construam uma máscara própria, protetora, e que seja inspirada no rosto do sujeito negro.

 

Palavras-chave: COVID-19; racismo; subjetividade.

Masks that kill: pandemic and (dis)continuity of black alienation in white desire

Abstract: The impacts of COVID-19 in the context of Brazilian racism are presented through a bibliographic review of a narrative character, with the aim of bringing a thread of questions that can be of benefit to the elaboration of theoretical impasses regarding, in particular, the study, to the clinic and the formulation of public policies that take racialization into account as a structuring factor of subjectivity in Brazil. The text begins with a brief contextualization of racism at the national level and then moves on to questioning psychology while knowing and doing neutrality in the face of racialized reality. Thus, racism is problematized as a risk factor and illness in the pandemic, due to the reinforced white subjectivity on black bodies, alienated from their desire. The work ends by pointing out the need for collective and individual processes of self-constitution that build their own, protective mask, and that is inspired by the face of the black subject.

Keywords: COVID-19; racismo; subjectivity.

Máscaras que matan: pandemia y (dis)continuidad de la alienación negra en el deseo blanco

Resumen: Los impactos de COVID-19 en el contexto del racismo brasileño se presentan a través de una revisión bibliográfica de carácter narrativo, con el objetivo de traer un hilo de preguntas que puedan ser de beneficio para la elaboración de impasses teóricos en torno, en particular, al estudio, a la clínica y la formulación de políticas públicas que tomen en cuenta la racialización como factor estructurante de la subjetividad en Brasil. El texto comienza con una breve contextualización del racismo a nivel nacional para luego pasar al cuestionamiento de la psicología conociendo y haciendo neutralidad frente a la realidad racializada. Así, el racismo se problematiza como factor de riesgo y enfermedad en la pandemia, debido a la subjetividad blanca reforzada sobre los cuerpos negros, alienados de su deseo. El trabajo finaliza señalando la necesidad de procesos colectivos e individuales de autoconstitución que construyan su propia máscara protectora, y que se inspire en el rostro del sujeto negro.

Palabras clave: COVID-19; racismo; subjetividad.

Introdução

O presente trabalho busca problematizar diferentes aspectos da incidência do racismo enquanto fator estrutural da sociedade brasileira ante a pandemia do Coronavíus e consequentes políticas de isolamento social e cuidados relativos à COVID-19. Para tanto, parte-se da descrição do racismo enquanto fenômeno complexo que exige da psicologia um posicionamento anti-racista plasmado em escolhas teóricas, clínicas e de políticas públicas pautadas na consideração profunda da racialização enquanto fator constitutivo das subjetividades no Brasil. Além disso, é preciso perceber que o racismo adoece, ou seja, que a desigual distribuição dos corpos entre espaços simbólicos e reais de maior ou menor risco de adoecimento e morte faz com que o sujeito negro tenha pesado sobre si fatores problemáticos que exigem uma atenção específica, como no caso da introjeção e impossibilidade de atingimento dos ideais da branquitude ante a própria corporalidade negra.

Finalmente, conclui-se a breve exposição posicionando a negritude como um fator de risco a ser considerado na clínica e nas políticas públicas em geral. Se de fato não há possibilidade de neutralidade na prática psicológica, e se o racismo é conjuntura complexa histórica que causa sofrimentos, então é preciso entender que a negritude enquanto rótulo exógeno é estrutura onde formas de violência se engancham, e também ponto a partir do qual se pode operar uma reorganização do sujeito com vistas a apropriar-se da produção de si, tomando de volta as perspectivas de subjetivação sequestradas pelo cuidado forçado com o outro branco.

Racismo: pandemia brasileira permanente

O racismo é um fenômeno multifacetado o qual uma mera análise estatística ou quantitativa não basta para que se compreenda o problema em toda sua complexidade. Ainda que alguns dados estatísticos demonstrem que a contaminação bem como os óbitos por Covid em algum momento da pandemia passaram a atingir mais diretamente a população negra brasileira, os acontecimentos ao longo desse período suscitam algumas questões: um país que sempre lidou com o problema do racismo de forma a “jogá-lo para baixo do tapete”, poderia lidar com outro problema coletivo, se não da mesma forma? As estatísticas não estariam apenas descrevendo quantitativamente aquilo que acontece qualitativamente nas relações interraciais brasileiras?

