Revista CadernoS de PsicologiaS

Metodologia

Narrativas de psicólogas negras no Paraná?

Debora Lydinês Martins Corsino
Especialista em Saúde da Mulher — Mestranda em Psicologia UEL Coletivo Dona Vilma Yá Mukumby

Psicóloga (CRP-0826436) — E-mail: deboralydines.mc@gmail.com
Pamela Cristina Salles da Silva
Mestra em Psicologia/UEL. Especialista em Psicologia Clínica e da Saúde/UNIFIL

Psicóloga (CRP-08/20935) — E-mail: pamelasallessilva@gmail.com
Thais Rodrigues dos Santos
Mestra em Educação/ UNICENTRO-PR. Doutoranda em Psicologia Social/UFSC

Psicóloga (CRP-08/23443) — E-mail: rodriguesdossantosthais@gmail.com

#Relatos_de_experiência

Resumo: Onde estão os retratos de psicólogas(es/os) negras(es/os) na história registrada da Psicologia no Paraná? A resposta costumeira de que no Paraná não haja pessoas negras compõem o mesmo projeto de encobrimento branco em curso no Brasil desde o século XIX. A partir da composição da Comissão Permanente Étnico-Racial do Conselho Regional de Psicologia do Paraná marcamos a atuação política em defesa do fazer antirracista na Psicologia, respaldada pelas normatizações da classe. Nesse texto, apresentamos a experiência da Série Mulheres Negras e Psicólogas dessa Comissão. Ao colocar em evidência as narrativas de vida e formação, o projeto possibilitou que a memória da Psicologia do Paraná seja não apenas ampliada, mas, enegrecida e pluralizada. Com isso, reafirmamos a importância da conquista política do status permanente para a Comissão Étnico-Racial do CRP-08 no ano de 2022, já que em quaisquer cenários permanecemos na luta antirracista na Psicologia e no campo da saúde mental.

Palavras-chave: Comissão Étnico-Racial do CRP-08; psicólogas negras; psicologia antirracista.

NARRATIVES OF AFRO-BRAZILIAN PSYCHOLOGISTS IN PARANÁ?

Abstract: Where are the portraits of Afro-Brazilian psychologists in the recorded history of Psychology in Paraná? The usual response that there are no black people in Paraná is part of the same white cover-up project underway in Brazil since the 19th century. From the composition of the Ethnic-Racial Permanent Commission of the Regional Council of Psychology of Paraná, we marked the political action in defense of the anti-racist work in Psychology, supported by the norms of the class. In this text, we present the experience of the Afro-Brazilian Women and Psychologists Series of this Commission. By highlighting the narratives of life and training, the project made it possible for the memory of Psychology in Paraná to be not only expanded, but also blackened and pluralized. With this, we reaffirm the importance of political achievement of permanent status for the Ethnic-Racial Commission of CRP-08 in the year 2022, since in any scenario we remain in the anti-racist struggle in Psychology and in the field of mental health.

Keywords: Ethnic-Racial Commission of CRP-08; black psychologists; anti-racist psychology.

¿NARRATIVAS DE PSICÓLOGAS AFROBRASILEÑAS EN PARANÁ?

Resumen: ¿Dónde están los retratos de psicólogos negros en la historia registrada de la Psicología en Paraná? La respuesta habitual de que no hay negros en Paraná es parte del mismo proyecto de encubrimiento de los blancos en curso en Brasil desde el siglo XIX. A partir de la composición de la Comisión Permanente Étnico-Racial del Consejo Regional de Psicología de Paraná, marcamos la acción política en defensa del trabajo antirracista en Psicología, sustentado en las normas de clase. En este texto presentamos la experiencia de la Serie Mujeres Negras y Psicólogas de esta Comisión. Al resaltar las narrativas de vida y formación, el proyecto posibilitó que la memoria de la Psicología en Paraná no solo sea ampliada, sino también ennegrecida y pluralizada. Con ello, reafirmamos la importancia de la consecución política de la permanencia de la Comisión Étnico-Racial del CRP-08 en el año 2022, ya que en cualquier escenario nos mantenemos en la lucha antirracista en Psicología y en el campo de la salud mental.

