Revista CadernoS de PsicologiaS

MODELOS DE GESTÃO E SUAS VIAS PARA O EPISTEMICÍDIO E MEMORICÍDIO: ENEGRECER A PSICOLOGIA É IMPRORROGÁVEL

Paulo Vitor Palma Navasconi
Universidade Estadual Paulista (UNESP) - Psicólogo (CRP-08/25820) - E-mail: paulo.navasconi@unesp.br
#Inquietações_teóricas

Resumo: Neste texto tenho como premissa refletir sobre a necessidade de repensarmos a Psicologia e sua estruturação enquanto ciência. Compreendo e aponto ser mais do que urgente e necessário esta ação, pois nos possibilita forjar uma teoria da Psicologia e uma historiografia com diferentes sujeitos que agem no/e sobre o mundo das mais diversas formas a partir das mais distintas cosmovisões. Logo, desnaturalizar essa não-presença da população negra nos espaços de produção de conhecimento e trazer à tona suas produções intelectuais/acadêmicas e ainda suas experiências enquanto sujeitos ativos da história é urgente para a transformação desse cenário e, sobretudo, para uma democratização efetiva das universidades e do conhecimento. Sendo assim, nestas reflexões não busco apenas evidenciar o racismo, mas produzir reflexões que visem um combate às linhas estruturais dos epistemicídios inerentes aos discursos universalistas, porém eurocêntricos dominantes na produção de conhecimento.

Palavras-chave: Psicologia. Intelectualidade. Ativismo. Negritude. Necropolítica. 



MANAGEMENT MODELS AND THEIR PATHS TO EPISTEMICIDE AND MEMORICIDE: BLACKENING PSYCHOLOGY IS UNAVOIDABLE

Abstract: In this text I have to reflect on the need to rethink Psychology and its structuring as a science. I understand and point out that this action is more than urgent and necessary. Because, it allows us to forge a theory of Psychology and a historiography with different subjects that age in/and on the world in the most diverse ways from the most diverse worldviews. Therefore, denaturalizing this non-presence of the black population in spaces of knowledge production and bringing to light their intellectual/academic productions and also their experiences as active subjects of history is urgent for the transformation of this scenario and, above all, for an effective democratization of universities and knowledge. Therefore, these reflections do not only seek to highlight racism, but aim to combat the structural lines of epistemicides inherent to universalist, yet Eurocentric, discourses dominant in the production of knowledge.

Keywords: Psychology. Intellectuality. Activism. Blackness. Necropolitics.




MODELOS DE GESTIÓN Y SUS CAMINOS HACIA EL EPISTEMICIDIO Y EL MEMORICIDIO: LA PSICOLOGÍA ENNEGRECIDA ES INEVITABLE

Resumen: En este texto mi premisa es reflexionar sobre la necesidad de repensar la Psicología y su estructuración como ciencia. Entiendo y señalo que esta acción es más que urgente y necesaria. Porque nos permite forjar una teoría de la Psicología y una historiografía con diferentes sujetos que actúan en/sobre el mundo de las más diversas maneras desde las más distintas cosmovisiones. Por lo tanto, desnaturalizar esta no presencia de la población negra en los espacios de producción de conocimiento y sacar a la luz sus producciones intelectuales/académicas y también sus experiencias como sujetos activos de la historia es urgente para la transformación de este escenario y, sobre todo, para una efectiva democratización de las universidades y del conocimiento. Por lo tanto, en estas reflexiones no solo busco resaltar el racismo, sino producir reflexiones que apuntan a combatir las líneas estructurales de epistemicidios inherentes a los discursos universalistas pero eurocéntricos dominantes en la producción de conocimiento.

Palabras-clave: Psicología. Intelectualidad. Activismo. Negrura. Necropolítica.