No início da pandemia no Brasil, a Covid assustava, surgiam possibilidades de debate sobre o que um cenário de pandemia poderia alterar na realidade da população brasileira no que diz respeito a um senso de coletividade, empatia. O que se percebeu com o desenrolar dos acontecimentos é um oposto: o senso de individualidade e as desigualdades raciais estruturantes se tornaram ainda mais evidenciadas. Os lugares reservados à população negra no que diz respeito ao trabalho, ao autocuidado e heterocuidado denunciam condições ou imposições sociais que são transmitidas ao longo do processo colonizador.

Os movimentos negros têm conquistado espaços e direitos que foram historicamente negados ou negligenciados para a população preta. Algumas dessas conquistas se deram através de leis, como a lei que criminaliza o racismo, a lei de cotas, a lei sobre obrigatoriedade do ensino da cultura afro-brasileira nas escolas ou mesmo o Estatuto da Igualdade Racial. Essas leis buscam promover o que se chama reparação histórica, ou seja, promover equidade, uma vez que o racismo tem sido uma barreira para que pessoas negras consigam acessar direitos que seriam supostamente universais. São direitos adquiridos por essa população que dão conta de uma materialidade.  Aparentemente é mais fácil perceber como o racismo afeta economicamente a população negra, uma vez que há também uma associação de negritude com a pobreza. No entanto, essa pobreza é também oriunda de uma determinada ideia estereotipada do “lugar do negro”, que leva homens e mulheres negras e negros a subempregos, sub-salários e sub-vidas.

Psicologia neutra?

Há aqui uma escolha que questiona a aparente neutralidade dos psicólogos e psicólogas brasileiras: a realidade é construída pelo imaginário, bem como o imaginário também constrói a realidade. Assim, os estereótipos acerca dos corpos negros são construídos a partir da condição social na qual negras e negros são colocadas, bem como os lugares que são ocupados pela população negra constroem e reforçam essas estereotipias.

De acordo com Grada Kilomba (2019), a branquitude fez do negro tudo aquilo que ela não admitia em si, reprimindo sua sexualidade e a projetando em corpos de homens e mulheres negras e negros, projetando seu medo nos corpos negros:

No racismo cotidiano, a pessoa negra é usada como tela para projeções do que a sociedade branca tornou tabu. Tornamo-nos um depósito para medos e fantasias brancas do domínio da agressão ou da sexualidade. (…) Na sociedade branca, no entanto, esses dois aspectos da “agressão” e da “sexualidade” têm sido reprimidos e reprojetados de forma massiva em outros grupos raciais. (Kilomba, 2019, p.78)

No entanto, para complementar o pensamento, a construção racista do que seria um negro também colocou a negritude para fazer aquilo que a branquitude não queria fazer. Ou seja, não se trata somente dos sentimentos da branquitude, mas também de seus pensamentos e ações. A branquitude projetou na negritude sentimentos, pensamentos e ações que consideravam proibidas em si ou para si (Fanon, 2008).  Nesse sentido, passa-se a investir na imagem estereotipada da negritude, para homens e mulheres: seriam mais propensos a ser submissos, a vadiagem ou bandidagem, teriam uma sexualidade exacerbada que seria uma espécie de compensação por sua suposta falta de intelectualidade. Assim, a supervalorização do trabalho intelectual também possui um fator racial decisivo. Com o racismo a branquitude se coloca numa posição de intelectualidade, beleza e santidade para ser servida por um tipo de trabalho que ela própria desvaloriza e que acredita ser da competência do outro.

Quais tipos de trabalho permitem ser transformados em Home Office? Os serviços domésticos foram considerados serviços essenciais para atender a demanda de quem? Esses problemas não surgem hoje e são resultado de uma transmissão multigeracional sobre quem ocupa qual papel social em nossa sociedade, sobre o que significaria ser negro ou branco em nossa sociedade. Se o papel do Direito nessa reparação histórica tem se dado pela materialidade e aplicação de ações e políticas públicas de combate ao racismo, de que forma a psicologia poderia promover uma reparação histórica no sentido de trabalhar a construção de uma identidade racial saudável para brancos e negros?

