Revista CadernoS de PsicologiaS

Nota técnica CRP-PR nº 004/2020

Paraná, 04 de novembro de 2020.
Orienta as(os) Psicólogas(os) sobre o atendimento a mulheres em situação de violência.

#Cadernos_Técnicos_do_CRP-PR

CONSIDERANDO a Lei nº 5.766/71, que cria o Conselho Federal e os  Conselhos Regionais de Psicologia e dá outras providências;  

CONSIDERANDO a Resolução CFP nº 010/2005, que aprova o Código de  Ética Profissional do Psicólogo;  

CONSIDERANDO a Nota Técnica CRP-PR nº 005-2018, que orienta as(os)  Psicólogas(os) sobre a autonomia profissional;  

CONSIDERANDO os termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, que  estabelece que o Estado assegurará a criação de mecanismos para coibir a  violência no âmbito das relações familiares;  

CONSIDERANDO o Decreto n° 1.973/1996, que promulga a Convenção  Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher,  concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994;  

CONSIDERANDO o Decreto n° 4.377/2002, que promulga a Convenção sobre  a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979;  

CONSIDERANDO a Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha;  

CONSIDERANDO a Lei nº 10.778/2003, que estabelece a notificação  compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que  for atendida em serviços de saúde públicos ou privados;  

CONSIDERANDO a Lei nº 13.931/2019, que altera a Lei nº 10.778/2003, para  dispor sobre a notificação compulsória dos casos de suspeita de violência  contra a mulher;  

CONSIDERANDO a Portaria nº 204/2016 do Ministério da Saúde, que define  a Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos  de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território  nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências; 

CONSIDERANDO a Portaria de Consolidação nº 4/2017, que apresenta a  consolidação das normas sobre os sistemas e os subsistemas do Sistema  Único de Saúde;  

CONSIDERANDO a Resolução CFP n° 08/2020, que estabelece normas de  atuação do exercício profissional em relação à violência de gênero;  

CONSIDERANDO a necessidade de orientar a categoria profissional sobre o  atendimento a mulheres em situação de violência, bem como sobre denúncia  a instância competente.

O Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) apresenta  a seguir informações e diretrizes que possam embasar o exercício profissional  nos casos que envolvem violência contra as mulheres. 

1) Introdução

O crescente índice de violência contra as mulheres[1], observado nas mais  diversas pesquisas, demonstra que este ainda é um fenômeno crônico no cotidiano  das mulheres brasileiras. Cabe destacar que as diferentes posições relacionadas à  raça/etnia, classe social, orientação sexual, dentre outros fatores, são imprescindíveis para compreender os modos como essas violências atingem diferentemente mulheres negras e branca[2], apontando para a necessidade de visibilizar as problemáticas específicas de cada mulher, pautando os atendimentos em Psicologia na perspectiva da interseccionalidade entre gênero, raça/etnia, classe, orientação sexual, dentre  outras particularidades.

Entende-se por violência contra as mulheres “qualquer ação ou conduta,  baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico  à mulher”, conforme aponta o artigo 1º da Convenção de Belém do Pará, adotada em  9 de junho de 1994. A definição é, portanto, ampla e abarca diferentes formas de  violência contra as mulheres, tais como a violência doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o(a) autor(a) de violência conviva ou tenha convivido no mesmo domicílio que a mulher, compreendendo, entre outras, as violências física,  psicológica, sexual, moral e patrimonial (Lei nº 11.340/2006); a violência ocorrida na  comunidade e que seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre  outros, violação, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições  educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro espaço; e a violência  institucional, perpetrada ou tolerada pelo Estado e/ou seus agentes.  

Portanto, o conceito de violência contra as mulheres, que tem por base a  questão de gênero, remete a um fenômeno multifacetado, com raízes histórico culturais, e é permeado por questões étnico-raciais, de classe, território e de geração.  Neste sentido, falar em gênero requer abordar a temática a partir desse contexto  histórico, do reconhecimento de que a violência contra as mulheres constitui-se em  uma das principais formas de violação dos seus direitos humanos, atingindo-as em  seus direitos à vida, à saúde e à integridade física; exige, portanto, uma atuação  conjunta para o enfrentamento do problema, que envolva diversos setores, tais como a saúde, a educação, a assistência social, a segurança pública, a cultura, a justiça, entre outros.  

Partindo do papel da Psicologia no que tange à violência contra as mulheres,  seu compromisso de fundamentar sua atuação em uma dimensão ético-política, cujas  práticas devem considerar as relações entre o Estado, a sociedade e a criação de  frentes de atuação pautadas nos desafios do contexto social, o presente documento  de referência é uma iniciativa no sentido de somar esforços para as discussões da Psicologia brasileira no âmbito dessa importante temática.  

Além disso, a obrigatoriedade de notificação compulsória e comunicação à  autoridade policial no prazo de 24 horas, para os casos em que houver indícios ou  confirmação de violência contra as mulheres atendidas em serviços de saúde públicos  ou privados, determinada pela Lei nº 13.931 de 10 de março de 2020, foi outro  elemento mobilizador para a construção desta nota técnica. Nesse sentido, este  documento, elaborado por um grupo de trabalho formado por Psicólogas do Conselho  Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR), pretende orientar a categoria  profissional sobre o atendimento às mulheres em situação de violência[3], buscando assim a construção de parâmetros compartilhados que se referem a esses  atendimentos nos âmbitos das políticas sociais[4] e da clínica.

2) Orientações às(aos) profissionais no atendimento às mulheres em situação  de violência

O trabalho com mulheres em situação de violência constitui-se um desafio, seja  no campo clínico ou nas políticas sociais, tendo em vista as distintas particularidades que podem atravessá-las. As interseccionalidades exigem de nós, categoria profissional, práticas não uniformizadas ou homogêneas, mas que levem em  consideração as demandas das mulheres no momento do atendimento, já que cada  caso possui especificidades que exigem especial atenção. Pensando nisso, faz-se  importante a adoção de algumas ferramentas.  

2.1) Acolher

Adotado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) enquanto uma das ferramentas  da Política Nacional de Humanização (PNH), vemos que o acolhimento não se  constitui como uma prática exclusiva das(os) Psicólogas(os). De acordo com a  Ferreira (1975), acolher significa dar acolhida, admitir, aceitar, dar ouvidos, dar crédito  a, agasalhar, receber, atender, ou seja, o acolhimento se dá por meio de uma postura  de aproximação e de inclusão, de “estar com”, “estar perto de”. Portanto, vai além de  uma atitude voluntária de bondade ou favor, mas constitui-se como um momento de  compartilhamento de saberes e angústias em que a paciente/usuária sente-se  “abrigada e agasalhada”. É importante esse momento de conceituação da ferramenta  do acolhimento para que ela não seja confundida somente como um processo de  levantamento de dados, ou como um local ou espaço, mas com uma postura ética de  escuta.  