Palabras clave: Comisión Étnico-Racial del CRP-08; psicólogos negros; psicología antirracista

1. Introdução

Em 2013, o Conselho Regional de Psicologia do Paraná lançou a publicação “Psicologia do Paraná: um panorama da Profissão no Estado do Paraná e a Trajetória do CRP-PR”, decorrente da série realizada em vídeo no ano de 2012, em comemoração aos 50 anos desse Conselho. De autoria da psicóloga branca Nanci Garcia Cairo, o livro ilustra a trajetória da Psicologia no Paraná com descrições históricas e apresentação ampla de como se deu o início dessa profissão no estado. 

Ponto marcante da linha histórica exposta na publicação é a afirmação de que o Primeiro Congresso Brasileiro de Psicologia ocorreu em 1953 em Curitiba, propondo um currículo para a formação em Psicologia, e gerando conexões e mobilizações que culminaram na lei 4.119 de 27 de agosto de 1962 que estabeleceu e regulamentou a profissão de psicólogo no Brasil. Porém, a criação da primeira Associação Profissional dos Psicólogos do Estado do Paraná só ocorreu em 1974, devido a organização política dos formandos da primeira turma de Psicologia da Pontifícia Universidade Católica do Paraná – PUC-PR, instituída posteriormente como regional do Conselho Federal de Psicologia. Toda essa linha histórica é ricamente documentada com biografias de expoentes cuja trajetória profissional entrecruza-se com o do próprio movimento de início e fortalecimento do CRP-08, também com muitas fotografias que ilustram cada percurso. Porém, uma questão salta aos olhos ao percorrer as quase duzentas páginas: onde estão os retratos de psicólogas(es/os) negras(es/os) no Paraná?! 

A resposta costumeira de que no Paraná não haja pessoas negras compõem o mesmo projeto de encobrimento branco no Brasil desde o século XIX. Falamos de um país com 56,2% da população autodeclarada negra (preta ou parda), segundo a Pesquisa Nacional por Amostra de Domicílios (PNAD) 2019. No mesmo período dados do IBGE (Brasil, 2019) revelaram que a evasão escolar marca taxa de 70% entre pessoas pretas e/ou pardas, além disso os mais altos índices de encarceramento, violência, sobretudo, LGBTIfobia, transfeminicidios, feminícidios e homicídios de crianças e jovens negras, são alguns enquadramentos do genocídio da população negra brasileira. 

Nesse cenário, o campo da saúde mental em termos de acesso, qualidade e ações específicas direcionadas ao cuidado da população negra e, também, indígena precisa de avanços posicionados contra o tipo de sociedade historicamente vigente no país: arbitrária e desigual. Aqui mais uma pergunta surge: há relação entre o predomínio de profissionais de identidade racial branca nas áreas relacionadas à saúde mental e o panorama de violências supracitados? Por mais que essa seja uma pergunta retórica, ela é convocatória e expressa a angústia do nosso contato com a publicação “Psicologia do Paraná: um panorama da Profissão no Estado do Paraná e a Trajetória do CRP-PR”, sem identificar um rosto parecido conosco, sem representatividade, se reproduz um desenraizamento partilhado por muitas de nós, que se tornaram apenas números, ou nem isso, há séculos na história deste país. 

Conforme Silva (2020, p.73) salienta não apenas a saúde mental está intimamente relacionada ao sentimento de enraizamento, mas também as ações sociais, uma vez que 

…é na experiência enraizadora que estão os germes criativos para a ação com sentido, pessoal e coletivo, dentro de uma dada cultura. A ausência de reconhecimento ou participação ativa e consciente na coletividade em que se está inserido, isto é, numa dada cultura e tempo, leva a experiência de desenraizamento.

Nós, algumas psicólogas negras “daqui do Paraná”, embora, constantemente interpeladas pela pergunta: “de onde você é?”, estamos aqui e seguimos com mais questionamentos, enraizadas e, acima de tudo, posicionadas coletivamente na ação com sentido: a luta antirracista de dentro da psicologia. Com essa descrição, reconhecemos e apresentamos a Comissão Étnico-Racial do CRP-08 formada por profissionais da psicologia negras(es/os) e psicólogas(es/os) não-negras(es/os), inscritas neste Conselho. Atuamos de maneira transversal visando consolidar a Resolução CFP nº 18/2002 que institui parâmetros para o exercício da Psicologia Antirracista.