O racismo adoece

Observar como o racismo impacta a saúde da população negra demanda o entendimento de que o racismo possui diversas facetas e níveis que vão desde o racismo intrapessoal, aquele internalizado pelas pessoas sobre o que significaria ser branco ou negro, até o racismo estrutural que determina o modo de funcionamento político, social e econômico da sociedade brasileira. Se trata de um fenômeno atemporal, no qual uma outra possível metáfora é a de uma flecha que atravessa o tempo e a qual vemos apenas sua ponta no presente.

Dessa maneira, a primeira máscara que escolhemos trazer para discorrer sobre a como o racismo estrutural afeta o autocuidado da população negra é a máscara de Anastácia, uma máscara sobre a qual a autora ouvira falar muitas vezes durante sua infância. “Os vários relatos e descrições minuciosas pareciam me advertir que aqueles não eram meramente fatos do passado, mas memórias vivas enterradas em nossa psique” (Kilomba, 2019, p. 33). Aqui, Grada Kilomba nos relembra que para compreender como o racismo afeta a psique da população negra não basta o entendimento da história familiar, mas também de como a história da sociedade também afeta sujeitos historicamente excluídos. A autora segue:

Oficialmente, a máscara era usada pelos senhores brancos para evitar que africanas(os) escravizadas(os), comessem cana-de-açucar ou cacau enquanto trabalhavam nas plantações, mas sua principal função era implementar um senso de mudez e de medo, visto que a boca era um lugar de silenciamento e de tortura. (Kilomba, 2019, p. 33)

O exemplo traz à tona a crueldade do racismo. Se trata de uma estigmatização a qual contribui e muito para o adoecimento psíquico, para a alienação de si, de seu próprio trabalho que só pode ser aproveitado pelo outro.  Akbar (1981), ao discorrer sobre efeitos psicológicos do racismo sinaliza quatro distorções e/ou desordens da personalidade relacionadas com uma sociedade que se caracteriza pela opressão racial. A desordem do ego alienado, na qual o indivíduo passa a agir em contradição com seu bem estar e em consequência se aliena de si mesmo; a desordem do ser contra si mesmo, na qual o indivíduo interage com certa hostilidade em relação ao próprio grupo, ou seja, além de estar adoecido contribui para o adoecimento de seus pares; a desordem  da personalidade autodestrutiva, na qual indivíduos experimentam fugas destrutivas da realidade e há também aquele tipo de desordens provocadas por disfunções fisiológicas, neurológicas e bioquímicas que são resultado das desigualdades raciais  e do racismo institucional.

Sobre esta última forma de desordem, podemos exemplificar na questão do Covid-19 que os cuidados para evitar a contaminação têm relação com higiene, lavar as mãos. Em um país que 16% da população não tem água tratada e 47% não tem acesso à rede de esgoto, percebe-se que as desigualdades raciais promovem não somente o adoecimento psíquico, mas também o físico. Outro ponto a ser notado são os fatores de risco como a pressão alta que atinge em grande proporção a população negra, o que também está relacionado aos altos níveis de estresse enfrentado por esse grupo.

Todas essas desordens em algum nível são transmitidas para os descendentes no processo de transmissão multigeracional ou transgeracionalidade. De acordo com Camicia et al, “a transgeracionalidade consiste nos processos transmitidos de uma geração a outra, mantendo se presentes ao longo da história familiar” (Camicia et al., 2016, p. 70).  Nesse sentido, faz-se importante ressaltar, a escravidão produziu uma rachadura nos processos familiares das famílias negras, que tiveram cortados seus vínculos com sua ancestralidade e mesmo sobre sua história familiar. Ou seja, é importante ler a comunidade negra como uma grande família com um trauma atravessando gerações. O que acaba por gerar conflitos são justamente visões diferentes sobre o que é ser negro, como o pacto da branquitude de silêncio em situações de racismo imposto a pessoas negras e conveniente para pessoas brancas influenciam mandatos, lealdades, papéis e alianças nessa grande comunidade/população ou família negra (Bento, 2002).