Dito isso, entendemos que o acolhimento das mulheres em situação de violência se expressa por meio de uma escuta técnica qualificada, isto é, por meio de  uma escuta livre de julgamentos e porosa às necessidades decorrentes das  diversidades das mulheres ao longo do atendimento. Desta forma, é importante que elas possam falar livremente de suas angústias e temores, tendo em vista que as  violências vivenciadas, por vezes, não permitem espaços de diálogo, além de instaurar sentimentos de culpa e confusão quando há tentativas de conversa. Estes sentimentos reforçam a permanência nas relações de violência e instauram sobre as mulheres a constante responsabilidade por “consertar” algo em seus vínculos. Por  isso, o espaço de fala e expressão do conjunto de ideias e vivências que as atravessam se faz fundamental para a construção em coletivo (usuária/paciente e  profissional) de uma postura protagonista sobre suas vidas.  

A postura protagonista não se dá de maneira natural ao longo do atendimento,  senão por meio do espaço de escuta e fala livre por parte das mulheres. Ao relatarem  sobre seu cotidiano, usuária/paciente e profissional podem identificar as demais  atividades exercidas pelas mulheres, auxiliando-as a reconhecer a ocupação de  espaços que estão para além do lugar de vítima. Quando em situação de violência,  as mulheres podem ter a falsa percepção de que são incapazes de exercer suas atividades cotidianas ou que não as fazem de maneira exitosa, já que muitas vezes  essa é uma das faces da violência psicológica. Por isso, é importante que a(o) profissional as auxilie, no momento do acolhimento, a reconhecer as atividades exercidas por elas, historicizando as trajetórias de trabalho ou atividades feitas até então. Ressaltamos ainda que a(o) profissional não deve assumir uma postura de  pena ou lamentação diante das mulheres, pois tal postura pode cristalizá-las no papel  de vítima, dificultando a construção de estratégias coletivas para a saída das relações  de violência.  

Como já mencionado, as mulheres em situação de violência possuem diferenças que podem levar a expressões distintas das violações de direitos, isto é, apesar de a violência atravessar a vida de todas as mulheres, não as atravessam da  mesma maneira. Por isso, é importante que o acolhimento seja feito tendo como base  as particularidades que as diferenciam. Isso implica uma escuta heterogênea que entenda que, a depender das particularidades das mulheres, elas podem ter sua situação mais ou menos acentuada. Por exemplo, mulheres que sofrem violência na  zona rural podem ter mais dificuldades de acessar dispositivos ou uma rede que as  assista do que mulheres que habitam a zona urbana, da mesma forma que mulheres  que moram na zona urbana, mas em regiões periféricas, podem ter mais dificuldades  de chegar aos serviços de atendimento em decorrência da má oferta de transportes  públicos, poucos serviços públicos no território, dentre outras coisas, do que mulheres que moram em zonas mais centrais ou em locais com mais serviços públicos ou  melhor oferta de transportes. Logo, o atendimento não deve ser feito de maneira padronizada, mas reconhecendo as particularidades que podem estar vulnerabilizando ainda mais as mulheres.  

Mesmo sendo um pressuposto ao longo do processo de acolhimento, é  importante reforçar que essa ferramenta deve ser direcionada com base nos preceitos  éticos da prática profissional da(o) Psicóloga(o), em que o sigilo é estruturante da  relação e do vínculo. O espaço de cuidado oferecido às mulheres, seja nas políticas públicas ou na clínica, não deve ser envolto de ameaças ou dúvidas, isto é, a(o) profissional deve construir junto à atendida um lugar de escuta em que ela saiba que os relatos trazidos permanecerão seguros e que todo o processo de construção de  estratégias para a superação da violência contará com o protagonismo das mulheres.

2.2) Informar

Como já dito anteriormente, há diferentes formas de violência que podem  atravessar a vida das mulheres em diferentes contextos. Sabendo disso, é fundamental desconstruir ao longo do atendimento o ideário de que a violência ocorre  somente quando há uma agressão física[5], já que, para além desta, a violência pode construir um aparato de ideias que, por vezes, não corresponde à realidade. Os(As) autores(as) de violência podem se utilizar de afirmativas equivocadas ou incorretas  sobre os marcos legais, como perda da guarda dos(as) filhos(as) ou dos direitos sobre um imóvel em caso de denúncia, a fim de manter as mulheres nas relações abusivas.

É importante ressaltar que as violências articuladas geram nas mulheres  confusão a respeito da sua percepção sobre o mundo e sobre si mesmas. Quando em situação de violência, elas são questionadas recorrentemente sobre as suas  opiniões e atitudes, gerando sentimentos de constrangimento, dúvida, insegurança, incapacidade, medo e dependência do(a) autor(a) de violência. Além disso, atitudes  como recusa da comunicação direta, desqualificação, manejo do sarcasmo, da ironia  e do menosprezo e a deformação da linguagem por meio de mensagens difusas ou  imprecisas são alguns dos recursos utilizados nas relações de violência que podem  confundir as mulheres, dificultando o reconhecimento das violências (Hirigoyen, 2006  apud Machado, 2017).  

Por isso, é imprescindível que as(os) profissionais estejam atentas(os) aos  relatos das mulheres para que as variadas expressões da violência não sejam confundidas com discussões ocasionais e/ou manifestações de cuidado e afeto. Levando em consideração que o atendimento a mulheres em situação de violência é uma prática interdisciplinar, é fundamental ainda que as(os) profissionais se informem e venham a conhecer os direitos estabelecidos nas legislações e nas produções teóricas acerca desse tema, a fim de auxiliá-las na construção de estratégias, já que  informar também faz parte do processo de atendimento, seja nas políticas sociais, seja no contexto clínico (Fiorini, 2004).  

As(Os) profissionais, tanto nos serviços públicos como na clínica, por vezes  serão as únicas fontes de informação das mulheres; logo, é primordial que a(o)  Psicóloga(o) possa, a partir de uma relação de confiança, sigilo e informação segura, construir junto a elas as possibilidades para uma denúncia ou ainda para a saída da  relação violenta. Muitas mulheres podem permanecer nas relações de violência em decorrência do desconhecimento sobre os direitos que possuem, sobre os serviços que podem auxiliá-las e/ou por compreenderem tais violências como naturais e constituintes das relações.