Chimamanda Ngozi Adichie (2019), escritora nigeriana, refletindo sobre como as histórias são contadas e como essas narrativas, dependendo da maneira como são construídas e apresentadas, podem limitar ou expandir a percepção sobre pessoas, acontecimentos, grupos ou povos, incorrendo o risco do perigo de uma única história. Por isso, dedicamos esse texto para contar em tempos de comemorações dos 60 anos da Psicologia como profissão no Brasil, outra história da Psicologia no Paraná, a partir de protagonistas negras: a série “Mulheres Negras e Psicólogas do Paraná”. Nesse projeto da Comissão Étnico-Racial do CRP-08 reivindicamos uma Psicologia não apenas antirracista, mas enegrecida com foco no entrecruzamento raça, gênero e formação em Psicologia. O texto foi dividido pela primeira parte com o referencial teórico de intelectuais feministas negras, seguido da metodologia e discussão.

2. Intelectuais negras e feministas na mirada decolonial

O colonialismo, condição para a modernidade, operou classificações hierárquicas de corpos colonizados, transformando-os em “outros” generalizados em representações racializadas àqueles(as) não-brancas. A construção desse sistema-mundo moderno criou categorias dicotômicas, cuja excelência e superioridade foram empossadas a representação única de sujeito/agente exclusiva ao homem europeu, burguês, colonial moderno, considerado espelho de civilização: cis-heterossexual, cristão, dotado de mente e razão. Já a mulher cis-heterossexual europeia burguesa foi reduzida a reproduzir raça e capital por meio de sua feminilidade única: pureza sexual, passividade, atada ao lar  e a serviço do casamento cristão monogâmico, logo ao homem branco. Quanto aos colonizados, sobremaneira, mulheres negras, o projeto colonial as transformou não em identidade, mas em natureza (Lugones, 2014). Na cultura brasileira, as mulheres negras vistas como corpos negros desumanizados, foram transformadas no “outro feminino” racializado, conforme Lélia Gonzalez (1984).

Nesses termos, para Beatriz Nascimento (2007) os engendramentos coloniais atualizados legitimaram a exploração sexual sistemática de mulheres negras diversas, determinada fortemente pela moral cristã portuguesa, que atribuiu à mulher branca cis-heterossexual de classes mais altas o papel de esposa ou de “solteirona” dependente economicamente do homem cis-heterossexual. Assim, essas mulheres brancas foram reduzidas a esposas procriadoras, ou seja, sua vida sexual limitava-se à posterior maternidade, na medida em que se solidificou o imaginário de naturalização da suposta necessidade sexual “biológica” do homem. E recaiu sobre as mulheres negras e mestiças a exploração sexual em série para satisfazer as necessidades coloniais.

Diante disso, a luta das mulheres alcançou diferentes rumos na história, pois suas diferentes inserções sociais e origens étnicas regularam lugares e protagonismos. Em comum, traziam o desejo de liberdade. Para as mulheres brancas, foi a luta contra o domínio patriarcal. Para as negras, a luta contra o jugo colonial, a escravidão e o racismo (Carneiro, 2007). As possibilidades para mulheres negras, segundo Beatriz Nascimento (2007) durante e após a escravização foi reduzida a mão de obra degradante, “um destino histórico”. É ela, a mulher negra, quem desempenha, em sua maioria, os serviços domésticos, os serviços em empresas públicas e privadas recompensadas por baixíssimas remunerações. Em suma, se produz relações de trabalho atualizadas pelas mesmas lógicas coloniais (Nascimento, 2007, p. 128).