Outro fator importante nessa análise é a indiferenciação do eu.  O processo de desenvolvimento psicológico saudável nos leva da indiferenciação, ou seja, de um estágio de simbiose com o mundo, a um estado de diferenciação, no qual se assumem diferenças e se é possível conviver com estas sem impor-lhe modos próprios de existir, falar, ou de se comportar em sociedade. Levando isso em consideração, o racismo se trata de uma espécie de infantilidade que não assume diferenças e que leva pessoas negras à morte e falta de cuidado consigo. Essa infantilidade ocorre quando a diferença é demonizada, quando a diferença passa a representar algo ruim e não potencialidade.

Até o momento, discutimos como o racismo contribui para a falta de cuidado como uma imposição de um sistema racista que silencia e projeta supostos defeitos na população negra. Porém, o poder não é uma relação necessariamente impositiva e sempre pressupõe resistência. Assim, a população negra se readapta e reconstrói esse cuidado que muitas vezes influenciadas, ou quase sempre, pelo racismo

Máscaras brancas

Outra possível máscara que representa uma espécie de cuidado que pode vir a ser disfuncional é a máscara que possivelmente engloba todas as desordens de Akbar citadas anteriormente, as máscaras brancas. Uma metáfora que Frantz Fanon utiliza em sua obra clássica “Pele Negra, Máscaras Brancas” (2008). De acordo com Fanon, o negro quer ser branco e o branco se coloca na posição de único modelo de humano. O homem branco torna-se simplesmente Homem, com H maiúsculo, ocultando especificidades. Isso é introjetado pode ser introjetado pelo negro, já esse desejo por ser branco é na realidade um desejo por ser visto como humano e é também em certa medida uma forma de se proteger de um sistema racista, uma forma de (auto)cuidado.

A depender das lealdades, dos mitos e mandatos familiares, o cuidado vai sendo direcionado para se aliar a um sistema racialmente estruturado ou se proteger dele. Muitos pais e mães ensinam seus filhos negros e negras a se proteger do racismo dizendo para não usar capuz, não correr, e não ter comportamentos que possam vir a ser vistos como a representação real daquilo que o racista vê: o perigo. Dessa forma, usar máscaras para se proteger do Covid pode ter um outro significado para muitas pessoas negras que foram ensinadas e ensinam que cobrir o rosto pode ser perigoso.    

Em matéria no site UOL, Trevor Logan, que é professor da Universidade Estadual de Ohio, relata à CNN estadunidense:

Nós temos muitos exemplos de criminalidade presumida de homens negros em geral. E aí nós temos as autoridades pedindo que nós usemos em público algo que pode, certamente, ser visto como um adereço de um criminoso, particularmente quando usado por homens negros. (UOL, 2020, 07 de Abril)

Apesar de ser um relato de um negro estadunidense, observar dados – subnotificados em relação à identificação racial graças ao mito da democracia racial – nos leva ao mesmo perfil que é construído para estar em maior número em prisões, hospitais psiquiátricos, em estatísticas de assassinatos e ou letalidade policial: jovens homens negros. Segundo a revista Época (Soares, Cravo, & Tatsch, 2020, 03 de julho), dos dados notificados sobre mortes por Covid-19 cuja cor foi identificada, 61% dos óbitos constam como sendo de pessoas pardas e pretas, enquanto, segundo o Instituto brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE, 2015), os pardos e pretos no país representam 54% da população.

O medo branco do perigo que o negro supostamente representaria afeta as formas de cuidado das pessoas negras. O medo branco transmite perigo às pessoas negras que acabam podendo ficar também amedrontadas. Na competição entre os medos, para a população negra o racismo pode ser ainda mais perigoso que um vírus. A grande questão é que a negligência do Estado em relação a estratégias de enfrentamento à pandemia acabou, devido á condições estruturais, alinhando o racismo e o vírus Covid-19.