Enegrecer a Psicologia é improrrogável

Antes de iniciar as devidas apresentações, eu gostaria de sinalizar para você leitora e leitor alguns apontamentos que se faz necessário para a compreensão do processo de construção deste material. 1. Propositalmente você verá que nesta tese autoras e autores negras/os serão destacadas em negrito. Justamente para demarcar a sua racialidade, existência e intelectualidade. 2. Tendo como ponto de partida o processo de descolonização, alinhado com a história que eu quero contar, em alguns momentos propositalmente irei desobedecer às normas e recomendações da APA, em outros momentos seguirei todas as ordens e imposições. 3. Você verá que no decorrer deste texto falarei em corpos negros. Gosto dessa expressão, uma vez que, ela causa inúmeros sentimentos, dentre eles a estranheza. E espero que você leitor e leitora consiga lidar com tais sentimentos, pois aqui neste trabalho a noção de corpo e corporeidade estão conectadas e relacionadas a ideia de adquirir corpo; dar ou ganhar materialidade; transformar-se em algo concreto, ou seja, em existência. 

Mas, afinal, por que enegrecer a psicologia é improrrogável e inadiável? Para que seja efetivada tal ação é preciso estarmos atentos e atentas, bem como descreve, Lorde (2019) [1]: que a ausência do olhar para as diferenças e diferentes formas de ser mulher e americana demonstrava sobretudo uma arrogância acadêmica, ou seja, se seria uma arrogância iniciar qualquer discussão sobre teoria feminista sem examinar as diferenças, sem considerar as inúmeras e diversas contribuições de mulheres pobres, negras, lésbicas e do terceiro mundo. Logo negar essa realidade é presumir que lésbicas e negras não têm de dizer sobre Psicologia por exemplo. E assim passamos a acreditar que o Luxo não seria um elemento de acesso para certos corpos, logo alguns poderiam ter acesso ao luxo e outros ao lixo. No entanto, eu recuso essa realidade. 

Neste sentido, dizer que a poesia não é um luxo é porque acredito e acreditamos em uma realidade onde ela deixe de ser considerada assim e pertença a todas e todos que nela se encontrem. Com isto:

Aquelas de nós que estão fora do círculo da definição desta sociedade de mulheres aceitáveis, aquelas de nós que foram forjadas no calvário da diferença — aquelas de nós que são pobres, que são lésbicas, que são negras, que são mais velhas — sabem que sobrevivência não é uma habilidade acadêmica. É aprender como estar sozinha, impopular e às vezes injuriada, e como criar causa comum com aquelas outras que se identificam como fora das estruturas a fim de definir e buscar um mundo no qual todas nós possamos florescer. É aprender como pegar nossas diferenças e transformá-las em forças. Pois as ferramentas do mestre não irão desmantelar a casa do mestre (Lorde, 2019, p.137, grifo nosso).

Por isto, penso ser fundamental sempre nos questionarmos para que possamos agir, afinal, talvez as ferramentas que temos utilizado para se pensar e construir uma ciência plural, não têm sido suficientes, por isso, é fundante que passemos a nos questionar: Qual é a cor da Psicologia enquanto um instrumento de formação, de ciência e profissão?

Intelectualidade Negra no Espaço Colonial: Lidando com a Política do Esquecimento

Segundo Carvalho (2006, p. 92), há uma espécie de confinamento racial vivenciada entre os acadêmicos brasileiros, num levantamento realizado pelo autor “entre os anos de 1999 e 2003, o número total dos professores das principais universidades brasileira era de 18.330 docentes brancos e 70 negros”. No Censo de 2017 é possível observar uma certa transformação, ainda que exígua, neste cenário, 53,62% das/dos professoras/es do ensino superior se autodeclaram branca, 15,86% se autodeclaram negra, sendo 1,81% preta e 14,05% parda, 1,01% se autodeclaram amarelos e 29,39% não quiseram declarar cor ou raça (Ibge, 2017).