No entanto, Jurema Werneck (2008) alerta que no Brasil é preciso notar que, as mulheres negras, sujeitos identitários e políticos, são resultados de uma articulação de heterogeneidades, resultante de demandas históricas, políticas, culturais, de enfrentamento das condições adversas estabelecidas pela dominação ocidental eurocêntrica ao longo dos séculos de escravidão, expropriação colonial e da modernidade racializada e racista em que vivemos. Por isso, Patricia Hill Collins (2016, p. 102) propõe que mulheres negras se definam a si próprias, rejeitando a suposição irrefletida de que aqueles privilegiados modernos em posições de poder superior têm autoridade de descreverem e analisarem suas realidades.

Essa prática política reposiciona mulheres negras e suas narrativas na disputa coletiva pela tomada digna de lugares sociais e políticos sonhados e lutados pelas ancestrais. Partindo desse quadro de referência a série aqui apresentada emerge como uma prática política de mulheres negras vinculadas a instituições que, também reiteram lógicas da modernidade estruturante. A seguir discorreremos sobre a série de vídeos-narrativas Mulheres Negras e Psicólogas, criada e amplamente divulgada nas redes sociais como material histórico-educativo na Psicologia, no ano de 2020.

3. Metodologia

A proposta da Série Mulheres Negras e Psicólogas surgiu de um encontro entre a Comissão Étnico-Racial (CER) e o Núcleo de Psicologia e Migrações (NUPSIM), vinculados ao Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR). O convite partiu do NUPSIM para unirmos planejamentos em ação conjunta em comemoração ao dia 25 de julho, Dia Internacional da Mulher Negra Latino-Americana e Caribenha e Dia Nacional de Teresa de Benguela. Na reunião, problematizamos as especificidades da branquitude no Paraná, com foco nas hierarquias raciais, feminismos, invisibilização de mulheres negras no Sul do Brasil, entre outras. E, como encaminhamento, nós, mulheres negras da comissão étnico-racial, propusemos a produção de vídeos curtos de psicólogas negras lotadas no Paraná sobre memórias de suas trajetórias psis pretas. A proposta foi aprovada e elegemos um grupo de trabalho (GT) para a elaboração e execução da série “Mulheres Negras e Psicólogas do Paraná”.

O GT realizou um segundo encontro para alinhamento da proposta, divisão de tarefas, questões audiovisuais, tempo de execução, prazos e convites. A equipe de comunicação do CRP-PR e NUPSIM ficaram responsáveis pela edição dos vídeos, a inauguração da série pelo site oficial do CRP-PR e pelas suas redes sociais (facebook, instagram e Youtube).  Acordamos para o dia 25 de julho de 2020 a divulgação do primeiro vídeo e um texto sobre o projeto. Já o tempo de execução foi condicionado ao número de participantes convidadas, o CER integrou a participação narrativa dos vídeos e viabilizou o convite através da construção de uma rede de contatos entre psicólogas negras no Paraná. 

Para isso, organizamos um grupo no WhatsApp intitulado Vídeos para 25 de julho, inicialmente estávamos em três, todas do CER e, diante dos aceites para participações na série, o grupo aumentava, no final estávamos em 14 psicólogas negras. Essa ferramenta pensada para direcionar a ordem e envio dos vídeos, as orientações para a filmagem e outras dicas pragmáticas, gradualmente, foi transformada no processo coletivo em um espaço de trocas de vivências negras em sua pluralidade. Nestes bastidores virtuais, partilhamos muitos desafios, sobretudo, em torno da exposição de conteúdos silenciados e apagados sistematicamente pelo embranquecimento estruturante do projeto nacional de Brasil (Skidmore, 1991/2013). Ao mesmo tempo, nos nutrimos com as formas singulares de memorar referências familiares, vivências acadêmicas de resistência, embora, as evidências das facetas racistas subjetivadas em cada contexto sócio-histórico saltassem aos olhos. Lembrar de nosso percurso de VIDA e na psicologia nos lembra que nossos passos vêm de longe (Werneck, 2010).