Se o branco tem medo do negro, o negro, contaminado com essa mascara branca pode ter medo de si, medo de que seu corpo e suas atitudes o coloquem em uma posição na qual possa confirmar a imagem pré-existente que o outro tem de si, e nesse sentido, há uma dificuldade em cuidar de algo do qual possa ter medo. De acordo com Faustino:

O negro sabe que, por mais que se esforce, nunca estará de acordo com o que se espera de um verdadeiro homem civilizado: é um desajustado congênito que precisa constantemente vigiar e punir a própria aparição no mundo, sob a pena de não ser reconhecido como humano, “um homem em meio a outros homens”. É levado, por isso, a se questionar frequentemente sobre quem ou o que é na verdade. (Faustino, 2015, p. 81)

Em muitas de suas atitudes, sujeitos negros acabam tendo de pesar se pode ocorrer algum tipo de “confusão” e assim, passam a viver uma vida baseada em delírios e medos que não são seus, são os da branquitude. E dessa forma, podem viver direcionados aos sentimentos alheios, vivendo uma espécie de escravidão emocional. Para ilustrar essa situação, usemos uma expressão popular adaptada de que quando o negro não erra na entrada, erra na saída. Pessoas negras são muito questionadas nas suas competências e cobradas excessivamente em seus erros. Muitos, ao utilizarem dessa máscara branca não se permitem errar, ou lidam com seus erros com uma frustração em niveis elevados. Nesse sentido, além de nos perguntarmos se é possível cuidar de si quando se tem medo do que sua presença pode representar, também é possível e necessário questionar: é possível aprender a cuidar de si, sem errar?

Negritude: fator de risco

O momento da pandemia evidenciou ainda mais como o racismo estrutura nossa sociedade. Diversos acontecimentos nesse período têm promovido debates e uma maior visibilidade do problema. O que se pode perceber é que quando o novo corona vírus atingia determinada parte da população com maiores privilégios o Corona podia vir a ser um problema. Porém, quando deixou de atingir essa população privilegiada com maior nitidez, o problema passou a ser cada vez mais jogado para debaixo do tapete, tal qual fazemos com o racismo, naturaliza-se mortes negras. O racismo estruturou a sociedade de forma que a população negra tivesse que direcionar seus cuidados para a branquitude no nível emocional e no nível do trabalho, como se somente pudesse usar máscara sendo empregada, servindo ao outro, mas que esse uso fosse tornado problemático quando é direcionado ao autocuidado.

Observando as pressões políticas para a caracterização do serviço doméstico como essencial, bem como a pressão dos setores empresariais para reabertura de academias e shoppings, percebe-se a quem é determinado o lugar do cuidado de si e o lugar do cuidado com o outro. Os negros só podem usar máscaras se for para atender as demandas e delírios da branquitude. Foram inclusive utilizados como argumento para não aderência ao isolamento social, uma vez que a economia quebraria, pois os trabalhadores não podem ficar em casa. Esse argumento refere-se especialmente ao subemprego, ao trabalho braçal que foi direcionado para aqueles que representam o perigo. No entanto, oculta-se que os que podem ou puderam se isolar são exatamente aqueles que não permitem que os trabalhadores braçais ou da higiene fiquem em casa, pois a estes foi determinado o papel de limpar a sujeira dos outros.

Conclusão: uma máscara com a sua cara

O que talvez se possa extrair de mais concreto do percurso teórico realizado até aqui é a percepção de que sobre a pessoa negra nada se sabe: sabemos sobre os efeitos do racismo, sabemos sobre os impactos subjetivos e suas origens estruturais e podemos, até certo ponto, desnaturalizar discursos e práticas até então tidas como “científicas” ou “normais” dentro do cotidiano brasileiro. Mas o que não se pode, definitivamente, é pretender reduzir a subjetividade às pressões identitárias que se abatem sobre ela. É o que Neusa Santos Souza (1983) indica em sua obra “Tornar-se negro”: que a subjetivação do termo negro é personalíssima, ou seja, é feita de modo particular por cada sujeito.