Durante a minha graduação infelizmente não tive nenhum professor ou professora em Psicologia que se autodeclarava negro. Esse “vazio arquitetado” continuou durante a pós-graduação em Psicologia, e hoje continua enquanto professor de Psicologia. Por mais difícil e doloroso que é este processo de estar só, e sobretudo, na maioria das vezes falar só, fui compreendendo que não era mais uma questão de capacidade ou de desejo. Ao longo dessa caminhada fui aprendendo que lidar e trabalhar com a temática das relações raciais muitas vezes é um caminho que se caminha só no plano da realidade, mas que no plano de fundo é um caminhar amparado por outros corpos que lutaram e que lutam para que não sintamos só. Afinal, nossos passos vêm de longe.

E assim sigamos na busca pela ressignificação de um passado que foi marcado pelo apagamento. Contudo, percebo por diferentes situações o momento em que a temática das relações raciais é colocada em xeque por vezes o silêncio se faz presente por parte do colegiado branco. Por parte dos diretores, e por parte dos discentes, em sua maioria brancos e brancas, afinal, é um problema que é do outro. 

De acordo com o professor Alex Ratts os intelectuais brancos, encastelados em sua branquitude tendem por construir redes profissionais fechadas e cindidas racialmente, criando mecanismos e formas de legitimar suas redes acadêmicas citando-se mutuamente em suas produções, e validando com isso, não apenas seus trabalhos, mas também a si. “Essa estrutura de manutenção de privilégios acaba por caracterizar e perfazer o esquecimento de intelectuais negras (os), ainda mais quando associado a recusa e/ou refutação de suas produções, prática também comum dessas redes” (Ratts, 2006, p. 30).

Vinhas (2016) em sua tese de doutorado discorre sobre a invisibilidade e apagamento de pensadores e pensadoras negras, com isto, o autor utiliza como mote para compreensão do silenciamento da intelectualidade negra no país a trajetória de Beatriz Nascimento, o autor parte do conceito de política do esquecimento, o qual se configura como uma prática social que acaba por promover o apagamento dessas (es) autoras (es) para as novas gerações, subvertendo a ordem científica em função da ordem social, promovendo, a manutenção das hierarquias forjadas pela dinâmica social.

Tanto a política de invisibilidade e o epistemicídio atuam para a manutenção da política de apagamento e tradição colonial euro-estadunidense, a fim de promover a manutenção do poder e a legitimação de um único grupo social, uma vez que, atribui a si a autoridade da fala e a produção de um único discurso legítimo.

Neste sentido, há uma tendência nos currículos dos cursos de formação em Psicologia serem monocromáticos – ou seja – os autores são brancos, a literatura é branca, principalmente homens e eurocêntricos ou estadunidenses. Brancas são as questões estudadas, lidas, discutidas e debatidas. Assim como o público central da maioria dos estudos e pesquisas. Mas se mais da metade da população brasileira não é branca, há algo de estranho e errado conforme a narrativa colonial nos ensinou, com esses currículos. 

Nomes como Virgínia Bicudo, Frantz Fanon, Juliano Moreira, Virgínia Leone Bicudo, Neusa Santos Souza, Isildinha Baptista Nogueira, Maria Aparecida Silva Bento, Lélia González, Beatriz Nascimento, Abdias do Nascimento, Guerreiro Ramos, Luisa Bairros, Sueli Carneiro, Audre Lorde, Grada Kilomba, Wade Nobles foram e são vítimas do epistemicídio, ou seja, a forma da materialização perversa do racismo, no qual exclui, apaga e invisibiliza a produção produzida por e a respeito de corpos negros. Posto que o que o racismo deseja radicalmente a morte do outro. Por isso, é fundamental resgatarmos o nosso passado para que as memórias, as histórias, os conhecimentos, bem como, as experiências não sejam ainda mais silenciadas, apagadas e aniquiladas. Desta forma, faço uso de uma obra Freudiana para elucidar e demarcar a importância de relembrarmos os efeitos nefastos do racismo, do colonialismo, e dos processos de violências. 

