#Cadernos_Técnicos_do_CRP-PR
CONSIDERANDO a Lei nº 5.766/71, que cria o Conselho Federal e os Conselhos Regionais de Psicologia e dá outras providências;
CONSIDERANDO a Resolução CFP nº 010/2005, que aprova o Código de Ética Profissional do Psicólogo;
CONSIDERANDO a Nota Técnica CRP-PR nº 005-2018, que orienta as(os) Psicólogas(os) sobre a autonomia profissional;
CONSIDERANDO os termos do § 8º do art. 226 da Constituição Federal, que estabelece que o Estado assegurará a criação de mecanismos para coibir a violência no âmbito das relações familiares;
CONSIDERANDO o Decreto n° 1.973/1996, que promulga a Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher, concluída em Belém do Pará, em 9 de junho de 1994;
CONSIDERANDO o Decreto n° 4.377/2002, que promulga a Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher, de 1979;
CONSIDERANDO a Lei nº 11.340/2006 – Lei Maria da Penha;
CONSIDERANDO a Lei nº 10.778/2003, que estabelece a notificação compulsória, no território nacional, do caso de violência contra a mulher que for atendida em serviços de saúde públicos ou privados;
CONSIDERANDO a Lei nº 13.931/2019, que altera a Lei nº 10.778/2003, para dispor sobre a notificação compulsória dos casos de suspeita de violência contra a mulher;
CONSIDERANDO a Portaria nº 204/2016 do Ministério da Saúde, que define a Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços de saúde públicos e privados em todo o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências;
CONSIDERANDO a Portaria de Consolidação nº 4/2017, que apresenta a consolidação das normas sobre os sistemas e os subsistemas do Sistema Único de Saúde;
CONSIDERANDO a Resolução CFP n° 08/2020, que estabelece normas de atuação do exercício profissional em relação à violência de gênero;
CONSIDERANDO a necessidade de orientar a categoria profissional sobre o atendimento a mulheres em situação de violência, bem como sobre denúncia a instância competente.
O Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR) apresenta a seguir informações e diretrizes que possam embasar o exercício profissional nos casos que envolvem violência contra as mulheres.
1) Introdução
O crescente índice de violência contra as mulheres[1], observado nas mais diversas pesquisas, demonstra que este ainda é um fenômeno crônico no cotidiano das mulheres brasileiras. Cabe destacar que as diferentes posições relacionadas à raça/etnia, classe social, orientação sexual, dentre outros fatores, são imprescindíveis para compreender os modos como essas violências atingem diferentemente mulheres negras e branca[2], apontando para a necessidade de visibilizar as problemáticas específicas de cada mulher, pautando os atendimentos em Psicologia na perspectiva da interseccionalidade entre gênero, raça/etnia, classe, orientação sexual, dentre outras particularidades.
Entende-se por violência contra as mulheres “qualquer ação ou conduta, baseada no gênero, que cause morte, dano ou sofrimento físico, sexual ou psicológico à mulher”, conforme aponta o artigo 1º da Convenção de Belém do Pará, adotada em 9 de junho de 1994. A definição é, portanto, ampla e abarca diferentes formas de violência contra as mulheres, tais como a violência doméstica ou em qualquer outra relação interpessoal, em que o(a) autor(a) de violência conviva ou tenha convivido no mesmo domicílio que a mulher, compreendendo, entre outras, as violências física, psicológica, sexual, moral e patrimonial (Lei nº 11.340/2006); a violência ocorrida na comunidade e que seja perpetrada por qualquer pessoa e que compreende, entre outros, violação, abuso sexual, tortura, tráfico de mulheres, prostituição forçada, sequestro e assédio sexual no local de trabalho, bem como em instituições educacionais, estabelecimentos de saúde ou qualquer outro espaço; e a violência institucional, perpetrada ou tolerada pelo Estado e/ou seus agentes.
Portanto, o conceito de violência contra as mulheres, que tem por base a questão de gênero, remete a um fenômeno multifacetado, com raízes histórico culturais, e é permeado por questões étnico-raciais, de classe, território e de geração. Neste sentido, falar em gênero requer abordar a temática a partir desse contexto histórico, do reconhecimento de que a violência contra as mulheres constitui-se em uma das principais formas de violação dos seus direitos humanos, atingindo-as em seus direitos à vida, à saúde e à integridade física; exige, portanto, uma atuação conjunta para o enfrentamento do problema, que envolva diversos setores, tais como a saúde, a educação, a assistência social, a segurança pública, a cultura, a justiça, entre outros.
Partindo do papel da Psicologia no que tange à violência contra as mulheres, seu compromisso de fundamentar sua atuação em uma dimensão ético-política, cujas práticas devem considerar as relações entre o Estado, a sociedade e a criação de frentes de atuação pautadas nos desafios do contexto social, o presente documento de referência é uma iniciativa no sentido de somar esforços para as discussões da Psicologia brasileira no âmbito dessa importante temática.
Além disso, a obrigatoriedade de notificação compulsória e comunicação à autoridade policial no prazo de 24 horas, para os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra as mulheres atendidas em serviços de saúde públicos ou privados, determinada pela Lei nº 13.931 de 10 de março de 2020, foi outro elemento mobilizador para a construção desta nota técnica. Nesse sentido, este documento, elaborado por um grupo de trabalho formado por Psicólogas do Conselho Regional de Psicologia do Paraná (CRP-PR), pretende orientar a categoria profissional sobre o atendimento às mulheres em situação de violência[3], buscando assim a construção de parâmetros compartilhados que se referem a esses atendimentos nos âmbitos das políticas sociais[4] e da clínica.
O trabalho com mulheres em situação de violência constitui-se um desafio, seja no campo clínico ou nas políticas sociais, tendo em vista as distintas particularidades que podem atravessá-las. As interseccionalidades exigem de nós, categoria profissional, práticas não uniformizadas ou homogêneas, mas que levem em consideração as demandas das mulheres no momento do atendimento, já que cada caso possui especificidades que exigem especial atenção. Pensando nisso, faz-se importante a adoção de algumas ferramentas.