A colonialidade do gênero (Lugones, 2008) impõe inclusive que o processo pelo qual a subjetividade de homens e mulheres não-brancos é visualizado tem como parâmetro de comparação a branquitude (Bento, 2002) de forma a servir como medida de humanidade o cruel jogo de tentar encarnar uma máscara feita para limitar a própria expressão. Em contraposição à máscara de Anastácia (Kilomba, 2019), o rosto que a pessoa negra vê no espelho é uma máscara que construída na interação com os pares e por meio de um processo terapêutico guiado criticamente e ancorado em saberes que se sabem racializados.

Afastar-se do essencialismo identitário projetivo naturalizado que acopla máscaras brancas ao rosto do sujeito negro em momentos de conveniência, e reduz sua humanidade em momentos de necessidade, significa construir um rosto identificável, uma reconfiguração simbólica de significantes atrelados a negritude que tem efeitos imaginários da constituição do sujeito diante do outro, agora não mais como resto, mas como protagonista, como aquela e aquele que faz o movimento inicial de sua história. Arrancar a máscara colonial e comer do próprio trabalho, falar das próprias dores, e pautar uma vida psíquica construída sobre a riqueza e multiplicidade de formas de ser. Uma boca que não se fecha, uma goela insatisfeita que troca, bebe, come, ri e sorri: afinal, sorrir é também mostrar os dentes.

Referências

Bento, M. A. S. (2002). Pactos narcísicos no racismo: branquitude e poder nas organizações empresariais e no poder público. (Tese de doutorado, Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo). Recuperado de https://teses.usp.br/teses/disponiveis/47/47131/tde-18062019-181514/publico/bento_do_2002.pdf.

Camicia, E. G., Silva, S. B., & Schmidt, B. (2016). Abordagem da Transgeracionalidade na Terapia Sistêmica Individual: Um Estudo de Caso Clínico. Pensando Famílias, 20(1), 68-82. Recuperado de http://pepsic.bvsalud.org/scielo.php?script=sci_arttext&pid=S1679-494X2016000100006&lng=pt&tlng=pt.

Soares, M., Cravo, A., & Tatsch, C. (2020, 03 de julho). Dados do SUS revelam vítima-padrão de Covid-19 no Brasil: homem, pobre e negro. Época. Recuperado de https://epoca.globo.com/sociedade/dados-do-sus-revelam-vitima-padrao-de-covid-19-no-brasil-homem-pobre-negro-24513414#:~:text=Das%20v%C3%ADtimas%20cuja%20cor%20foi,%E2%80%94%20que%20%C3%A9%20de%2076%25.

Fanon, F. (2008). Pele negra, máscaras brancas. Salvador, BA: EDUFBA.

Faustino, D. M. (2015). Por que Fanon? Por que agora?: Frantz Fanon e os fanonismos no Brasil. (Tese de doutorado, Programa de Pós-graduação em Sociologia, Universidade Federal de São Carlos). Recuperado de https://repositorio.ufscar.br/bitstream/handle/ufscar/7123/TeseDMF.pdf?sequence=1&isAllowed=y.

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Kilomba, G. (2019). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro, RJ: Cobogó. Edição Kindle.

Lugones, M. (2008). Colonialidad y género. Tabula rasa, 9, 73-101. Recuperado de https://revistas.unicolmayor.edu.co/index.php/tabularasa/article/view/1501.

UOL (2020, 07 de Abril). Coronavírus: Racismo impede que alguns negros usem máscaras feitas em casa. Recuperado de https://noticias.uol.com.br/internacional/ultimas-noticias/2020/04/07/coronavirus-racismo-impede-que-alguns-negros-usem-mascaras-feitas-em-casa.htm.

Como citar esse texto

APA – Martins, D. F. W., & Ferreira, R. A. (2020). Máscaras que matam: pandemia e (des)continuidade da alienação negra no desejo branco. CadernoS de PsicologiaS, 1. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/mascaras-que-matam-pandemia-e-descontinuidade-da-alienacao-negra-no-desejo-branco.

ABNT – MARTINS, D. F. W.; FERREIRA, R. A. Máscaras que matam: pandemia e (des)continuidade da alienação negra no desejo branco. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/mascaras-que-matam-pandemia-e-descontinuidade-da-alienacao-negra-no-desejo-branco>. Acesso em: __/__/____.