Freud (1914/1980) em “Recordar, repetir e elaborar”, descreve fenômenos que estão na base do pensamento psicanalítico, isto é, o autor observa que o paciente repete no relacionamento com o analista comportamentos e atitudes característicos de experiências iniciais, neste sentido, recordar, repetir para elaborar requer ação, disponibilidade, e sobretudo, desejo para não repetirmos os mesmos erros do passado atualizado no contemporâneo.

Portanto, se o paciente não recorda coisa alguma do que esqueceu ou reprimiu, ele expressa-o pela atuação ou atua-o. Ele o reproduz não como lembrança, mas como ação; repete-o, sem, naturalmente saber o que está repetindo, diz Freud (1914/1980), com isto, enquanto não recordamos, apenas ficaremos na repetição. Fixaremos em um presente/contemporâneo repetindo os erros. 

Neste sentido, será que estamos próximos deste processo de elaboração? Ou seja, de construirmos uma Psicologia que não seja mais um instrumento e uma máquina de epistemicídios? Ou será que estamos próximos do processo de recordação?  E se recordarmos o que faremos? O que iremos fazer? Iremos subitamente interromper esse processo de recordação? Porque é muito excessivo, violento, angustiante? 

Não é o meu objetivo abordar e trabalhar todas essas indagações, mas sim produzir o incômodo, e possíveis reflexões, uma vez que, não é um absurdo afirmar que se a Psicologia enquanto ciência e profissão recordar e visualizar os efeitos nefastos do racismo, esta passará novamente ignorar o passado, e consequentemente passará a repetir os mesmos erros coloniais.

Por isto, acredito ser fundamental que possamos nos lembrar que dentro deste sistema estamos em guerra, afinal poucos estão inseridos e inseridas na zona de conforto. É preciso lembrarmos que estamos em uma guerra contra a desumanização, e essa guerra é interminável.

Recordar, repetir, elaborar para não repetirmos os mesmos erros do passado atualizado no contemporâneo.


Dói saber que ainda há sangue na história da psicologia. Ao ignorar o passado somos incentivados a repetir os erros coloniais. Haja vista que, os espaços de poder e saber tornaram-se espaços de disputa teórica e política. Não podemos nos esquecer que neste mesmo espaço de construção dos saberes que os homens do bem e homens de ciência ajudaram a produzir as pseudociências raciais, que não aquele momento histórico pontuava e afirmava que havia supostamente uma raça superior e inferior. A ciência, a Psicologia e dentre outros saberes serviram naquele momento como instrumento de dominação, discriminação e racismo e a universidade foi o principal espaço de divulgação dessas ideias e práticas.

Segundo a narrativa oficial, as sociedades democráticas são sociedades pacificadas, sendo este o fator que as distingue das sociedades guerreiras. A brutalidade e a violência física teriam sido banidas ou, pelo menos dominadas. Devido ao monopólio da força para benefício do Estado e à interiorização de constrangimentos pelos indivíduos, o corpo a corpo pelo qual se exprimia a violência física na sociedade medieval até ao Renascimento dera lugar à auto inibição, à contenção e à civilidade. Esta nova forma de governo dos corpos, dos comportamentos e dos afetos levou à pacificação dos espaços sociais (Mbembe, 2017, p. 32). Grifos nossos.

A partir desta citação de Mbembe é possível afirmarmos que a compreensão de que a democracia é desprovida de violência, seria uma querela. Uma vez que se tem na história a existência da democracia junto com a escravização, como ocorreu no Brasil. O sistema colonial, e o sistema da democracia estão sempre interligados (Mbembe, 2017; Santos, Oliveira, 2019). 

É preciso demarcar que a violência estrutura a lógica do que estamos nomeando por democracia, haja vista que, se refere a uma democracia construída a partir de um imaginário e uma prática de submissão do modo de vida dos indígenas e das populações negro-africanas no Brasil. E, o racismo passa ser uma ferramenta para este regime. Para a estruturação e manutenção do necropoder na medida em que cria zonas territoriais matáveis, saberes matáveis, populações matáveis. Pois então, o que vemos na realidade não é um estado de exceção, mas a regra, como afirma Giorgio Agamben. 