2.3) Encaminhar

A realidade da violência contra as mulheres no Brasil mostra que trabalhos  setorizados ou restritos a um(a) única(o) profissional são insuficientes para dar conta  da complexidade desse fenômeno. O Brasil ocupa atualmente o 5º lugar na posição  dos países com mais casos de feminicídios no mundo, conforme dados divulgados  pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Apesar de ser considerado um dos  países de destaque no que se refere às leis de proteção às mulheres, o alto índice de  violência e o aumento de cerca de 22% do feminicídio no período de isolamento  social, em razão da pandemia da Covid-19, revelaram que por si só a lei não é  suficiente para transformar a realidade social. O seu enfrentamento depende da  articulação efetiva entre as políticas sociais e de ações que promovam mecanismos  eficientes de combate à violência como, por exemplo, programas de acolhida e orientação às mulheres, acesso à justiça e medidas de segurança pública, constituindo políticas de prevenção, conscientização e coibição das violências.  

Muitas mulheres, ao denunciarem as situações vivenciadas, poderão  necessitar de outros serviços para a continuidade e integralidade dos atendimentos,  já que as situações de violência são complexas e lhes atravessam em todas as áreas da vida e, por isso, por vezes necessitam de uma atuação ampliada. Assim, é  fundamental que as(os) profissionais conheçam as políticas e serviços disponíveis no território. Os serviços das políticas sociais devem estar em constante articulação, com o objetivo de ampliar e melhorar a qualidade do atendimento às mulheres em situação  de violência. Assim, o atendimento apresenta um caráter integral e multidimensional, passando por diversas áreas, tais como saúde, segurança, assistência social, jurídica,  etc.  

A rede é compreendida como “porta de entrada”, que de forma articulada atuará na assistência integral e, assim, evitará a revitimização das mulheres em  situação de violência. Desta forma, a(o) Psicóloga(o) deve conhecer as políticas sociais disponíveis em seu território para realizar o devido encaminhamento. Destacam-se a seguir alguns serviços que poderão ser acionados conforme fluxograma abaixo:

Além desses, ainda é possível encaminhar para a Casa da Mulher Brasileira,  Núcleo Maria da Penha (NUMAPE), entre outras iniciativas que visam a ofertar suporte às mulheres. Outras informações podem ser obtidas por meio da Central de  Atendimento à Mulher pelo DISQUE 180.  

É relevante que a(o) Psicóloga(o) não se configure como parte do atendimento  pertencente à “Rota Crítica”, que é entendida como o percurso seguido pelas  mulheres em situação de violência, no acionamento de políticas sociais, com idas e vindas em diversos serviços sem resultados para o enfrentamento da violência, gerando desgaste emocional e revitimização. A(O) Psicóloga(o), nesse contexto, deve ter ciência do seu papel de ser, também, denunciante dessa rota crítica, sendo  que, se for necessário, deve encaminhar denúncia ao Ministério Público.  

Cabe lembrar que os encaminhamentos necessários devem ser feitos  respeitando os preceitos éticos já estabelecidos à prática profissional, conforme  disposto na Resolução CFP 010/2005, que aprova o Código de Ética do Psicólogo  (CEPP):

Art. 6º – O psicólogo, no relacionamento com profissionais não psicólogos:

a) Encaminhará a profissionais ou entidades habilitados e qualificados demandas que extrapolem seu campo de atuação;

b) Compartilhará somente informações relevantes para qualificar o serviço prestado, resguardando o caráter confidencial das comunicações, assinalando a responsabilidade, de quem as receber, de preservar o sigilo.

Contudo, um destaque se faz importante: o simples fato de encaminhar não  garante uma prática que contemple a complexidade que circunscreve as relações de  violência. Muitas(os) profissionais, ao encaminharem um caso, fazem-no de maneira  vazia, isto é, transferem as usuárias/atendidas para outras(os) profissionais ou setores como se “passassem à frente” um problema e estivessem assim “livres” dele. Encaminhar significa caminhar junto, andar pari passu profissional, assistida/atendida  e serviço; caso contrário, tanto as mulheres quanto o trabalho correm o risco de serem fragmentados. Portanto, o encaminhamento deve ser feito de maneira responsável,  entendendo que o trabalho não se restringe ao momento em que as mulheres estão em atendimento conosco. Se, porventura, a(o) profissional Psicóloga(o) (especialmente na área clínica) entender que não possui capacitação para o atendimento a mulheres em situação de violência, possui respaldo para encaminhar, conforme disposto na Resolução CFP  010/2005, que aprova o Código de Ética do Psicólogo (CEPP):

Art. 1º – São deveres fundamentais dos psicólogos:

b) Assumir responsabilidades profissionais somente por atividades para as quais esteja capacitado pessoal, teórica e tecnicamente.

k) Sugerir serviços de outros psicólogos, sempre que, por motivos justificáveis, não puderem ser continuados pelo profissional que os  assumiu inicialmente, fornecendo ao seu substituto as informações necessárias à continuidade do trabalho.

Entretanto, antes de fazer o encaminhamento é importante que as(os) profissionais procedam de modo a refletir, por meio da autocrítica, sobre a incapacidade de atender à demanda e a necessidade de encaminhar o caso, para não incorrer no encaminhamento vazio que possa levar à revitimização. O atendimento às mulheres em situação de violência não se constitui tarefa fácil, pois exige das(os) profissionais o reconhecimento das desigualdades de gênero que estruturam a sociedade brasileira. Para além disso, a violência contra as mulheres se apresenta, por vezes, de modo tão naturalizado nas relações que pode levar as(os) próprias(os) Psicólogas(os) a reproduzir preconceitos, desigualdades ou naturalizações, levando à revitimização das mulheres. Por vezes, as mulheres podem responder às violências agindo de forma inflexível, ríspida ou recusando acordos jurídicos com os(as) autores de violência, por exemplo. Muitas vezes isso é lido socialmente como vingança ou reprodução de uma nova violência, não sendo considerado todo o processo de violação de direitos vivenciado até então. Entendendo, portanto, que as consequências da violência podem se expressar de diferentes formas, é fundamental que a(o) Psicóloga(o) tenha como diretriz de sua prática as desigualdades de gênero que geram as violações de direitos, para não colocar as mulheres no lugar de agentes da violência.