Adotado pelo Sistema Único de Saúde (SUS) enquanto uma das ferramentas da Política Nacional de Humanização (PNH), vemos que o acolhimento não se constitui como uma prática exclusiva das(os) Psicólogas(os). De acordo com a Ferreira (1975), acolher significa dar acolhida, admitir, aceitar, dar ouvidos, dar crédito a, agasalhar, receber, atender, ou seja, o acolhimento se dá por meio de uma postura de aproximação e de inclusão, de “estar com”, “estar perto de”. Portanto, vai além de uma atitude voluntária de bondade ou favor, mas constitui-se como um momento de compartilhamento de saberes e angústias em que a paciente/usuária sente-se “abrigada e agasalhada”. É importante esse momento de conceituação da ferramenta do acolhimento para que ela não seja confundida somente como um processo de levantamento de dados, ou como um local ou espaço, mas com uma postura ética de escuta.
Dito isso, entendemos que o acolhimento das mulheres em situação de violência se expressa por meio de uma escuta técnica qualificada, isto é, por meio de uma escuta livre de julgamentos e porosa às necessidades decorrentes das diversidades das mulheres ao longo do atendimento. Desta forma, é importante que elas possam falar livremente de suas angústias e temores, tendo em vista que as violências vivenciadas, por vezes, não permitem espaços de diálogo, além de instaurar sentimentos de culpa e confusão quando há tentativas de conversa. Estes sentimentos reforçam a permanência nas relações de violência e instauram sobre as mulheres a constante responsabilidade por “consertar” algo em seus vínculos. Por isso, o espaço de fala e expressão do conjunto de ideias e vivências que as atravessam se faz fundamental para a construção em coletivo (usuária/paciente e profissional) de uma postura protagonista sobre suas vidas.
A postura protagonista não se dá de maneira natural ao longo do atendimento, senão por meio do espaço de escuta e fala livre por parte das mulheres. Ao relatarem sobre seu cotidiano, usuária/paciente e profissional podem identificar as demais atividades exercidas pelas mulheres, auxiliando-as a reconhecer a ocupação de espaços que estão para além do lugar de vítima. Quando em situação de violência, as mulheres podem ter a falsa percepção de que são incapazes de exercer suas atividades cotidianas ou que não as fazem de maneira exitosa, já que muitas vezes essa é uma das faces da violência psicológica. Por isso, é importante que a(o) profissional as auxilie, no momento do acolhimento, a reconhecer as atividades exercidas por elas, historicizando as trajetórias de trabalho ou atividades feitas até então. Ressaltamos ainda que a(o) profissional não deve assumir uma postura de pena ou lamentação diante das mulheres, pois tal postura pode cristalizá-las no papel de vítima, dificultando a construção de estratégias coletivas para a saída das relações de violência.
Como já mencionado, as mulheres em situação de violência possuem diferenças que podem levar a expressões distintas das violações de direitos, isto é, apesar de a violência atravessar a vida de todas as mulheres, não as atravessam da mesma maneira. Por isso, é importante que o acolhimento seja feito tendo como base as particularidades que as diferenciam. Isso implica uma escuta heterogênea que entenda que, a depender das particularidades das mulheres, elas podem ter sua situação mais ou menos acentuada. Por exemplo, mulheres que sofrem violência na zona rural podem ter mais dificuldades de acessar dispositivos ou uma rede que as assista do que mulheres que habitam a zona urbana, da mesma forma que mulheres que moram na zona urbana, mas em regiões periféricas, podem ter mais dificuldades de chegar aos serviços de atendimento em decorrência da má oferta de transportes públicos, poucos serviços públicos no território, dentre outras coisas, do que mulheres que moram em zonas mais centrais ou em locais com mais serviços públicos ou melhor oferta de transportes. Logo, o atendimento não deve ser feito de maneira padronizada, mas reconhecendo as particularidades que podem estar vulnerabilizando ainda mais as mulheres.
Mesmo sendo um pressuposto ao longo do processo de acolhimento, é importante reforçar que essa ferramenta deve ser direcionada com base nos preceitos éticos da prática profissional da(o) Psicóloga(o), em que o sigilo é estruturante da relação e do vínculo. O espaço de cuidado oferecido às mulheres, seja nas políticas públicas ou na clínica, não deve ser envolto de ameaças ou dúvidas, isto é, a(o) profissional deve construir junto à atendida um lugar de escuta em que ela saiba que os relatos trazidos permanecerão seguros e que todo o processo de construção de estratégias para a superação da violência contará com o protagonismo das mulheres.
Como já dito anteriormente, há diferentes formas de violência que podem atravessar a vida das mulheres em diferentes contextos. Sabendo disso, é fundamental desconstruir ao longo do atendimento o ideário de que a violência ocorre somente quando há uma agressão física[5], já que, para além desta, a violência pode construir um aparato de ideias que, por vezes, não corresponde à realidade. Os(As) autores(as) de violência podem se utilizar de afirmativas equivocadas ou incorretas sobre os marcos legais, como perda da guarda dos(as) filhos(as) ou dos direitos sobre um imóvel em caso de denúncia, a fim de manter as mulheres nas relações abusivas.
É importante ressaltar que as violências articuladas geram nas mulheres confusão a respeito da sua percepção sobre o mundo e sobre si mesmas. Quando em situação de violência, elas são questionadas recorrentemente sobre as suas opiniões e atitudes, gerando sentimentos de constrangimento, dúvida, insegurança, incapacidade, medo e dependência do(a) autor(a) de violência. Além disso, atitudes como recusa da comunicação direta, desqualificação, manejo do sarcasmo, da ironia e do menosprezo e a deformação da linguagem por meio de mensagens difusas ou imprecisas são alguns dos recursos utilizados nas relações de violência que podem confundir as mulheres, dificultando o reconhecimento das violências (Hirigoyen, 2006 apud Machado, 2017).
Por isso, é imprescindível que as(os) profissionais estejam atentas(os) aos relatos das mulheres para que as variadas expressões da violência não sejam confundidas com discussões ocasionais e/ou manifestações de cuidado e afeto. Levando em consideração que o atendimento a mulheres em situação de violência é uma prática interdisciplinar, é fundamental ainda que as(os) profissionais se informem e venham a conhecer os direitos estabelecidos nas legislações e nas produções teóricas acerca desse tema, a fim de auxiliá-las na construção de estratégias, já que informar também faz parte do processo de atendimento, seja nas políticas sociais, seja no contexto clínico (Fiorini, 2004).