Caracterizando então a fabricação de uma parte da população naturalizada a viver fora da rede da vida, ou seja, “é estar sempre a prestar contas à morte, em condições em que a própria morte tende a tornar-se cada vez mais algo de espectral, tanto pelo modo como é vivida como pela maneira como acontece” (Mbembe, 2017, p. 64-65).

Nesta perspectiva, é de suma importância apontar que a violência racial, bem como a política de morte, são paisagens construídas constantemente. Com isto, segundo Santos e Oliveira (2019), não há paz para aquele que vive na política de morte que o tempo inteiro remonta à colônia. A necropolítica produziu uma política de extermínio em que o nascimento é a “Certidão de óbito”, não de nascimento.

A partir desta citação de Mbembe é possível afirmarmos que a compreensão de que a democracia é desprovida de violência, seria uma querela. Uma vez que se tem na história a existência da democracia junto com a escravização, como ocorreu no Brasil. O sistema colonial, e o sistema da democracia estão sempre interligados (Mbembe, 2017; Santos, Oliveira, 2019). 

É preciso demarcar que a violência estrutura a lógica do que estamos nomeando por democracia, haja vista que, se refere a uma democracia construída a partir de um imaginário e uma prática de submissão do modo de vida dos indígenas e das populações negro-africanas no Brasil. E, o racismo passa ser uma ferramenta para este regime. Para a estruturação e manutenção do necropoder na medida em que cria zonas territoriais matáveis, saberes matáveis, populações matáveis. Pois então, o que vemos na realidade não é um estado de exceção, mas a regra, como afirma Giorgio Agamben. 

Caracterizando então a fabricação de uma parte da população naturalizada a viver fora da rede da vida, ou seja, “é estar sempre a prestar contas à morte, em condições em que a própria morte tende a tornar-se cada vez mais algo de espectral, tanto pelo modo como é vivida como pela maneira como acontece” (Mbembe, 2017, p. 64-65).

Nesta perspectiva, é de suma importância apontar que a violência racial, bem como a política de morte, são paisagens construídas constantemente. Com isto, segundo Santos e Oliveira (2019), não há paz para aquele que vive na política de morte que o tempo inteiro remonta à colônia. A necropolítica produziu uma política de extermínio em que o nascimento é a “Certidão de óbito”, não de nascimento.

CERTIDÃO DE ÓBITO

 

Os ossos de nossos antepassados

colhem as nossas perenes lágrimas

pelos mortos de hoje.

 

Os olhos de nossos antepassados,

negras estrelas tingidas de sangue,

elevam-se das profundezas do tempo

cuidando de nossa dolorida memória.

 

A terra está coberta de valas

e a qualquer descuido da vida

a morte é certa.

A bala não erra o alvo, no escuro

um corpo negro bambeia e dança.

A certidão de óbito, os antigos sabem,

veio lavrada desde os negreiros.

 

Conceição Evaristo

A nossa mestra Conceição Evaristo registra em cada linha o que Mbembe nomeou por política de morte, ou, necropolítica, posto que, a necropolítica é um projeto que atualiza e se expande em várias fases da história. Contudo, o genocídio do negro brasileiro não provoca terror nem horror no tecido social brasileiro.

Uma vez que esse país ainda persiste em negar e repetir os erros do passado, bem como, na crença da cordialidade e da democracia racial. Porém se ainda insistem acreditar neste produto da modernidade, nós gritaremos mais alto, não mais apenas para sermos escutados, mas porque existimos

E sempre combateremos a morte violenta, bem como este cis-tema colonial, haja vista, a insistência da política de certidão de óbito é uma morte construída para o aniquilamento do devir negro. “É uma tentativa de morte material e imaterial. A necropolítica produz uma violência, a qual não se pode exasperar com o eco e o oco sem sentido produzido pelo aniquilamento das formas de viver e de morrer” (Santos, Oliveira, 2019, p. 224). 