3)  O campo das políticas sociais

Construídas por meio de diálogos entre a sociedade civil e o Estado, as  políticas sociais constituem-se em diretrizes que orientam as ações do poder público e da sociedade na busca da garantia dos direitos fundamentais da população. A  transversalidade de gênero (Scott, 1995) neste contexto é recente, uma vez que  diversas políticas sociais, sejam elas especializadas ou não no atendimento às  mulheres, por vezes não partiam/partem da compreensão das desigualdades de  gênero como estruturais para a análise e construção das ações de enfrentamento das  violências.  

A atuação da(o) Psicóloga(o) neste contexto é abrangente, já que a(o)  profissional pode estar inserida(o) em diferentes setores e/ou nos espaços de vigilância e controle social acompanhando a aplicabilidade e condução das políticas com base nas diretrizes estabelecidas pelos níveis de governo federal, estadual e municipal.

3.1) Os atendimentos no contextos das políticas sociais

Várias são as modalidades de atendimento adotadas pelas(os) Psicólogas(os) no campo das políticas sociais. Elas vão desde atendimentos individuais ou com outras(os) profissionais até os atendimentos intersetoriais. Como já mencionado há pouco, os atendimentos nas políticas sociais não devem ser reduzidos à aplicação de técnicas psicoterápicas, mas devem possibilitar a identificação e a construção entre profissionais e usuárias de caminhos que lhes garantam proteção e saúde mental. Por vezes, há um imaginário social de que somente o processo psicoterápico é capaz de promover a compreensão das violências nas relações e consequentemente a autonomia e a sua superação. Essa ideia possui dois equívocos: a primeira repousa sobre o fato de que as práticas da Psicologia foram historicamente construídas sobre os alicerces da clínica, o que leva muitas vezes à superestimação desta área e ao ideário de que somente ela caracteriza a identidade profissional da(o) Psicóloga(o). A segunda está no fato de que as(os) Psicólogas(os), por vezes, não compreendem práticas que garantam direitos como potencialmente terapêuticas. O documento “Referências Técnicas para atuação de Psicólogas (os) em Programas de Atenção à Mulher em situação de Violência”, do Conselho Federal de Psicologia (2012), mostra que a prática da garantia de direitos nesses serviços por meio da oferta de escuta e acolhimento, da construção de espaços de compartilhamentos de temores e dúvidas, do acesso a benefícios eventuais, do encaminhamento a centros de geração de renda, dentre outros, constitui-se promotor de saúde mental e possibilitador da construção de novas perspectivas às mulheres. Ou seja, os serviços do território e demais espaços na comunidade também podem ser terapêuticos desde que as(os) profissionais se articulem e elaborem estratégias que evitem a “rota crítica” das mulheres.

Portanto, a elaboração de grupos temáticos, visitas domiciliares, buscas ativas e contatos telefônicos são algumas das estratégias que podem possibilitar o fortalecimento das mulheres a longo prazo. Cabe ressaltar que as situações de violência geram, por vezes, temores e desconfianças nas mulheres sobre a sua  confiabilidade nas(os) profissionais das políticas sociais. Por isso, neste campo de  atuação é fundamental a preservação do sigilo, especialmente em municípios de  pequeno porte, onde costumeiramente há contatos entre as(os) profissionais e  usuárias(os) fora dos espaços de trabalho. As histórias das mulheres e as estratégias construídas com elas devem permanecer em sigilo, fazendo-se necessário inclusive a tomada de responsabilidade por todas(os) as(os) profissionais da equipe.

3.2) Trabalho em rede

Quando falamos em rede, partirmos da compreensão trazida por Carvalho (2003, s/p) que a compreende como “[…] uma teia de vínculos, relações e ações entre indivíduos e organizações, que se tecem ou se dissolvem continuamente em todos os campos da vida cotidiana […]”. Logo, podemos entender que rede não implica apenas equipamentos públicos governamentais e não governamentais, mas no conjunto de instituições e grupos sociais que podem cooperar para o exercício da vida em comunidade. Pensando nisso, as redes de atenção e proteção não são rígidas e restritas ao atendimento especializado às mulheres, mas podem ser definidas a partir do território e das formas de cuidado disponíveis ali e também a partir das relações de afeto construídas pelas próprias mulheres. 

Apesar de não entendermos rede somente como o conjunto de serviços públicos e/ou especializados, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres (Brasil, 2011) nos apresenta – com base na Lei Maria da Penha – as perspectivas da rede de enfrentamento e atendimento às mulheres. Mesmo possuindo uma separação teórica, na vida prática essas redes se apresentam imbricadas no trabalho de prevenção e coibição das violências. 

Chamamos de rede de enfrentamento os serviços especializados e não especializados de atendimento às mulheres e também agentes governamentais e não governamentais formuladores, fiscalizadores e executores de políticas voltadas para as mulheres, como, por exemplo, Organismos de Políticas para as Mulheres (coordenadorias e secretarias), ONGs feministas, Conselhos dos Direitos das Mulheres, movimentos sociais, etc. Já a rede de atendimento reúne ações e serviços que buscam melhorar e ampliar a assistência às mulheres por meio de diferentes áreas, como assistência social, saúde, segurança pública e justiça. É composta por serviços especializados, como os Centros de Atendimento à Mulher em situação de violência, Casas Abrigo, Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher e serviços não especializados, como os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) e Unidades Básicas de Saúde (UBS). Portanto, podemos dizer que a rede de enfrentamento é mais abrangente, pois contempla a rede de atendimento e demais estratégias políticas que possam fazer frente às violências. 

A partir disto, é importante que nós, Psicólogas(os) dentro das políticas sociais, juntamente com profissionais de outras áreas, tenhamos uma perspectiva de rede que pressuponha a interdependência entre diferentes serviços, agentes, órgãos e coletivos, pois a existência dessas instituições, sem a devida integração, pode se configurar somente em somatórias de intervenções, incapazes de sistematizar ações integrais e efetivas no enfrentamento das violências (Schraiber, 2012). 

O trabalho nas redes deve ser orientado pela perspectiva da intersetorialidade e pela interdisciplinaridade. Isso significa que, quando trabalhamos com outras(os) profissionais e setores nas políticas sociais, não dividimos as demandas das mulheres como se essas pudessem ser fragmentadas no processo de atendimento. Um olhar interdisciplinar e intersetorial parte da compreensão de que apenas uma profissão/área de conhecimento ou serviço é incapaz de enxergar o fenômeno da violência em sua totalidade, justamente por entendê-lo como complexo, isto é, como um emaranhado de fatores que sustentam as relações de violência. 

Sabemos que na vida prática são vários os entraves que se colocam para o exercício de um atendimento interdisciplinar e intersetorial às mulheres (sobrecarga das(os) trabalhadoras(es), desinvestimentos do poder público, rotatividade da equipe, baixos salários, etc.), porém entendemos que trabalhar desse modo não se constitui tarefa fácil, mas algo que se faz ao caminhar. 

Atualmente, no Brasil, apenas 2,4% dos municípios possuem casas abrigos e 4,5% possuem Varas especializadas. Este é apenas um exemplo para mostrar que em aproximadamente 90% das cidades brasileiras a rede de atendimento e enfrentamento é a rede primária e que são as(os) trabalhadoras(es) da Política de Assistência Social, da Educação, do Sistema Único de Saúde, dentre outras políticas, que farão os primeiros atendimentos e os acompanhamentos. Logo, reafirma-se a convicção de que a efetividade do trabalho desenvolvido em situação de violência contra as mulheres não está especificamente em um(a) única(o) profissional, ou mesmo em um único serviço, sendo assim imprescindível a intersecção de diversas áreas do saber e de vários setores. 

Cabe ressaltar que somente a existência de políticas especializadas no atendimento às mulheres não garante a segurança, um atendimento que contemple suas necessidades e não as revitimize. Os serviços especializados são de extrema  importância, mas não devem ser lidos por nós – trabalhadoras(es) de outras políticas  sociais – como o fim das nossas responsabilidades dentro da rede, já que muitas  mulheres não possuem acesso aos setores especializados, mas somente àqueles  presentes no território. Logo, mesmo sendo um município referência para o  atendimento às mulheres, não podemos resumir essa assistência apenas a um grupo  de serviços, já que muitas mulheres irão somente aos equipamentos dispostos em  seu território, sendo responsabilidade de todas(os) (profissionais e serviços) o  atendimento que garanta direitos e construa caminhos para a superação das  situações de violências.  

Diante das dificuldades encontradas por muitas(os) profissionais na rede de  atendimento, é comum que as(os) Psicólogas(os) recorram ao uso de práticas  psicoterapêuticas em algumas políticas sociais que restringem esse tipo de atuação  (Política de Assistência Social, por exemplo). Em casos como esses orienta-se, mais  uma vez, que a(o) profissional busque se articular como as(os) demais autoras(es)  da rede de atendimento e enfrentamento a fim de construir coletivamente estratégias que atendam às demandas das mulheres. A construção de um atendimento intersetorial e interdisciplinar nas políticas sociais não é fato dado e exige insistência  por parte daquelas(es) que se propõem a edificá-lo. Assim, para a realização de um  trabalho integral, torna-se imprescindível que seja reconhecido o caráter específico e articulado deste trabalho sendo que, em alguns momentos, será necessário que a(o)  Psicóloga(o) dirija a articulação com outros serviços, o que implica a busca de  informações sobre sua existência e também a compreensão do modo como o trabalho é realizado por eles.  

Reuniões entre todos os serviços da rede ou encontros pontuais com os  setores e profissionais que se deseja articular, bem como estudos de caso ou construção intersetorial do Plano Individual de Atendimento (PIA) podem ser potentes estratégias na construção coletiva de ações de prevenção e enfrentamento das  violências. Ademais, orienta-se ainda que as(os) Psicólogas(os) fiquem atentas(os) à  Lei Orgânica do Município a que se referem as políticas para as mulheres, já que há  municípios que especificam em suas leis as políticas a serem implantadas e sob  responsabilidade de quais serviços para o direcionamento das ações frente às  violências.

4) O campo da Psicologia Clínica

No atendimento às mulheres em situação de violência no contexto clínico, a(o)  Psicóloga(o) deve cumprir rigorosamente os princípios éticos profissionais, apoiando se no Código de Ética, resoluções e notas técnicas, contribuindo, assim, por meio dos  seus conhecimentos teóricos, para a defesa dos direitos das mulheres em situação  de violência.  

No que se refere à escuta das queixas de violências, orienta-se a não  negligenciar e/ou naturalizar os sofrimentos relatados durante o processo psicoterapêutico, atentando-se para os fatos de que homens e mulheres são atingidas(os) pela violência de maneira diferenciada; às consequências psíquicas,  sociais e econômicas que atingem as mulheres em situação de violência; e que a violência contra as mulheres remete a um fenômeno multifacetado, com raízes  histórico-culturais, permeado por questões étnico-raciais, de classe, de geração,  dentre outros marcadores.  

Neste sentido, deve-se garantir que o setting terapêutico não seja um espaço  de escuta punitiva, inquisitória e/ou moralista, atentando-se para os limites das mulheres atendidas, além de não agir de forma a influenciá-las a tomar quaisquer decisões que não foram construídas ao longo do processo psicoterapêutico. Junto a  isso, a(o) profissional da Psicologia não deve induzir suas crenças pessoais, como  aponta o Código de Ética do Psicólogo em seu artigo 2º, a saber:

Art. 2º – À(o) psicóloga(o) é vedado: 

b) Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais;

Assim, é vedado à(ao) Psicóloga(o) realizar qualquer tipo de julgamento acerca  das situações vivenciadas pelas mulheres e/ou induzi-las a permanecer ou não na relação, sendo importante a construção das decisões nas quais essas mulheres  sejam as protagonistas. É dever da Psicologia ofertar uma escuta qualificada, de forma a garantir que durante o atendimento clínico as situações relatadas vinculadas  às violências que sofreram ou sofrem sejam abordadas com vistas à elaboração dos conteúdos, não de forma que as mulheres apenas revivam desnecessariamente tais  situações. Além disso, é fundamental o respeito à identidade de gênero e orientação sexual das mulheres, sem atribuir causalidade das violências sofridas a essas  características.

Ao verificar a necessidade de quebra de sigilo em decorrência de notificações  de violência, a(o) Psicólogo(a) deve considerar seus impactos no processo de escuta,  bem como as consequências da decisão no contexto dessas atendidas. Embora o sigilo profissional seja princípio fundamental na atuação em Psicologia, descrito no  Código de Ética do Psicólogo em seu artigo 9º, a(o) Psicóloga(o) poderá decidir pela  sua quebra, baseando sua decisão na busca do menor prejuízo, como aponta o artigo 10 deste mesmo Código. Orientar, encaminhar e acompanhar as mulheres em  situação de violência a serviços da rede de saúde e outros pode ser um dos caminhos a fim de que as atendidas tenham acesso à proteção integral. Centros de Atenção  Psicossocial (CAPS), Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Centro de  Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Delegacias da Mulher e  Ministério Público são alguns dos serviços que podem ser contatados quando  avaliada a necessidade por parte das(os) profissionais. Orienta-se que a(o)  profissional deve realizar o acompanhamento das mulheres em situação de violência a esses serviços quanto avaliada a necessidade e a funcionalidade do ato. Sobre os  serviços de atendimento verifique os itens de 4.1 a 4.9[6].  

Cabe destacar que, no Estado do Paraná, a maior parte dos municípios não possui rede especializada para o atendimento às mulheres em situação de violência. Portanto, para possíveis encaminhamentos à rede, seguem abaixo alguns serviços  públicos que podem atender e orientar as mulheres.

4.1) Unidade Básica de Saúde (UBS)

Sendo a violência doméstica considerada uma questão de saúde pública, de  acordo com a OMS, as UBS são importantes dispositivos de apoio para o cuidado e amenização dos agravos da violência. Sendo um serviço que visa a atender as necessidades do território, as mulheres devem ser encaminhadas às UBS de  referência a fim de serem acompanhadas de maneira contínua e integral.

4.3. Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS)

Os CREAS têm o objetivo de ofertar atendimento a pessoas que estejam em situação de risco ou com seus direitos violados. Caso não haja rede especializada de atendimento às mulheres em situação de violência no município, esse serviço constitui-se porta de entrada para o atendimento às mulheres. Para os municípios que não possuem CREAS, as mulheres podem ser encaminhadas ao Centro de  Referência de Assistência Social (CRAS), que fará os devidos encaminhamentos e  acompanhamentos.

4.4)Centro de Referência de Atendimento à Mulher (CRAM) 
Para os municípios que possuem rede especializada, o CRAM é um dos  principais serviços de atendimento às mulheres em situação de violência. Sendo o serviço porta de entrada para essa demanda, ele oferta acompanhamento psicológico e psicossocial, além de orientação e encaminhamentos jurídicos para mulheres em  situação de violência.
4.5) Casa da Mulher Brasileira  

Constituindo-se um serviço de referência para o atendimento às mulheres, a  Casa da Mulher Brasileira integra no mesmo espaço distintos serviços especializados, tais como: escuta e acolhimento psicossocial, delegacia, Juizado Especializado de  Violência Doméstica e Familiar, Ministério Público, Defensoria Pública, Serviço de  Promoção de Autonomia Econômica, espaço de cuidado às crianças – brinquedoteca  e Alojamento de Passagem.

4.6) Delegacia da Mulher (DEAM)

Trata-se de unidades especializadas da Polícia Civil que realizam ações de  proteção e investigação dos crimes de violência contra as mulheres. Dentre suas  ações estão: registro de Boletim de Ocorrência, solicitação ao(a) juiz(a) das medidas  protetivas de urgência nos casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres  e investigação dos crimes. Na ausência da DEAM no município, os registros de  Boletim de Ocorrência devem ser feitos nas delegacias comuns.

4.7) Defensoria Pública

As defensorias públicas visam a garantir orientação e assistência jurídica  integral e gratuita. Mesmo não sendo um serviço especializado em violência contra as mulheres, ele pode ofertar atendimento e defesa dos direitos caso seja necessário. Para o atendimento é necessário que as mulheres estejam dentro dos critérios[7] estabelecidos pelas defensorias públicas do Estado do Paraná.

4.8) Núcleos Maria da Penha (NUMAPE)  

Presente em 10 (dez) municípios[8] do Paraná, os NUMAPEs são projetos de  extensão interdisciplinares que visam ao atendimento e ao acompanhamento  psicossocial e jurídico das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Assim como nas defensorias públicas, é necessário que as mulheres estejam dentro dos critérios[9] de atendimento estabelecidos pelas normativas do projeto para serem assistidas.

4.9) Patrulha Maria da Penha

Composta por uma equipe especializada da Guarda Municipal, a Patrulha  Maria da Penha tem como objetivo oferecer acompanhamento preventivo periódico  por meio de visitas e garantir a proteção das mulheres que possuem medidas  protetivas de urgência.

5)Orientações gerais quanto à notificação  

No que se refere à denúncia dos casos que envolvam a violência contra as  mulheres, destaca-se a recente promulgação da Lei nº 13.931, de 10 de dezembro  de 2019, que torna obrigatória em território nacional a comunicação à autoridade  policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas dos casos em que houver indícios ou  confirmação de violência contra as mulheres atendidas em serviços de saúde públicos  e privados, ou seja, unidades de saúde, pronto-atendimentos, consultórios, entre  outros. Essa nova lei altera a Lei nº 10.778/2003, que determinava a notificação  compulsória às autoridades sanitárias nos casos de violência contra as mulheres,  sendo então modificado este cenário impondo que, além das autoridades sanitárias, também deverá ser comunicado à autoridade policial, nos seguintes termos:

Art. 1º – Constituem objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional, os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados. […]

§ 4º – Os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher referidos no caput deste artigo serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos.

É relevante destacar que a notificação compulsória não se confunde com  denúncia criminal, pois a ideia de que se trata da mesma ação causa impactos  bastante negativos no enfrentamento da violência contra as mulheres, devido à  subnotificação dos casos.  

O termo “notificação compulsória” guarda sentido técnico na Política de Saúde,  tendo por finalidade o fornecimento de dados para subsidiar a vigilância  epidemiológica e proporcionar um conjunto de ações para o conhecimento, a  detecção ou a prevenção de qualquer mudança nos fatores de saúde individual  ou coletiva, e, assim, recomendar e adotar medidas de controle de doenças ou  agravos. Ou seja, está dentro dos limites da Saúde e tem caráter eminentemente de  política preventiva, não se configurando denúncia.  

É relevante observar que a violência doméstica é entendida como uma questão  de saúde pública. Devem ser semanalmente comunicados às autoridades de saúde  os casos de violências domésticas para fins estatísticos, como dispõe a Portaria nº  204/2016 do Ministério da Saúde, que apresenta a Lista Nacional de Notificação  Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços públicos  e privados em todo o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras  providências. Tal notificação deve ser realizada ao Sistema de Informação de  Agravos de Notificação-SINAN, e será utilizada com a finalidade única de obter  dados epidemiológicos, a fim de mapear os agravos para construção de políticas  públicas mais eficazes.

A ficha de notificação está disponível em todos os serviços de saúde pública  e, no caso de atendimento particular, pode ser obtida por meio do site do Ministério  da Saúde (http://portalms.saude.gov.br/vigilancia-em-saude/lista-nacional-de-notificacao-compulsoria) e ser encaminhada para a vigilância epidemiológica de seu município. Devem ser notificadas todas as violências cometidas contra as mulheres:  psicológica, física, sexual, moral e patrimonial.  

Destaca-se que a Notificação ao sistema de saúde não caracteriza denúncia  (comunicação externa), por não acionar serviços externos ao de saúde, como a  Polícia, a Justiça e o Ministério Público.  

A Lei nº 13.931/2019, ao exigir a comunicação externa no prazo de 24 horas, pressiona as(os) profissionais Psicólogas(os) a tomarem ação diante dos casos de  violência contra as mulheres, o que muitas vezes consideram inoportuno por conhecerem as especificidades envolvidas no caso.  

É certo que a complexidade que a violência contra as mulheres envolve não  será acolhida em sua completude pelos sistemas policial e de justiça, uma vez que, via de regra, estes por si só não correspondem às expectativas de proteção às mulheres em situação de violência e nem mesmo quanto à repressão, muito menos  a plena conscientização do autor da agressão quanto à responsabilidade pelo ato.  Centralizar no sistema de segurança a ideia de que as mulheres estarão protegidas  ao denunciar reduz o fenômeno da violência contra as mulheres à ordem estritamente  policialesca e punitivista, o que contribui para afastar ainda mais a premissa de que a  violência contra as mulheres encontra raízes estruturais nas desigualdades de  gênero, raça e etnia. Em síntese, receia-se que com a promulgação da nova lei haja  uma valorização tão somente da ação policial, desfocando a necessária ação da rede de proteção às mulheres em situação de violência em um trabalho de prevenção que  envolva toda a sociedade.  

A obrigatoriedade da comunicação externa impacta diretamente na relação  da(o) Psicóloga(o) com a usuária do serviço, uma vez que a(o) profissional não pode, nesses casos, resguardar o sigilo profissional exigido pelo Código de Ética, aprovado pela Resolução CFP 010/2005:

Art. 9º – É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das
pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional.

Art. 10 – Nas situações em que se configure conflito entre as exigências decorrentes do disposto no Art. 9º e as afirmações dos princípios fundamentais deste Código, excetuando-se os casos previstos em lei, o psicólogo poderá decidir pela quebra de sigilo, baseando sua decisão na busca do menor prejuízo.

Embora o sigilo profissional não seja absoluto e a sua quebra seja prevista e  legítima nos casos necessários, compete exclusivamente à(ao) Psicóloga(o) a  decisão pela manutenção ou quebra do sigilo visando ao menor prejuízo.  

É relevante destacar que o Brasil é signatário da Convenção sobre a  Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e da  Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a  Mulher (Convenção de Belém do Pará), amparadas no princípio de atenção integral  às mulheres, e que impõem ao Estado uma série de obrigações relativas à adoção  de medidas multidisciplinares, inclusive no que diz respeito à esfera dos cuidados  médicos, proporcionado acesso a programas que visam à prevenção da violência  contra as mulheres.  

Em suma, para além de se tratar de casos de segurança e de saúde pública,  a violência contra as mulheres é considerada uma violação de direitos humanos e qualquer proposta, norma, diretriz ou determinação que atente contra os direitos humanos ou implique a obrigatoriedade da quebra do sigilo profissional pode ser  considerada contrária a este direito pétreo.  

Desta forma, apresentam-se legislações que fortalecem a decisão pela  manutenção do sigilo e afastam a obrigatoriedade da notificação policial:

– O artigo 4º da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), ao dispor que, na sua  interpretação, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e,  especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência  doméstica e familiar;

– Qualquer proposta, norma, diretriz ou determinação que implique risco à manutenção do silêncio da mulher e à perpetuação da violência e aos agravos  em saúde dela decorrentes pode ser considerada contrária à Convenção sobre  a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW)  e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência  contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), das quais o Brasil é signatário;  

– Priorizar a responsabilização criminal do autor de violência em momento oportuno primando, no que tange à violência doméstica e familiar, pela  segurança e integridade das mulheres em situação de violência, sob pena de  ferir os Direitos Humanos;  

– A Constituição de 1988, em seu artigo 5º, inciso I, obriga que medidas eliminem as desigualdades existentes entre homens e mulheres – em atenção ao  princípio da isonomia. 

– A Lei nº 13.431/2017, conhecida como “Lei da Escuta Protegida”, garante direitos específicos à criança ou adolescente vítima ou testemunha de  violência, e expressamente define violência psicológica como a exposição à  violência doméstica;  

– Infração ao inciso IV do artigo 404 do CPC, no que se refere ao sigilo  profissional.

Dito isso, orienta-se que a comunicação externa deve ser feita em  situações em que a vida da mulher corra sério risco ou ainda a de seus filhos  ou de pessoas próximas. Nos demais casos, a(o) Psicóloga(o) deve realizar um  trabalho de fortalecimento das atendidas, buscando oferecer, por meio de um trabalho  conjunto, ferramentas que possibilitem seu protagonismo, a fim de que elas tomem  as medidas para denunciar as violências (CREPOP, 2013).  

O papel da(o) Psicóloga(o) deve se concentrar, assim, no acolhimento, orientação e fortalecimento da autonomia dessas mulheres e somente em situações  de extrema vulnerabilidade e risco de vida fazer a comunicação externa (denúncia) nos órgãos da rede de proteção às mulheres, como a Delegacia da Mulher, Delegacia  de Polícia, Ministério Público ou Poder Judiciário. No caso de algum órgão da rede  recusar-se a receber a comunicação externa, o fato deve ser comunicado ao Ministério Público Estadual (Constituição Federal, art. 129, inciso VII e Lei nº  11.340/2006, artigo 26, inciso II). Caso o Ministério Público se recuse a receber a  comunicação, o fato poderá ser levado ao conhecimento da Corregedoria deste  órgão.  

Destaca-se que nos casos em que a violência envolve crianças, adolescentes e idosas a Comunicação Externa (denúncia) deve ser realizada também em  consonância com outras leis, como Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº  8.069/90) e Estatuto do Idoso (Lei nº 10.471/2006). 

A(O) Psicóloga(o), em sua autonomia profissional, deve avaliar criticamente o caso, buscando observar os riscos iminentes à vida da mulher e de seus filhos, para  uma ação. Se, por um lado, esta autonomia constitui liberdade à(ao) profissional, por outro exige a responsabilização pelo serviço oferecido. De todo modo, a(o)  Psicóloga(o) deve pautar seu trabalho na promoção dos Direitos Humanos, saúde e  qualidade de vida, conforme apregoam os Princípios Fundamentais do Código de  Ética.  

Diante de casos de sério risco de feminicídio, uma Nota Técnica do CFP reassegura a prerrogativa da quebra de sigilo profissional e realização de  comunicação externa, bem como o acesso da(o) profissional aos serviços disponíveis na rede a fim de oferecer suporte às mulheres, tendo como propósito preservar e  proteger sua vida. Nas demais situações de violência contra as mulheres, poderá ser  mantido o sigilo profissional, realizando-se somente a notificação compulsória, de  caráter interno ao sistema de saúde (SINAN) e obrigatória em todo o país.

6) Considerações finais

A violência contra as mulheres é recorrente em nossos contextos de trabalho.  Seja na clínica ou nas políticas sociais, a realidade das desigualdades de gênero que  geram as violências se impõe, exigindo de nós responsabilização e posicionamento.  Entretanto, para isso não basta reconhecer que as violências atravessam a vida das  mulheres de distintas formas, é necessário saber como as atravessam e como  construir práticas que não as revitimizem. A práxis em casos de violência doméstica  se dá por meio do conhecimento de bases teóricas e técnicas e não pode ser feita de  maneira imprudente, caso contrário as mulheres em situação de violência serão  colocadas por nós, Psicólogas(os), em um lugar de inércia ou de “vítimas”, como costumeiramente chamamos. A violência é um fenômeno complexo e multifacetado e  por isso exige intervenções que superem uma compreensão familista[10] e que compreendam as mulheres como objeto de intervenção e não como sujeitos que possuem direitos de escolha sobre os caminhos que construirão para a sua trajetória.  

Cabe pontuar que a violência não faz escolhas. Por mais que atravesse as mulheres de maneiras distintas, com base nas interseccionalidades enquanto uma  prática estrutural na realidade brasileira, ela não seleciona somente um grupo. Isso  significa que nós, como Psicólogas, também estamos sujeitas a vivenciar violências  em nossos campos de trabalho. Por vezes, as situações de violências vivenciadas  por nós geram sentimentos similares aos descritos ao longo desta nota: confusão,  dúvida, dificuldade de darmos encaminhamentos tendo em vista os preceitos éticos,  já que, por mais que prezemos pelo respeito e cuidado ao sofrimento das(os)  usuárias/os e atendidos(as), as situações de violência nos colocam paradoxos difíceis  de serem solucionados.

Dessa forma, entendemos que as Psicólogas em situação de violência em  seus contextos de trabalho (ou outros) devem buscar auxílio profissional e orientação  dos órgãos competentes pela sua prática profissional. A possibilidade de  encaminhamento, denúncia e/ou construção de estratégias que lhes garantam  proteção não devem ser lidas como negligência profissional ou despreparo teórico.  As situações de violência, quando vivenciadas por nós, podem dar a falsa percepção  de que não somos capacitadas o suficiente para o exercício da nossa prática e que  nós devemos fazer uma autoavaliação acerca de nossa parcela de responsabilidade  na situação vivenciada – o que se constitui leviano! As violências de gênero que  possam ocorrer em nossos espaços de prática profissional não precisam ser  toleradas por nós, podendo ser necessária a realização de uma denúncia por meio  do registro do Boletim de Ocorrência.  

Finalmente, não devemos ficar neutras(os) diante de situações de violência  que possam ocorrer com nossas colegas Psicólogas, ofertando acolhimento e  construindo junto a elas recursos para a amenização dos agravos derivados da  violação de direitos, além de outras medidas que se fizerem necessárias para que  haja segurança no desenvolvimento de suas práticas.

Notas

[1] O termo é utilizado no plural para dar visibilidade às diversidades raciais, étnicas, geracionais, de orientação  sexual, de deficiência e de inserção social, econômica e regional existentes entre as mulheres.

[2] De acordo com dados do Ligue 180 do ano de 2016, 59,7% das mulheres que denunciaram suas violências  eram negras. O Atlas da Violência (2019) ratifica esse número apresentando que 66% das mulheres assassinadas  no Brasil no ano de 2017 eram negras. 

[3] “O termo ‘em situação de’ é utilizado no lugar de vítima de violência, visto que a condição de vítima pode ser  paralisante e reforça a representação da mulher como passiva e dependente: ‘Quando a mulher é referida como  estando em situação de violência, ela está em condição, ou seja, ela acessa um lugar de passagem, pois é um  sujeito nessa relação. Estar em situação oferece a possibilidade de mudança” (Mirin, apud Brasil, 2011). Da  mesma forma o termo “autor(a) de violência” em vez de “agressor(a)”, tendo em vista que, a partir da compreensão  de que as desigualdades de gênero são estruturantes dos papéis sociais, as práticas de violência dentro das relações  não são características naturais às pessoas. 

[4] Aqui utilizaremos o termo políticas sociais por entender que estas abarcam tanto as políticas governamentais  como as do terceiro setor, sendo, portanto, esse termo mais amplo que “políticas públicas”, que se refere apenas  às iniciativas públicas e estatais. 

[5] Segundo dados do Ligue 180 do ano de 2016, 51% das mulheres relataram sofrer violência física e 31% violência psicológica.

[6] No que se refere aos atendimentos online, observa-se que a Resolução CFP n°11/2018 veda o atendimento de  situações que envolvam violações de direitos, devendo nesse caso a(o) Psicóloga(o) encaminhar as mulheres para  profissionais que possam atendê-las de forma presencial. (https://site.cfp.org.br/wp content/uploads/2018/05/RESOLU%C3%87%C3%83O-N%C2%BA-11-DE-11-DE-MAIO-DE-2018.pdf).

[7] Os critérios são: possuir renda familiar igual ou inferior a três salários mínimos e não possuir bens que ultrapassem a quantia equivalente a 300 salários mínimos nacionais.

[8] Há NUMAPEs nos seguintes municípios: Maringá, Londrina, Ponta Grossa, Irati, Guarapuava, Marechal Cândido Rondon, Francisco Beltrão, Toledo, Jacarezinho e Paranavaí.

[9] Os critérios são: residir na comarca do município onde se localiza o NUMAPE, ter renda de até três salários mínimos, não possuir valor superior a 150 mil em bens e estar em situação de violência doméstica.

[10] O familismo compreende que as intervenções do Estado devem sempre visar à preservação e ao cuidado da família, compreendendo essa a partir de bases que reforçam os papéis de gênero e, consequentemente, as desigualdades que os acompanham.

Referências

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