As(Os) profissionais, tanto nos serviços públicos como na clínica, por vezes serão as únicas fontes de informação das mulheres; logo, é primordial que a(o) Psicóloga(o) possa, a partir de uma relação de confiança, sigilo e informação segura, construir junto a elas as possibilidades para uma denúncia ou ainda para a saída da relação violenta. Muitas mulheres podem permanecer nas relações de violência em decorrência do desconhecimento sobre os direitos que possuem, sobre os serviços que podem auxiliá-las e/ou por compreenderem tais violências como naturais e constituintes das relações.
A realidade da violência contra as mulheres no Brasil mostra que trabalhos setorizados ou restritos a um(a) única(o) profissional são insuficientes para dar conta da complexidade desse fenômeno. O Brasil ocupa atualmente o 5º lugar na posição dos países com mais casos de feminicídios no mundo, conforme dados divulgados pela Organização Mundial de Saúde (OMS). Apesar de ser considerado um dos países de destaque no que se refere às leis de proteção às mulheres, o alto índice de violência e o aumento de cerca de 22% do feminicídio no período de isolamento social, em razão da pandemia da Covid-19, revelaram que por si só a lei não é suficiente para transformar a realidade social. O seu enfrentamento depende da articulação efetiva entre as políticas sociais e de ações que promovam mecanismos eficientes de combate à violência como, por exemplo, programas de acolhida e orientação às mulheres, acesso à justiça e medidas de segurança pública, constituindo políticas de prevenção, conscientização e coibição das violências.
Muitas mulheres, ao denunciarem as situações vivenciadas, poderão necessitar de outros serviços para a continuidade e integralidade dos atendimentos, já que as situações de violência são complexas e lhes atravessam em todas as áreas da vida e, por isso, por vezes necessitam de uma atuação ampliada. Assim, é fundamental que as(os) profissionais conheçam as políticas e serviços disponíveis no território. Os serviços das políticas sociais devem estar em constante articulação, com o objetivo de ampliar e melhorar a qualidade do atendimento às mulheres em situação de violência. Assim, o atendimento apresenta um caráter integral e multidimensional, passando por diversas áreas, tais como saúde, segurança, assistência social, jurídica, etc.
A rede é compreendida como “porta de entrada”, que de forma articulada atuará na assistência integral e, assim, evitará a revitimização das mulheres em situação de violência. Desta forma, a(o) Psicóloga(o) deve conhecer as políticas sociais disponíveis em seu território para realizar o devido encaminhamento. Destacam-se a seguir alguns serviços que poderão ser acionados conforme fluxograma abaixo:
Além desses, ainda é possível encaminhar para a Casa da Mulher Brasileira, Núcleo Maria da Penha (NUMAPE), entre outras iniciativas que visam a ofertar suporte às mulheres. Outras informações podem ser obtidas por meio da Central de Atendimento à Mulher pelo DISQUE 180.
É relevante que a(o) Psicóloga(o) não se configure como parte do atendimento pertencente à “Rota Crítica”, que é entendida como o percurso seguido pelas mulheres em situação de violência, no acionamento de políticas sociais, com idas e vindas em diversos serviços sem resultados para o enfrentamento da violência, gerando desgaste emocional e revitimização. A(O) Psicóloga(o), nesse contexto, deve ter ciência do seu papel de ser, também, denunciante dessa rota crítica, sendo que, se for necessário, deve encaminhar denúncia ao Ministério Público.
Cabe lembrar que os encaminhamentos necessários devem ser feitos respeitando os preceitos éticos já estabelecidos à prática profissional, conforme disposto na Resolução CFP 010/2005, que aprova o Código de Ética do Psicólogo (CEPP):
Art. 6º – O psicólogo, no relacionamento com profissionais não psicólogos:
a) Encaminhará a profissionais ou entidades habilitados e qualificados demandas que extrapolem seu campo de atuação;
b) Compartilhará somente informações relevantes para qualificar o serviço prestado, resguardando o caráter confidencial das comunicações, assinalando a responsabilidade, de quem as receber, de preservar o sigilo.
Art. 1º – São deveres fundamentais dos psicólogos:
b) Assumir responsabilidades profissionais somente por atividades para as quais esteja capacitado pessoal, teórica e tecnicamente.
k) Sugerir serviços de outros psicólogos, sempre que, por motivos justificáveis, não puderem ser continuados pelo profissional que os assumiu inicialmente, fornecendo ao seu substituto as informações necessárias à continuidade do trabalho.
Construídas por meio de diálogos entre a sociedade civil e o Estado, as políticas sociais constituem-se em diretrizes que orientam as ações do poder público e da sociedade na busca da garantia dos direitos fundamentais da população. A transversalidade de gênero (Scott, 1995) neste contexto é recente, uma vez que diversas políticas sociais, sejam elas especializadas ou não no atendimento às mulheres, por vezes não partiam/partem da compreensão das desigualdades de gênero como estruturais para a análise e construção das ações de enfrentamento das violências.
A atuação da(o) Psicóloga(o) neste contexto é abrangente, já que a(o) profissional pode estar inserida(o) em diferentes setores e/ou nos espaços de vigilância e controle social acompanhando a aplicabilidade e condução das políticas com base nas diretrizes estabelecidas pelos níveis de governo federal, estadual e municipal.
Várias são as modalidades de atendimento adotadas pelas(os) Psicólogas(os) no campo das políticas sociais. Elas vão desde atendimentos individuais ou com outras(os) profissionais até os atendimentos intersetoriais. Como já mencionado há pouco, os atendimentos nas políticas sociais não devem ser reduzidos à aplicação de técnicas psicoterápicas, mas devem possibilitar a identificação e a construção entre profissionais e usuárias de caminhos que lhes garantam proteção e saúde mental. Por vezes, há um imaginário social de que somente o processo psicoterápico é capaz de promover a compreensão das violências nas relações e consequentemente a autonomia e a sua superação. Essa ideia possui dois equívocos: a primeira repousa sobre o fato de que as práticas da Psicologia foram historicamente construídas sobre os alicerces da clínica, o que leva muitas vezes à superestimação desta área e ao ideário de que somente ela caracteriza a identidade profissional da(o) Psicóloga(o). A segunda está no fato de que as(os) Psicólogas(os), por vezes, não compreendem práticas que garantam direitos como potencialmente terapêuticas. O documento “Referências Técnicas para atuação de Psicólogas (os) em Programas de Atenção à Mulher em situação de Violência”, do Conselho Federal de Psicologia (2012), mostra que a prática da garantia de direitos nesses serviços por meio da oferta de escuta e acolhimento, da construção de espaços de compartilhamentos de temores e dúvidas, do acesso a benefícios eventuais, do encaminhamento a centros de geração de renda, dentre outros, constitui-se promotor de saúde mental e possibilitador da construção de novas perspectivas às mulheres. Ou seja, os serviços do território e demais espaços na comunidade também podem ser terapêuticos desde que as(os) profissionais se articulem e elaborem estratégias que evitem a “rota crítica” das mulheres.
Portanto, a elaboração de grupos temáticos, visitas domiciliares, buscas ativas e contatos telefônicos são algumas das estratégias que podem possibilitar o fortalecimento das mulheres a longo prazo. Cabe ressaltar que as situações de violência geram, por vezes, temores e desconfianças nas mulheres sobre a sua confiabilidade nas(os) profissionais das políticas sociais. Por isso, neste campo de atuação é fundamental a preservação do sigilo, especialmente em municípios de pequeno porte, onde costumeiramente há contatos entre as(os) profissionais e usuárias(os) fora dos espaços de trabalho. As histórias das mulheres e as estratégias construídas com elas devem permanecer em sigilo, fazendo-se necessário inclusive a tomada de responsabilidade por todas(os) as(os) profissionais da equipe.
Quando falamos em rede, partirmos da compreensão trazida por Carvalho (2003, s/p) que a compreende como “[…] uma teia de vínculos, relações e ações entre indivíduos e organizações, que se tecem ou se dissolvem continuamente em todos os campos da vida cotidiana […]”. Logo, podemos entender que rede não implica apenas equipamentos públicos governamentais e não governamentais, mas no conjunto de instituições e grupos sociais que podem cooperar para o exercício da vida em comunidade. Pensando nisso, as redes de atenção e proteção não são rígidas e restritas ao atendimento especializado às mulheres, mas podem ser definidas a partir do território e das formas de cuidado disponíveis ali e também a partir das relações de afeto construídas pelas próprias mulheres.
Apesar de não entendermos rede somente como o conjunto de serviços públicos e/ou especializados, a Política Nacional de Enfrentamento à Violência Contra as Mulheres (Brasil, 2011) nos apresenta – com base na Lei Maria da Penha – as perspectivas da rede de enfrentamento e atendimento às mulheres. Mesmo possuindo uma separação teórica, na vida prática essas redes se apresentam imbricadas no trabalho de prevenção e coibição das violências.
Chamamos de rede de enfrentamento os serviços especializados e não especializados de atendimento às mulheres e também agentes governamentais e não governamentais formuladores, fiscalizadores e executores de políticas voltadas para as mulheres, como, por exemplo, Organismos de Políticas para as Mulheres (coordenadorias e secretarias), ONGs feministas, Conselhos dos Direitos das Mulheres, movimentos sociais, etc. Já a rede de atendimento reúne ações e serviços que buscam melhorar e ampliar a assistência às mulheres por meio de diferentes áreas, como assistência social, saúde, segurança pública e justiça. É composta por serviços especializados, como os Centros de Atendimento à Mulher em situação de violência, Casas Abrigo, Delegacias Especializadas de Atendimento à Mulher e serviços não especializados, como os Centros de Referência de Assistência Social (CRAS), Centros de Referência Especializados de Assistência Social (CREAS) e Unidades Básicas de Saúde (UBS). Portanto, podemos dizer que a rede de enfrentamento é mais abrangente, pois contempla a rede de atendimento e demais estratégias políticas que possam fazer frente às violências.
A partir disto, é importante que nós, Psicólogas(os) dentro das políticas sociais, juntamente com profissionais de outras áreas, tenhamos uma perspectiva de rede que pressuponha a interdependência entre diferentes serviços, agentes, órgãos e coletivos, pois a existência dessas instituições, sem a devida integração, pode se configurar somente em somatórias de intervenções, incapazes de sistematizar ações integrais e efetivas no enfrentamento das violências (Schraiber, 2012).
O trabalho nas redes deve ser orientado pela perspectiva da intersetorialidade e pela interdisciplinaridade. Isso significa que, quando trabalhamos com outras(os) profissionais e setores nas políticas sociais, não dividimos as demandas das mulheres como se essas pudessem ser fragmentadas no processo de atendimento. Um olhar interdisciplinar e intersetorial parte da compreensão de que apenas uma profissão/área de conhecimento ou serviço é incapaz de enxergar o fenômeno da violência em sua totalidade, justamente por entendê-lo como complexo, isto é, como um emaranhado de fatores que sustentam as relações de violência.
Sabemos que na vida prática são vários os entraves que se colocam para o exercício de um atendimento interdisciplinar e intersetorial às mulheres (sobrecarga das(os) trabalhadoras(es), desinvestimentos do poder público, rotatividade da equipe, baixos salários, etc.), porém entendemos que trabalhar desse modo não se constitui tarefa fácil, mas algo que se faz ao caminhar.
Atualmente, no Brasil, apenas 2,4% dos municípios possuem casas abrigos e 4,5% possuem Varas especializadas. Este é apenas um exemplo para mostrar que em aproximadamente 90% das cidades brasileiras a rede de atendimento e enfrentamento é a rede primária e que são as(os) trabalhadoras(es) da Política de Assistência Social, da Educação, do Sistema Único de Saúde, dentre outras políticas, que farão os primeiros atendimentos e os acompanhamentos. Logo, reafirma-se a convicção de que a efetividade do trabalho desenvolvido em situação de violência contra as mulheres não está especificamente em um(a) única(o) profissional, ou mesmo em um único serviço, sendo assim imprescindível a intersecção de diversas áreas do saber e de vários setores.
Cabe ressaltar que somente a existência de políticas especializadas no atendimento às mulheres não garante a segurança, um atendimento que contemple suas necessidades e não as revitimize. Os serviços especializados são de extrema importância, mas não devem ser lidos por nós – trabalhadoras(es) de outras políticas sociais – como o fim das nossas responsabilidades dentro da rede, já que muitas mulheres não possuem acesso aos setores especializados, mas somente àqueles presentes no território. Logo, mesmo sendo um município referência para o atendimento às mulheres, não podemos resumir essa assistência apenas a um grupo de serviços, já que muitas mulheres irão somente aos equipamentos dispostos em seu território, sendo responsabilidade de todas(os) (profissionais e serviços) o atendimento que garanta direitos e construa caminhos para a superação das situações de violências.
Diante das dificuldades encontradas por muitas(os) profissionais na rede de atendimento, é comum que as(os) Psicólogas(os) recorram ao uso de práticas psicoterapêuticas em algumas políticas sociais que restringem esse tipo de atuação (Política de Assistência Social, por exemplo). Em casos como esses orienta-se, mais uma vez, que a(o) profissional busque se articular como as(os) demais autoras(es) da rede de atendimento e enfrentamento a fim de construir coletivamente estratégias que atendam às demandas das mulheres. A construção de um atendimento intersetorial e interdisciplinar nas políticas sociais não é fato dado e exige insistência por parte daquelas(es) que se propõem a edificá-lo. Assim, para a realização de um trabalho integral, torna-se imprescindível que seja reconhecido o caráter específico e articulado deste trabalho sendo que, em alguns momentos, será necessário que a(o) Psicóloga(o) dirija a articulação com outros serviços, o que implica a busca de informações sobre sua existência e também a compreensão do modo como o trabalho é realizado por eles.
Reuniões entre todos os serviços da rede ou encontros pontuais com os setores e profissionais que se deseja articular, bem como estudos de caso ou construção intersetorial do Plano Individual de Atendimento (PIA) podem ser potentes estratégias na construção coletiva de ações de prevenção e enfrentamento das violências. Ademais, orienta-se ainda que as(os) Psicólogas(os) fiquem atentas(os) à Lei Orgânica do Município a que se referem as políticas para as mulheres, já que há municípios que especificam em suas leis as políticas a serem implantadas e sob responsabilidade de quais serviços para o direcionamento das ações frente às violências.
No atendimento às mulheres em situação de violência no contexto clínico, a(o) Psicóloga(o) deve cumprir rigorosamente os princípios éticos profissionais, apoiando se no Código de Ética, resoluções e notas técnicas, contribuindo, assim, por meio dos seus conhecimentos teóricos, para a defesa dos direitos das mulheres em situação de violência.
No que se refere à escuta das queixas de violências, orienta-se a não negligenciar e/ou naturalizar os sofrimentos relatados durante o processo psicoterapêutico, atentando-se para os fatos de que homens e mulheres são atingidas(os) pela violência de maneira diferenciada; às consequências psíquicas, sociais e econômicas que atingem as mulheres em situação de violência; e que a violência contra as mulheres remete a um fenômeno multifacetado, com raízes histórico-culturais, permeado por questões étnico-raciais, de classe, de geração, dentre outros marcadores.
Neste sentido, deve-se garantir que o setting terapêutico não seja um espaço de escuta punitiva, inquisitória e/ou moralista, atentando-se para os limites das mulheres atendidas, além de não agir de forma a influenciá-las a tomar quaisquer decisões que não foram construídas ao longo do processo psicoterapêutico. Junto a isso, a(o) profissional da Psicologia não deve induzir suas crenças pessoais, como aponta o Código de Ética do Psicólogo em seu artigo 2º, a saber:
Art. 2º – À(o) psicóloga(o) é vedado:
b) Induzir a convicções políticas, filosóficas, morais, ideológicas, religiosas, de orientação sexual ou a qualquer tipo de preconceito, quando do exercício de suas funções profissionais;
Assim, é vedado à(ao) Psicóloga(o) realizar qualquer tipo de julgamento acerca das situações vivenciadas pelas mulheres e/ou induzi-las a permanecer ou não na relação, sendo importante a construção das decisões nas quais essas mulheres sejam as protagonistas. É dever da Psicologia ofertar uma escuta qualificada, de forma a garantir que durante o atendimento clínico as situações relatadas vinculadas às violências que sofreram ou sofrem sejam abordadas com vistas à elaboração dos conteúdos, não de forma que as mulheres apenas revivam desnecessariamente tais situações. Além disso, é fundamental o respeito à identidade de gênero e orientação sexual das mulheres, sem atribuir causalidade das violências sofridas a essas características.
Ao verificar a necessidade de quebra de sigilo em decorrência de notificações de violência, a(o) Psicólogo(a) deve considerar seus impactos no processo de escuta, bem como as consequências da decisão no contexto dessas atendidas. Embora o sigilo profissional seja princípio fundamental na atuação em Psicologia, descrito no Código de Ética do Psicólogo em seu artigo 9º, a(o) Psicóloga(o) poderá decidir pela sua quebra, baseando sua decisão na busca do menor prejuízo, como aponta o artigo 10 deste mesmo Código. Orientar, encaminhar e acompanhar as mulheres em situação de violência a serviços da rede de saúde e outros pode ser um dos caminhos a fim de que as atendidas tenham acesso à proteção integral. Centros de Atenção Psicossocial (CAPS), Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), Centro de Referência Especializado de Assistência Social (CREAS), Delegacias da Mulher e Ministério Público são alguns dos serviços que podem ser contatados quando avaliada a necessidade por parte das(os) profissionais. Orienta-se que a(o) profissional deve realizar o acompanhamento das mulheres em situação de violência a esses serviços quanto avaliada a necessidade e a funcionalidade do ato. Sobre os serviços de atendimento verifique os itens de 4.1 a 4.9[6].
Cabe destacar que, no Estado do Paraná, a maior parte dos municípios não possui rede especializada para o atendimento às mulheres em situação de violência. Portanto, para possíveis encaminhamentos à rede, seguem abaixo alguns serviços públicos que podem atender e orientar as mulheres.
Sendo a violência doméstica considerada uma questão de saúde pública, de acordo com a OMS, as UBS são importantes dispositivos de apoio para o cuidado e amenização dos agravos da violência. Sendo um serviço que visa a atender as necessidades do território, as mulheres devem ser encaminhadas às UBS de referência a fim de serem acompanhadas de maneira contínua e integral.
4.3. Centros de Referência Especializada de Assistência Social (CREAS)
Os CREAS têm o objetivo de ofertar atendimento a pessoas que estejam em situação de risco ou com seus direitos violados. Caso não haja rede especializada de atendimento às mulheres em situação de violência no município, esse serviço constitui-se porta de entrada para o atendimento às mulheres. Para os municípios que não possuem CREAS, as mulheres podem ser encaminhadas ao Centro de Referência de Assistência Social (CRAS), que fará os devidos encaminhamentos e acompanhamentos.
Constituindo-se um serviço de referência para o atendimento às mulheres, a Casa da Mulher Brasileira integra no mesmo espaço distintos serviços especializados, tais como: escuta e acolhimento psicossocial, delegacia, Juizado Especializado de Violência Doméstica e Familiar, Ministério Público, Defensoria Pública, Serviço de Promoção de Autonomia Econômica, espaço de cuidado às crianças – brinquedoteca e Alojamento de Passagem.
Trata-se de unidades especializadas da Polícia Civil que realizam ações de proteção e investigação dos crimes de violência contra as mulheres. Dentre suas ações estão: registro de Boletim de Ocorrência, solicitação ao(a) juiz(a) das medidas protetivas de urgência nos casos de violência doméstica e familiar contra as mulheres e investigação dos crimes. Na ausência da DEAM no município, os registros de Boletim de Ocorrência devem ser feitos nas delegacias comuns.
As defensorias públicas visam a garantir orientação e assistência jurídica integral e gratuita. Mesmo não sendo um serviço especializado em violência contra as mulheres, ele pode ofertar atendimento e defesa dos direitos caso seja necessário. Para o atendimento é necessário que as mulheres estejam dentro dos critérios[7] estabelecidos pelas defensorias públicas do Estado do Paraná.
Presente em 10 (dez) municípios[8] do Paraná, os NUMAPEs são projetos de extensão interdisciplinares que visam ao atendimento e ao acompanhamento psicossocial e jurídico das mulheres em situação de violência doméstica e familiar. Assim como nas defensorias públicas, é necessário que as mulheres estejam dentro dos critérios[9] de atendimento estabelecidos pelas normativas do projeto para serem assistidas.
Composta por uma equipe especializada da Guarda Municipal, a Patrulha Maria da Penha tem como objetivo oferecer acompanhamento preventivo periódico por meio de visitas e garantir a proteção das mulheres que possuem medidas protetivas de urgência.
No que se refere à denúncia dos casos que envolvam a violência contra as mulheres, destaca-se a recente promulgação da Lei nº 13.931, de 10 de dezembro de 2019, que torna obrigatória em território nacional a comunicação à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas dos casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra as mulheres atendidas em serviços de saúde públicos e privados, ou seja, unidades de saúde, pronto-atendimentos, consultórios, entre outros. Essa nova lei altera a Lei nº 10.778/2003, que determinava a notificação compulsória às autoridades sanitárias nos casos de violência contra as mulheres, sendo então modificado este cenário impondo que, além das autoridades sanitárias, também deverá ser comunicado à autoridade policial, nos seguintes termos:
Art. 1º – Constituem objeto de notificação compulsória, em todo o território nacional, os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher atendida em serviços de saúde públicos e privados. […]
§ 4º – Os casos em que houver indícios ou confirmação de violência contra a mulher referidos no caput deste artigo serão obrigatoriamente comunicados à autoridade policial no prazo de 24 (vinte e quatro) horas, para as providências cabíveis e para fins estatísticos.
É relevante destacar que a notificação compulsória não se confunde com denúncia criminal, pois a ideia de que se trata da mesma ação causa impactos bastante negativos no enfrentamento da violência contra as mulheres, devido à subnotificação dos casos.
O termo “notificação compulsória” guarda sentido técnico na Política de Saúde, tendo por finalidade o fornecimento de dados para subsidiar a vigilância epidemiológica e proporcionar um conjunto de ações para o conhecimento, a detecção ou a prevenção de qualquer mudança nos fatores de saúde individual ou coletiva, e, assim, recomendar e adotar medidas de controle de doenças ou agravos. Ou seja, está dentro dos limites da Saúde e tem caráter eminentemente de política preventiva, não se configurando denúncia.
É relevante observar que a violência doméstica é entendida como uma questão de saúde pública. Devem ser semanalmente comunicados às autoridades de saúde os casos de violências domésticas para fins estatísticos, como dispõe a Portaria nº 204/2016 do Ministério da Saúde, que apresenta a Lista Nacional de Notificação Compulsória de doenças, agravos e eventos de saúde pública nos serviços públicos e privados em todo o território nacional, nos termos do anexo, e dá outras providências. Tal notificação deve ser realizada ao Sistema de Informação de Agravos de Notificação-SINAN, e será utilizada com a finalidade única de obter dados epidemiológicos, a fim de mapear os agravos para construção de políticas públicas mais eficazes.
A ficha de notificação está disponível em todos os serviços de saúde pública e, no caso de atendimento particular, pode ser obtida por meio do site do Ministério da Saúde (http://portalms.saude.gov.br/vigilancia-em-saude/lista-nacional-de-notificacao-compulsoria) e ser encaminhada para a vigilância epidemiológica de seu município. Devem ser notificadas todas as violências cometidas contra as mulheres: psicológica, física, sexual, moral e patrimonial.
Destaca-se que a Notificação ao sistema de saúde não caracteriza denúncia (comunicação externa), por não acionar serviços externos ao de saúde, como a Polícia, a Justiça e o Ministério Público.
A Lei nº 13.931/2019, ao exigir a comunicação externa no prazo de 24 horas, pressiona as(os) profissionais Psicólogas(os) a tomarem ação diante dos casos de violência contra as mulheres, o que muitas vezes consideram inoportuno por conhecerem as especificidades envolvidas no caso.
É certo que a complexidade que a violência contra as mulheres envolve não será acolhida em sua completude pelos sistemas policial e de justiça, uma vez que, via de regra, estes por si só não correspondem às expectativas de proteção às mulheres em situação de violência e nem mesmo quanto à repressão, muito menos a plena conscientização do autor da agressão quanto à responsabilidade pelo ato. Centralizar no sistema de segurança a ideia de que as mulheres estarão protegidas ao denunciar reduz o fenômeno da violência contra as mulheres à ordem estritamente policialesca e punitivista, o que contribui para afastar ainda mais a premissa de que a violência contra as mulheres encontra raízes estruturais nas desigualdades de gênero, raça e etnia. Em síntese, receia-se que com a promulgação da nova lei haja uma valorização tão somente da ação policial, desfocando a necessária ação da rede de proteção às mulheres em situação de violência em um trabalho de prevenção que envolva toda a sociedade.
A obrigatoriedade da comunicação externa impacta diretamente na relação da(o) Psicóloga(o) com a usuária do serviço, uma vez que a(o) profissional não pode, nesses casos, resguardar o sigilo profissional exigido pelo Código de Ética, aprovado pela Resolução CFP 010/2005:
Art. 9º – É dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio da confidencialidade, a intimidade das
pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional.
Art. 10 – Nas situações em que se configure conflito entre as exigências decorrentes do disposto no Art. 9º e as afirmações dos princípios fundamentais deste Código, excetuando-se os casos previstos em lei, o psicólogo poderá decidir pela quebra de sigilo, baseando sua decisão na busca do menor prejuízo.
Embora o sigilo profissional não seja absoluto e a sua quebra seja prevista e legítima nos casos necessários, compete exclusivamente à(ao) Psicóloga(o) a decisão pela manutenção ou quebra do sigilo visando ao menor prejuízo.
É relevante destacar que o Brasil é signatário da Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), amparadas no princípio de atenção integral às mulheres, e que impõem ao Estado uma série de obrigações relativas à adoção de medidas multidisciplinares, inclusive no que diz respeito à esfera dos cuidados médicos, proporcionado acesso a programas que visam à prevenção da violência contra as mulheres.
Em suma, para além de se tratar de casos de segurança e de saúde pública, a violência contra as mulheres é considerada uma violação de direitos humanos e qualquer proposta, norma, diretriz ou determinação que atente contra os direitos humanos ou implique a obrigatoriedade da quebra do sigilo profissional pode ser considerada contrária a este direito pétreo.
Desta forma, apresentam-se legislações que fortalecem a decisão pela manutenção do sigilo e afastam a obrigatoriedade da notificação policial:
– O artigo 4º da Lei nº 11.340/06 (Lei Maria da Penha), ao dispor que, na sua interpretação, serão considerados os fins sociais a que ela se destina e, especialmente, as condições peculiares das mulheres em situação de violência doméstica e familiar;
– Qualquer proposta, norma, diretriz ou determinação que implique risco à manutenção do silêncio da mulher e à perpetuação da violência e aos agravos em saúde dela decorrentes pode ser considerada contrária à Convenção sobre a Eliminação de Todas as Formas de Discriminação contra a Mulher (CEDAW) e da Convenção Interamericana para Prevenir, Punir e Erradicar a Violência contra a Mulher (Convenção de Belém do Pará), das quais o Brasil é signatário;
– Priorizar a responsabilização criminal do autor de violência em momento oportuno primando, no que tange à violência doméstica e familiar, pela segurança e integridade das mulheres em situação de violência, sob pena de ferir os Direitos Humanos;
– A Constituição de 1988, em seu artigo 5º, inciso I, obriga que medidas eliminem as desigualdades existentes entre homens e mulheres – em atenção ao princípio da isonomia.
– A Lei nº 13.431/2017, conhecida como “Lei da Escuta Protegida”, garante direitos específicos à criança ou adolescente vítima ou testemunha de violência, e expressamente define violência psicológica como a exposição à violência doméstica;
– Infração ao inciso IV do artigo 404 do CPC, no que se refere ao sigilo profissional.
Dito isso, orienta-se que a comunicação externa deve ser feita em situações em que a vida da mulher corra sério risco ou ainda a de seus filhos ou de pessoas próximas. Nos demais casos, a(o) Psicóloga(o) deve realizar um trabalho de fortalecimento das atendidas, buscando oferecer, por meio de um trabalho conjunto, ferramentas que possibilitem seu protagonismo, a fim de que elas tomem as medidas para denunciar as violências (CREPOP, 2013).
O papel da(o) Psicóloga(o) deve se concentrar, assim, no acolhimento, orientação e fortalecimento da autonomia dessas mulheres e somente em situações de extrema vulnerabilidade e risco de vida fazer a comunicação externa (denúncia) nos órgãos da rede de proteção às mulheres, como a Delegacia da Mulher, Delegacia de Polícia, Ministério Público ou Poder Judiciário. No caso de algum órgão da rede recusar-se a receber a comunicação externa, o fato deve ser comunicado ao Ministério Público Estadual (Constituição Federal, art. 129, inciso VII e Lei nº 11.340/2006, artigo 26, inciso II). Caso o Ministério Público se recuse a receber a comunicação, o fato poderá ser levado ao conhecimento da Corregedoria deste órgão.
Destaca-se que nos casos em que a violência envolve crianças, adolescentes e idosas a Comunicação Externa (denúncia) deve ser realizada também em consonância com outras leis, como Estatuto da Criança e do Adolescente (Lei nº 8.069/90) e Estatuto do Idoso (Lei nº 10.471/2006).
A(O) Psicóloga(o), em sua autonomia profissional, deve avaliar criticamente o caso, buscando observar os riscos iminentes à vida da mulher e de seus filhos, para uma ação. Se, por um lado, esta autonomia constitui liberdade à(ao) profissional, por outro exige a responsabilização pelo serviço oferecido. De todo modo, a(o) Psicóloga(o) deve pautar seu trabalho na promoção dos Direitos Humanos, saúde e qualidade de vida, conforme apregoam os Princípios Fundamentais do Código de Ética.
Diante de casos de sério risco de feminicídio, uma Nota Técnica do CFP reassegura a prerrogativa da quebra de sigilo profissional e realização de comunicação externa, bem como o acesso da(o) profissional aos serviços disponíveis na rede a fim de oferecer suporte às mulheres, tendo como propósito preservar e proteger sua vida. Nas demais situações de violência contra as mulheres, poderá ser mantido o sigilo profissional, realizando-se somente a notificação compulsória, de caráter interno ao sistema de saúde (SINAN) e obrigatória em todo o país.
A violência contra as mulheres é recorrente em nossos contextos de trabalho. Seja na clínica ou nas políticas sociais, a realidade das desigualdades de gênero que geram as violências se impõe, exigindo de nós responsabilização e posicionamento. Entretanto, para isso não basta reconhecer que as violências atravessam a vida das mulheres de distintas formas, é necessário saber como as atravessam e como construir práticas que não as revitimizem. A práxis em casos de violência doméstica se dá por meio do conhecimento de bases teóricas e técnicas e não pode ser feita de maneira imprudente, caso contrário as mulheres em situação de violência serão colocadas por nós, Psicólogas(os), em um lugar de inércia ou de “vítimas”, como costumeiramente chamamos. A violência é um fenômeno complexo e multifacetado e por isso exige intervenções que superem uma compreensão familista[10] e que compreendam as mulheres como objeto de intervenção e não como sujeitos que possuem direitos de escolha sobre os caminhos que construirão para a sua trajetória.
Cabe pontuar que a violência não faz escolhas. Por mais que atravesse as mulheres de maneiras distintas, com base nas interseccionalidades enquanto uma prática estrutural na realidade brasileira, ela não seleciona somente um grupo. Isso significa que nós, como Psicólogas, também estamos sujeitas a vivenciar violências em nossos campos de trabalho. Por vezes, as situações de violências vivenciadas por nós geram sentimentos similares aos descritos ao longo desta nota: confusão, dúvida, dificuldade de darmos encaminhamentos tendo em vista os preceitos éticos, já que, por mais que prezemos pelo respeito e cuidado ao sofrimento das(os) usuárias/os e atendidos(as), as situações de violência nos colocam paradoxos difíceis de serem solucionados.
Dessa forma, entendemos que as Psicólogas em situação de violência em seus contextos de trabalho (ou outros) devem buscar auxílio profissional e orientação dos órgãos competentes pela sua prática profissional. A possibilidade de encaminhamento, denúncia e/ou construção de estratégias que lhes garantam proteção não devem ser lidas como negligência profissional ou despreparo teórico. As situações de violência, quando vivenciadas por nós, podem dar a falsa percepção de que não somos capacitadas o suficiente para o exercício da nossa prática e que nós devemos fazer uma autoavaliação acerca de nossa parcela de responsabilidade na situação vivenciada – o que se constitui leviano! As violências de gênero que possam ocorrer em nossos espaços de prática profissional não precisam ser toleradas por nós, podendo ser necessária a realização de uma denúncia por meio do registro do Boletim de Ocorrência.
Finalmente, não devemos ficar neutras(os) diante de situações de violência que possam ocorrer com nossas colegas Psicólogas, ofertando acolhimento e construindo junto a elas recursos para a amenização dos agravos derivados da violação de direitos, além de outras medidas que se fizerem necessárias para que haja segurança no desenvolvimento de suas práticas.
[1] O termo é utilizado no plural para dar visibilidade às diversidades raciais, étnicas, geracionais, de orientação sexual, de deficiência e de inserção social, econômica e regional existentes entre as mulheres.
[2] De acordo com dados do Ligue 180 do ano de 2016, 59,7% das mulheres que denunciaram suas violências eram negras. O Atlas da Violência (2019) ratifica esse número apresentando que 66% das mulheres assassinadas no Brasil no ano de 2017 eram negras.
[3] “O termo ‘em situação de’ é utilizado no lugar de vítima de violência, visto que a condição de vítima pode ser paralisante e reforça a representação da mulher como passiva e dependente: ‘Quando a mulher é referida como estando em situação de violência, ela está em condição, ou seja, ela acessa um lugar de passagem, pois é um sujeito nessa relação. Estar em situação oferece a possibilidade de mudança” (Mirin, apud Brasil, 2011). Da mesma forma o termo “autor(a) de violência” em vez de “agressor(a)”, tendo em vista que, a partir da compreensão de que as desigualdades de gênero são estruturantes dos papéis sociais, as práticas de violência dentro das relações não são características naturais às pessoas.
[4] Aqui utilizaremos o termo políticas sociais por entender que estas abarcam tanto as políticas governamentais como as do terceiro setor, sendo, portanto, esse termo mais amplo que “políticas públicas”, que se refere apenas às iniciativas públicas e estatais.
[5] Segundo dados do Ligue 180 do ano de 2016, 51% das mulheres relataram sofrer violência física e 31% violência psicológica.
[6] No que se refere aos atendimentos online, observa-se que a Resolução CFP n°11/2018 veda o atendimento de situações que envolvam violações de direitos, devendo nesse caso a(o) Psicóloga(o) encaminhar as mulheres para profissionais que possam atendê-las de forma presencial. (https://site.cfp.org.br/wp content/uploads/2018/05/RESOLU%C3%87%C3%83O-N%C2%BA-11-DE-11-DE-MAIO-DE-2018.pdf).
[7] Os critérios são: possuir renda familiar igual ou inferior a três salários mínimos e não possuir bens que ultrapassem a quantia equivalente a 300 salários mínimos nacionais.
[8] Há NUMAPEs nos seguintes municípios: Maringá, Londrina, Ponta Grossa, Irati, Guarapuava, Marechal Cândido Rondon, Francisco Beltrão, Toledo, Jacarezinho e Paranavaí.
[9] Os critérios são: residir na comarca do município onde se localiza o NUMAPE, ter renda de até três salários mínimos, não possuir valor superior a 150 mil em bens e estar em situação de violência doméstica.
[10] O familismo compreende que as intervenções do Estado devem sempre visar à preservação e ao cuidado da família, compreendendo essa a partir de bases que reforçam os papéis de gênero e, consequentemente, as desigualdades que os acompanham.
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