Deste modo “o epistemicídio e o genocídio e, portanto, a necropolítica são faces do mesmo processo. É necessário combater a ambos”. (Pessanha; Flor do Nascimento, 2018, p. 26). Uma vez que o poder de matar, é um projeto da colonialidade em transe contra a pele negra. 

Com isto, a disputa pela vida é uma luta constante. É diante deste ponto que gostaria de associar a psicologia a necropolítica, posto que, a psicologia passa a ser gerida pelo que estou nomeando por modelo de gestão, o qual se estrutura e tem como vias a serem seguidas o apagamento, aniquilamento e o epistemicídio. Produzindo então o silenciamento de intelectuais negros e negras. Sendo então um instrumento de constituição de subjetividades por meio da operação do controle, silenciamento e apagamento de corpos e de modos de subjetivação.  

Assim, os saberes psis, a pedagogia, buscam incessantemente capturar subjetividades ditas desviantes e abjetas para colocar em prática a narrativa da promessa de correção e do cuidado, no entanto, o que se pode afirmar diante disto é que há uma estrutura de manutenção, naturalização e produção de necro relações e de pedagogias da violência. Como pode-se observar durante anos a psicologia como sendo um dispositivo disciplinar e uma via de apagamento e silenciamento. 

Parafraseando Haraway (1995) temos gastado muita tinta tóxica e árvores transformadas em papel para tentar falar do racismo, sobretudo, na perspectiva “do negro”, como sendo um problema que atravessasse apenas o corpo negro, bem como reforçando estereótipos e alimentando a manutenção dos lugares sociais. 

Intelectuais negros e negras do saber Psi estavam não só denunciando os efeitos do racismo, como também pensando em como trabalhar no que se refere a saúde mental dos corpos negros. Urge reconhecer esse processo destrutivo, produtor de assimetrias e injustiças – que se perpetuaram nas sociedades marcadas pela violência da colonização –, para além dos aspectos econômicos, apresentados por muito tempo como preponderantes na escalada de autoritarismo a que foram submetidas populações inteiras. Assim, como urge pensar o processo de colonização como elemento que alterou o curso de tantas subjetividades, apropriando-se da riqueza das múltiplas identidades presentes em qualquer coletividade humana (Mattos, 2020). 

Portanto (…) Como nos libertar desse imaginário ainda tão arraigado nos comportamentos? Em que medida o discurso da psicologia enquanto ciência e profissão ainda não carregam essa lógica colonizada, ainda que pretenda andar na contramão dela? Haja vista que colonizar implica hierarquizar, dividir e dominar, ou seja, trata-se de uma necropolítica que destrói a natureza e populações inteiras. Destrói-se fisicamente e simbolicamente. Portanto: genocídio, etnocídio e ecocídio andam de mãos dadas nessa era. 

Mas segundo Seligmann-Silva (2020) há uma quarta face dessa besta do apocalipse que não pode ser esquecida. Pois trata-se também aqui de um memoricídio planejado e sistematicamente reiterado. Não pode haver dominação sem violência física e simbólica. O caso do Brasil é paradigmático: país com uma das piores divisões sociais da riqueza no mundo, é também um campeão em termos de violência estatal e paraestatal, assim como em termos do apagamento das histórias e narrativas dessas violências.

Nas palavras de Achille Mbembe:

“O grande nervo [do] projeto imperial é a diferença racial.

 

NO ENTANTO,

Onde estiver, seja lá como for, tenha fé porque até no lixão nasce flor.

Racionais Mc’s

Há 20 anos atrás se alguém me perguntasse: Fale 10 nomes de intelectuais negros ou negras, talvez eu não conseguiria responder. Pensar em Psicólogos/Psicólogas negras? Acho que naquele momento com certeza essa não seria uma questão. Mas foi ao me deparar com a Psicologia, bem como com a literatura especializada sobre o saber psicológico que essa passou a ser uma demanda para minha pessoa. Depois de 20 anos, cá estou como professor, e vislumbrando um cenário que jamais pensei que pudesse visualizar. 