3.1 Participantes

O projeto contou com enunciações de 13 mulheres autodeclaradas negras (soma de pretas e pardas pelo IBGE) residentes no estado do Paraná. Duas participantes têm origens estrangeiras (Peru e São Tomé e Príncipe/África) e outras nos estados de São Paulo, Santa Catarina e Paraná. Contamos com a participação de uma graduanda em Psicologia e as demais eram profissionais atuantes no estado. Algumas inscrições como sexualidade, classe, território e geração apareceram em alguns vídeos a critério da participante. Pela narrativa visual todas eram mulheres cis e uma delas se identificou como lésbica. Quanto às idades declaradas, variaram entre 22 a 50 anos.

3.2 Participantes

Os vídeos foram gravados por cada participante pelo celular ou aparelho com câmera particulares e enviado para o grupo do WhatsApp para encaminharmos à equipe da edição. O tempo limite para a gravação foi de 5 minutos em média para responder à pergunta: Quais as memórias marcantes para sua construção como psicóloga ou estudante de psicologia negra? Os vídeos foram divulgados semanalmente nas redes do CRP-PR, de julho a outubro de 2020. 

3.3 Por que memórias de psicólogas negras?

Hartman (2020) evidência a importância de acessar o passado, pois a perda da história aguça a fome pela historicidade constituinte da formação humana. As reivindicações sobre o presente trabalho representam uma maneira de nomear nosso tempo, pensar nosso presente e visualizar o passado que o criou (Hartman, 2020, p. 9). Por isso, é preciso evidenciar essas narrativas de passado e presente em disputas por autoridade e legitimidade, inclusive, no campo psi.

Lembremos que, em termos de temporalidade cronológica moderna, é recente (anos 2000) a preocupação dos Sistema Conselhos de Psicologia com o racismo e as hierarquias raciais estruturantes das relações sociais no Brasil, e que a psicologia contribuiu meticulosamente com o racismo científico do século XX (Schucman & Martins, 2017).  A série aqui apresentada, é um marco, uma inovação, uma vez que conta narrativas de mulheres negras atuantes na saúde mental, lugar social hegemonicamente ocupado por pessoas da raça branca, nessa estrutura que historicamente nos reservava apenas o lugar de objeto de pesquisa e intervenção.

A série e suas dimensões políticas a partir das mulheres-memórias negras formadoras 

Glória Anzaldúa (2000) na carta às mulheres escritoras do Terceiro Mundo questiona os insistentes mecanismos para manutenção do silenciamento das nossas existências não-brancas: “Por que eles nos combatem? Porque pensam que somos monstros perigosos? Por que somos monstros perigosos?” (Anzaldúa, 2020, p. 4). A autora afirma que quando nos sabemos — mulheres negras — desequilibramos e muitas vezes rompemos as confortáveis imagens estereotipadas que os brancos têm de nós, dentre elas: a pesada ama de leite com uma dúzia de crianças sugando seus seios e/ou a mulata de exportação, a mãe preta e a doméstica forjadas na sociedade brasileira pelo mito da democracia racial, como reitera Lélia Gonzalez (1984).

“Quem você acha que é? Como você se sentiria se uma empregada doméstica assinasse pela patroa?” Gabriela Reyes Ormero, professora doutora afro-peruana da Universidade Federal do Paraná, assim é interpelada por uma outra docente branca na instituição, conforme conta no último vídeo da série Mulheres Negras e Psicólogas. Esse episódio reitera a mucama “permitida” (Gonzalez, 1984), aquela empregada doméstica que invoca a culpabilidade branca porque ela continua sendo mais do mesmo racismo. Por isso, ela é violentamente reprimida pela branquitude. Desse lugar, importa mantê-las longe do público, no interior das cozinhas, quartos e/ou nos famosos quartinhos designados ao depósito de seus corpos, vistos, como subservientes e “quase da família”, ao mesmo tempo. Mas, não pode se meter a patroa: doutora, intelectual e formadora em uma instituição de ensino? 

Anzaldúa (2000) reitera para mulheres negras ou mestiças como a autora, muitas vezes solitárias, que as diferenças em relação às mulheres brancas não se reduzem a “obstáculos” cotidianos, e admite não ser possível transcender ou ultrapassar os perigos. Pelo contrário, a autora afirma “devemos atravessá-los e não esperar a repetição da performance” (Anzaldúa, 2000, p. 229). Já que pela branquitude, existe uma indignação narcísica entre as mulheres brancas que provoca um sentimento de indignação com a violação dos direitos das trabalhadoras, mas só quando essa violação afeta o grupo de pertença (Bento, 2002, p. 29).

A invisibilização e falta de pertencimento aparece, também, na série pela narrativa comum em torno do processo tornar-se negra, muitas vezes, provocado pelo encontro com outros corpas e corpos negros através de coletivos negros organizados na universidade, formação da negritude positivada na família, vivências no trabalho, entre outras. Para a maioria de nós esse marco inaugura um reposicionamento de enfrentamento por meio do corpo não mais narrado, mas, aquele que narra sobre si, como elucida Neusa Santos Souza (1983) saber-se negra é, sobretudo, comprometer-se com o resgate da sua história, memória ancestral e recriar potencialidades.

Debora Lydinês Martins Corsino, psicóloga negra de pele clara de Londrina-PR e enunciadora do terceiro vídeo da série, relata para contar do seu processo de tornar-se negra: “Eu tive uma professora negra do departamento de Psicologia Social, que desde o meu segundo ano de graduação ela me chama de filha. E sempre me chamou de filha, eu achava que era por conta da semelhança física só. Mas, depois de formada ouvi uma fala dessa professora em um congresso e lá contou: chamo minhas alunas negras de filha para que elas saibam que podem chegar também nesse lugar de doutora, professora em uma universidade pública, concursada. Essa construção dessa professora é um dos marcos que me autorizou a me chamar de negra”. 

Dizer-se negra passa por essas continuidades e descontinuidades coletivas e organicamente singulares diante da imposição colonial de silenciamento (Kilomba, 2020). Rosiane Martins de Souza, psicóloga negra de Londrina e voz estreante da série, reafirma a importância de romper com os diferentes níveis de silenciamento. Destacou as lembranças das reuniões familiares onde as mulheres negras — mãe e tias — eram vistas falando sozinhas, com o tempo a família percebe que essas mulheres falavam com suas roupas, louças e/ou com suas ancestrais. Foi a partir da experiência de luta no movimento negro que Rosiane nomeou esses episódios como mais das mesmas práticas de silenciamento, estratégia colonial que capturou muitas falas de mulheres negras, e não foi diferente com sua mãe e tias.

Além disso, Rosiane chama atenção para o volume das vozes negras da sua família, algumas gritadas e outras quase inaudíveis. Ainda assim, alguém sempre pedia para que se falasse mais baixo ou, melhor, não falasse, como manutenção do silenciamento. Para Audre Lorde (1977) romper com o medo de falar nos impede de paralisar sob pena de sermos definidas por outros, pois esse silêncio sistemático é um abismo violador da nossa capacidade de pensar e de nos auto definirmos. Gonzalez (1984) acrescenta que, assumimos o compromisso do ato de falar com todas as implicações, sabendo da dominação e tentativa de domesticação dos nossos corpos. Exatamente porque temos sido falados, infantilizados (infans, é aquele que não tem fala própria, é a criança que se fala na terceira pessoa, dita pelos adultos), assumimos nossa própria fala. Ou seja, o lixo vai falar, e numa boa (Gonzalez, 1984, p. 225).

A corpa e corpo silenciado dá lugar para sua face política, como afirma Lucielly Conceição dos Santos, psicóloga negra em Primeiro de Maio-PR e oitava interlocutora da série. Durante a graduação ela foi questionada: Você sabia que será uma psicóloga negra? Na época, ela não entendeu, anos depois, no atendimento de mulheres negras nas políticas públicas, Lucielly compreendeu a dimensão da pergunta no seu fazer ético-político. Já que a nomeação da experiência do racismo provoca outros agenciamentos materiais e subjetivos em dinâmica com outras experiências estruturais de opressão, Akotirene (2019) nos lembra: tudo aquilo que não tem nome não existe!

Daí se definir como mulher negra e psicóloga evoca muitas memórias, experiências e, sobretudo, solidariedade negra reluzidas pelo espelho das iabás. Para Lélia Gonzalez (1984) as mães pretas atuaram como intelectuais da sociedade brasileira e não foram meras serviçais. Se consciência é tudo aquilo que a memória não pode apagar, segundo a autora, é preciso compreender que mães pretas transmitiram a intelectualidade africana diaspórica para toda a sociedade brasileira, ainda que o espelho narcisista colonial negue e silencie esses saberes e práticas não-brancas.

A representação ocidental sexista/racista cisheteropatriarcal em torno da intelectualidade exclui a possibilidade da referência a mulheres negras como representativas de uma construção intelectual (hooks1, 1981/2020, p. 5). A hipersexualização da mulher negra informa o sistema moderno-colonial de gênero, cujas existências de mulheres negras são representadas pela negação de humanidade, seu gênero colonial se afasta muito daquele atribuído às pessoas brancas (Lugones, 2014). Por isso, precisamos de cada vez mais mulheres negras infiltradas na Academia, segundo Akotirene (2019) comprometidas com o desmantelamento de rotas hegemônicas da teoria feminista em prol de quem sangra, porque o racismo estruturado pelo colonialismo moderno insiste em dar cargas pesadas aos corpos não hegemônicos. “Lavouras identitárias plantam negritudes onde não existem e impõem para nossos úteros significados ocos e ocidentais do feminismo hegemônico em detrimento da matripotência iorubana” (Akotirene, 2019, p.15).

Considerações finais

As treze narrativas de mulheres negras e psicólogas delineiam expressões de memórias de muitas existências negras em encontro no tempo e no espaço, são construções de experiências e resistências coletivas afrodiaspóricas desafiadas pelas interdições da modernidade. Ao colocar em evidência as narrativas de vida e formação, o projeto Mulheres Negras e Psicólogas do Paraná possibilitou que a memória da Psicologia do Paraná seja não apenas ampliada, mas, enegrecida e pluralizada. Com isso, reafirmamos a importância da conquista política do status permanente para a Comissão Étnico-Racial do CRP-08 no ano de 2022, já que em quaisquer cenários permanecemos na luta antirracista na Psicologia.

Notas

[1]   A prática da escrita com inicial minúscula surge a partir de uma postura da própria autora que criou esse nome em homenagem à sua avó e o emprega em letra minúscula como um posicionamento político que busca romper com as convenções linguísticas e acadêmicas, dando enfoque ao seu trabalho e não à sua pessoa. Nosso texto respeita a escolha da autora.

Referências

Adichie, C. N. (2019). O perigo de uma história única. São Paulo-SP: Companhia das Letras.

Akotirene, C. (2019). Interseccionalidade. São Paulo-SP: Pólen Produção Editorial Ltda.

Anzaldúa, G. (2000). Falando em línguas: uma carta para as mulheres escritoras do terceiro mundo. Estudos Feministas, 8(1), 229-236. Recperado de https://periodicos.ufsc.br/index.php/ref/article/view/9880/9106 

Bento, M. A. S. (2002). Branqueamento e branquitude no Brasil. In I. Carone & M. A. S. Bento (Orgs). Psicologia social do racismo: estudos sobre branquitude e branqueamento no Brasil (pp. 5-58). Rio de Janeiro-RJ: Vozes.

Brasil. (2019). IBGE. Desigualdades Sociais por Cor ou Raça no Brasil. Estudos e Pesquisas. Informação Demográfica e Socioeconônmica, 41. Recuperado de https://biblioteca.ibge.gov.br/visualizacao/livros/liv101681_informativo.pdf 

Carneiro, S. (2011. 06 de Março). Enegrecer o feminismo: a situação da mulher negra na América latina a partir de uma perspectiva de gênero. Portal Geledés. Recuperado de https://www.geledes.org.br/enegrecer-o-feminismo-situacao-da-mulher-negra-na-america-latina-partir-de-uma-perspectiva-de-genero/ 

Collins, P. (2016). Aprendendo com a outsider within: a significação sociológica do pensamento feminista negro. Revista Sociedade e Estado, 31(1), 99-127. doi https://doi.org/10.1590/S0102-69922016000100006   

Faustino, D. M. (2013). A emoção é negra, a razão é helênica? Considerações fanonianas sobre a (des) universalização do “ser” negro. Revista Tecnologia e Sociedade, 9(18). Doi: https://doi.org/10.3895/rts.v9n18.2629 

Gonzalez, L. (1984). Racismo e sexismo na cultura brasileira. In L. A. Silva (Org.). Movimentos sociais, urbanos, memórias étnicas e outros estudos (Ciência Sociais Hoje, 2, pp. 223-244). Brasília: Anpocs. Recuperado de https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4130749/mod_resource/content/1/Gonzalez.Lelia%281983-original%29.Racismo%20e%20sexismo%20na%20cultura%20brasileira_1983.pdf 

Hartman, S. (2020). Tempo da escravidão. Contemporânea – Revista de Sociologia da UFSCar, 10(3), 927-948. doi: https://doi.org/10.31560/2316-1329.v10n3.4 

Hooks, B. (2020). E eu não sou uma mulher? Mulheres negras e feminismo. Rio de Janeiro-RJ: Rosa dos Tempos. (Trabalho original publicado em 1981).

Kilomba, G. (2020). Memórias da plantação: episódios de racismo cotidiano. Rio de Janeiro-RJ: Editora Cobogó.

Lorde, A. (2015, 28 de Março). A transformação do silêncio em linguagem e ação. Portal Geledes. (Comunicação apresentada no painel “Lésbicas e literatura” da Associação de Línguas Modernas em 1977). Recuperado de https://www.geledes.org.br/a-transformacao-do-silencio-em-linguagem-e-acao/ 

Lugones, M. (2019). Rumo a um feminismo descolonial. Estudos Feministas, 22(3), 935-952. doi: https://doi.org/10.1590/S0104-026X2014000300013

Nascimento, B. (2007). A mulher negra no mercado de trabalho. In A. Ratts (Org). Eu sou Atlântica: sobre a trajetória de vida de Beatriz Nascimento (pp. 102-106). São Paulo-SP: Imprensa Oficial do Estado de São Paulo/Instituto Kuanza. Recuperado de https://www.imprensaoficial.com.br/downloads/pdf/projetossociais/eusouatlantica.pdf 

Schucman, L. V., & Martins, H. V. (2017). A psicologia e o discurso racial sobre o negro: do “objeto da ciência” ao sujeito político. Psicologia: Ciência e Profissão, 37(núm. esp.), 172-185. doi https://doi.org/10.1590/1982-3703130002017 

Silva, P. C. S. (2020). Ela canta as histórias: novos usos para antigos modos de subjetivação. (Dissertação de Mestrado, Programa de Pós-Graduação em Psicologia, Universidade Estadual de Londrina) . Recuperado de http://www.bibliotecadigital.uel.br/document/?code=vtls000230944 

Skidmore, T. E. (2013). Fato e mito: descobrindo um problema racial no Brasil. Cadernos de Pesquisa, 79, 5–16. Recuperado de http://publicacoes.fcc.org.br/index.php/cp/article/view/1010 

Souza, N. S. (1983). Tornar-se negro. Rio de Janeiro-RJ: Graal.

Werneck, J. (2010). Nossos passos vêm de longe! Movimentos de mulheres negras e estratégias políticas contra o sexismo e o racismo. Revista da ABPN, 1(1), 8-17. Recuperado de https://edisciplinas.usp.br/pluginfile.php/4962102/mod_resource/content/1/Nossos%20passos%20v%C3%AAm%20de%20longe%21%20Movimentos%20de%20mulheres%20negras%20e%20estrat%C3%A9gias%20pol%C3%ADticas%20contra%20o%20sexismo%20e%20o%20racismo%20%281%29.pdf

Como citar esse texto

APA — Corsino, D. L. M., Silva, P. C. S., & Santos, T. R. (2022). Narrativas de psicólogas negras no Paraná? CadernoS de PsicologiaS, 3. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/narrativas-de-psicologas-negras-no-parana/.

ABNT — CORSINO, D. L. M.; SILVA, P. C. S.; SANTOS, T. R. Narrativas de psicólogas negras no Paraná? CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 3. 2022. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/narrativas-de-psicologas-negras-no-parana/. Acesso em __/___/___.