Por mais doloroso que seja corroboro com a fala de Faustino (2020) no qual mesmo com todo este processo de insurgência, há também uma efervescência de publicações sobre racismo, sobre autores e autoras negras e isso tem muito a ver com a presença negra nas universidades, que foi possibilitada pelas ações afirmativas nos últimos anos.

 

Não é à toa que a universidade (que sempre foi um espaço da elite, sempre foi um espaço consagrado e poupado pelas elites) agora tem sido tão atacada pelos atuais governantes, pois, de fato, eles sabem que uma parte da população que estava fora começou a entrar e se utilizar desse espaço também como possibilidade de produção de conhecimento insurgente, de construção de outras narrativas (Faustino, 2020, p, 34).

Para Fanon, o modelo manicomial, da forma que estava estruturado, era colonial porque repetia com as pessoas consideradas loucas aquilo que o colonialista faz com o negro, ou seja, destituí-lo de sua humanidade e autonomia, deixando de reconhecê-lo como sujeito, reconhecendo-o apenas como objeto. Para Fanon, a relação moderna entre médico e paciente assume, no contexto da psiquiatria, expressões coloniais (Faustino, 2020, p. 36). E assim, coisificam esses corpos, essas vidas, aliás não são vidas. 

Em outro sentido, conforme Santos (2018) nos alerta sobre o afã colonial “ao substituírem as diversas autodenominações desses povos, impondo-os uma denominação generalizada, estavam tentando quebrar as suas identidades com o intuito de os coisificar” (2019, p. 20). Portanto, é no exercício de governar que políticas diferenciadas sobre corpos, sujeitos e espaços também diferenciados produzem um conjunto de vidas precarizadas.

Uma vez que, testemunhar não é somente escutar o que é falado, mas é principalmente captar o que não pode ser dito. É admitir, no caso brasileiro, a violência como configuração fundamental e condicionante dos modos de vida (Mattar, 2020, p. 29).

É fato que a psicologia brasileira que acordou não consegue mais voltar atrás, assim como afirma Mattar (2020). Afinal, essa Psicologia que despertou precisa rever-se, repensar sua formação, suas práticas, os autores e autoras com os quais trabalha metodologias, precisa escutar e aprender, abalando o entorpecimento de suas produções. Ainda que o medo da perda de território faça com que se avolumem resistências e violências contra “o que não é espelho”.

No entanto, somos filhos/es/as da luta, nossos passos vêm de longe, por isso: continuaremos na luta. Como Zumbi dos Palmares afirma:

É chegada a hora de tirar nossa nação das trevas da injustiça racial.

E agora ouvimos um grito de guerra,

ao longe divisamos as tochas acesas,

é a civilização sanguinária que se aproxima.

Havia a construção de um projeto de extermínio do meu povo.

Mas não mataram nossos poemas, história e nosso povo.

Mais forte que todas as forças é a Liberdade…

Reflexões finais

Nesta perspectiva, instala-se um desafio: entender a ciência requer entendê-la sob a ótica do poder, da classe, raça, gênero e racismo. Pois, o espaço da universidade, da produção do saber e do poder é um espaço marcado pelas relações de poder, portanto, mexer nas estruturas internas da universidade é deslocar focos de poder do lugar (Gomes, 2017). 

Haja vista que, nem sempre os instrumentos metodológicos e as tradicionais categorias de análise construídas sob a égide da lógica da racionalidade ocidental moderna dão conta de interpretar a complexidade de expressões e vivências afro-brasileiras. Tal situação impele esse grupo de intelectuais a conhecer o cânone e as teorizações sobre relações raciais por ele já realizadas e produzir outros conhecimentos, outras teorias e metodologias que possibilitem um outro tipo de análise mais aprofundada sobre a complexidade da dimensão étnico-racial brasileira e latino-americana sob o ponto de vista dos próprios negros/as. 

Trata-se, portanto, de uma luta semântica no interior da própria ciência, assim como o Movimento Negro o faz no contexto da política e das representações sobre relações raciais. Como afirma Gomes (2017) estamos diante do desafio da produção de um conhecimento sobre as relações raciais feita pelo negro e não sobre o negro ou para o negro, como tem sido a tradição ocidental.

Referências

Carvalho, José, Jorge. (2006). O confinamento racial do mundo acadêmico brasileiro. Revista USP, São Paulo, n.68, p. 88-103, dezembro/fevereiro.

Faustino, Deivison Mendes (2020). M. Frantz Fanon e a mental brasileira diante do racismo. In: Defensoria Pública do Estado do Rio de Janeiro; organizadoras: Patrícia Carlos Magno, Rachel Gouveia Passos: Direitos humanos, saúde mental e racismo: diálogos à luz do pensamento de Frantz Fanon. – Rio de Janeiro, p. 34-49.

Freud, Sigmund. (1980). Recordar, repetir e elaborar (Novas recomendações sobre a técnica da Psicanálise II). In S. Freud, Edição standard brasileira das obras psicológicas completas de Sigmund Freud (Vol. 12, pp. 191-203). Rio de Janeiro: Imago. (Trabalho original publicado em 1914).

Gomes, Nilma Lino. (2017). O. Movimento Negro educador: saberes construídos nas lutas por emancipação. Vozes, 154 p.

Haraway, Donna. (1995). Saberes Localizados: a questão da ciência para o feminismo e o privilégio da perspectiva parcial. Cadernos Pagu (5). Campinas: Núcleo de Estudos de Gênero – Pagu/Unicamp, p.7- 41.

Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística, IBGE. (2017). Pretos e Pardos estão mais escolarizados, mas desigualdade em relação aos Brancos permanece. Brasília (DF):IBGE.

Lorde, Audre (2019). Irmã outsider. Tradução Stephanie Borges. 1. ed. Belo Horizonte: Autêntica Editora.

Mbembe, Achille (2017). Políticas da Inimizade. Trad. de Marta Lança. Lisboa: Antígona, 2017, 250p.

Pessanha, Eliseu Amaro de Melo; Nascimento, Wanderson Flor (2018). Necropolítica: Estratégias de extermínio do corpo negro. ODEERE, [S.l.], v. 3, n. 6, p. 149-176, dez. 2018.

Ratts, Alex (2006). Eu sou Atlântica: Sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento. São Paulo: Imprensa Oficial.

Santos, Luís Carlos Ferreira do. (2018) O poder de matar e a recusa em morrer: Filopoética afrodiaspórica como Arquipélago de libertação. 2018. 237f. Tese (Doutorado em Educação) – Universidade Federal da Bahia.

Santos, Luís Carlos Ferreira.; Oliveira, Eduardo David (2019). Filosofia africana: necropolítica e poética de resistência. Problemata: R. Intern. Fil. V. 10. n. 2, p. 212-228.

Seligmann-Silva, Márcio (2020). Decolonial, des-outrização: imaginando uma política pós-nacional e instituidora de novas subjetividades (1ª parte). Arte Brasileiros. 

Vinhas, Wagner. (2018). Revisitando Maria Beatriz Nascimento: a continuidade histórica entre os sistemas sociais negros do passado e os assentamentos em favelas urbanas e comunidades rurais da atualidade. Revista da ABPN, vol. 10, nº 25, p. 271-293.

Notas

[1]  Mulher, negra, afroamericana, lésbica e poeta.

Como citar esse texto

ABNT

NAVASCONI, P. V. P. Modelos de gestão e suas vias para o epistemicídio e memoricídio: Enegrecer a Psicologia é improrrogável. CadernoS de PsicologiaS, n. 4, 2023. Disponível em: LINK. Acesso em: __/__/_____

APA

Navasconi, P. V. P. (2023). Modelos de gestão e suas vias para o epistemicídio e memoricídio: Enegrecer a Psicologia é improrrogável.CadernoS de PsicologiaS, 4. Recuperado de: