Revista CadernoS de PsicologiaS

O Caps(zinho) e eu

Nadya Christiane Silveira Pellizzari
Especialista em Psicoterapia na Análise do Comportamento, Educação Especial, Saúde Mental, Neuropsicologia e Psicopedagogia. CAPS Infantil do Munícipio de Londrina

Psicóloga (CRP-08/ 06926) – E-mail: nadyapelli@yahoo.com.br
#Estilhaços

Minha história no CAPS-i começou há 16 anos. Comecei a trabalhar no Caps-i em agosto de 2006, quando fui aprovada e convocada por um concurso no Consórcio Intermunicipal do Médio Paranapanema (CISMEPAR) que, naquele momento, era a instituição responsável pelos recursos humanos dos três CAPS de Londrina. Soubemos recentemente que o contrato com esse consórcio é irregular, pois os CAPS atendem apenas o município de Londrina e o consórcio tem a finalidade de atender os municípios da região. Onde quero chegar com isso? Com o fim desse contrato, todos os funcionários dos CAPS que são do CISMEPAR foram ou serão demitidos. O que equivale a mais da metade dos funcionários.

Estamos vivenciando uma crise terrível, e ao dizer “estamos”, me refiro a todos os funcionários que estão sendo demitidos, aos novos que são contratados através de teste seletivo temporário, àqueles que são de outros setores da saúde e fazem horas extras nos CAPS e, principalmente, aos usuários dos serviços. É uma situação de desamparo absoluto. Os colegas que já atuaram ou atuam em algum dos serviços da Rede de Atenção Psicossocial (RAPS), talvez consigam entender parcialmente a gravidade disso tudo, de toda essa crise e do desamparo. Acredito que para nós, psicólogos, bem como para os demais profissionais que atuam nos serviços da RAPS e que lidam com o sofrimento humano nas suas mais diversas expressões, estão incrédulos com os descaminhos vistos na condução da atual política de saúde mental, promovendo questionamentos dos mais diversos como: “O que aconteceu com a reforma psiquiátrica?”, “Como isso é possível?”; “Como estabelecer novos vínculos de uma hora para outra com tantas pessoas atendidas por tais profissionais?”.

Pois é… Essas questões nos servem não só para ponderarmos, mas também assumem a função de crítica. Ao longo desses 16 anos aprendi muito, fiz vários cursos, me especializei e sempre gostei muito de atender grupos terapêuticos – houve momentos em que eu acompanhava mais de 10 grupos. É muito gratificante atender as famílias dos usuários do serviço, acolher suas demandas e, em muitos momentos, representar, quiçá, o único ponto de apoio. É maravilhoso trabalhar em rede, articular com outros serviços o que chamamos de plano terapêutico, é incrível ouvir adolescentes que inicialmente se recusavam a ir ao CAPS sob a justificativa de que “é lugar de louco”, e que após alguns encontros se sentem felizes por terem esse atendimento, compartilhando, ainda, o fato de perceberem mudanças em suas vidas.

Não tenho palavras para descrever o quanto fiquei honrada e grata pela oportunidade de conhecer de tão perto e tão profundamente o CAPS, como constatei inclusive, que a liberdade é o melhor tratamento para pessoas em sofrimento emocional intenso. Entendi que tinha a obrigação de estender meus conhecimentos e experiências para além da jornada de trabalho, o que me fez ser participativa nos conselhos de controle social e no nosso conselho de classe, além de me tornar ativista/militante, junto a um movimento social, a Associação Londrinense de Saúde Mental.

Vivi também experiências muito difíceis, mas ao mesmo tempo enriquecedoras, como a de aprender a trabalhar em equipe. Nos primeiros anos pensei que seria impossível, achava muito cansativa as discussões em equipe, que pareciam não chegar a lugar algum. Percebi que, conforme amadureci e acompanhava a evolução da equipe, as discussões foram se tornando indispensáveis para o processo de trabalho. Às vezes, pequenas coisas eram motivo para grandes discussões, por exemplo, se o caso que fizemos acolhida deveria ser inserido no CAPS ou redirecionado a outro serviço. Por lá passaram muitos profissionais com quem trabalhei: enfermeiras, assistentes sociais, médicos, terapeutas ocupacionais, educadores artísticos e físicos, pedagogas e fonoaudiólogas. Trabalhei, também, com técnicos administrativos e responsáveis pela limpeza e pelo lanche, pessoas que fazem toda a diferença tanto para os trabalhadores, quanto para os usuários, pois algo que aprendemos no CAPS é que, todos os encontros são momentos de acolhimento. Aprendi muito com todos os membros, ter uma equipe multidisciplinar forte é enriquecedor e faz com que nos sintamos empoderados (eu sempre me sinto muito segura para explicar o quadro do nosso usuário após discutir com a equipe).

Fazer parte de uma rede de serviços, para mim, foi um enorme desafio, mas estar amparada pelo CAPS, inserido no Sistema Único de Saúde (SUS), cujos princípios nos sustentam no processo de nossas práticas, quando buscamos conduzi-las com base na universalidade, na integralidade e na equidade.

Aos colegas acadêmicos, peço desculpas pelo uso da linguagem informal (posso ter perdido o rebolado acadêmico, mas isso não se deu sem diversos outros ganhos). Após tanto tempo na prática, nos atendimentos no CAPS-i, sempre utilizando a linguagem que me aproximasse de meus pacientes, acabei aderindo aos jargões e às gírias. Gostaria também de esclarecer que em todos os momentos utilizei todo o aparato teórico da psicologia, creio que praticamente tudo aquilo que aprendi na teoria de uma forma ou de outra acabei encaixando em meus atendimentos, e quando surgiam dúvidas não hesitei em recorrer à sabedoria dos meus livros antigos, buscando avaliar, por exemplo, o que meu “guru” Skinner diria a respeito de determinado comportamento.

Ah! Também não poderia deixar de me referir a algo que sempre falo nos grupos dos adolescentes e que acho muito significativo. Sempre lhes digo que os atendimentos em grupo são muitas vezes mais “filosóficos” do que “psicológicos”, são lindas as falas dos adolescentes sobre a vida em sociedade, seus amores, suas vivências e explorar esses diálogos tornam os momentos únicos! Geralmente, o atendimento em grupo terapêutico dura uma hora e meia, mas quando as discussões estão acirradas parece que o dia inteiro vai ser pouco, mas temos esse limite, já que em seguida há outro atendimento a ser feito. Então, como a história não tem fim e no setting terapêutico do CAPS-i nos encontramos e nos perdemos nos pensamentos, na semana seguinte eles retornam e continuamos nossa conversa, que é livre de julgamento moral. Nesses momentos, falamos sobre anime, sobre bullying, sobre “putaria” (termo utilizado por eles para falar das relações sexuais). Evitamos falar de política, religião ou de outros temas que possam gerar divergências e polêmicas, mas quando não tem outro jeito falamos disso também, já que deixamos que eles conduzam a discussão, para que suas demandas apareçam e a discussão flua e, nesse ritmo, aparamos as arestas quando necessário.

O trabalho no CAPS-i foi para mim um caso de amor. Fiz parte de muitas vidas, participei de muitas histórias, ouvi tantos relatos e tive a ilusão de pensar na cura dos transtornos. Tive tantos sonhos e fantasias, e ainda tenho esperança de que surjam serviços cada vez melhores, mais acolhedores e mais humanizados. Em nenhum momento da vida pensei em desistir ou fazer outra coisa. Tenho a total convicção de que esse é o modelo de atendimento que as pessoas em sofrimento emocional merecem.

Ah! Quase esqueci de explicar o porquê do Caps(zinho), uma criança que atendemos me explicou que “o CAPS era da mãe dela, o dela era Caps(zinho)!”. Sentirei sua falta, nosso tão bem-amado Caps(zinho)!

Como citar esse texto

APA – Pellizzari, N. C. S. (2022). O Caps(zinho) e eu. CadernoS de PsicologiaS, 3. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/o-capszinho-e-eu/

ABNT – PELLIZZARI, N. C. S. O Caps(zinho) e eu. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 3, 2022. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/o-capszinho-e-eu/. Acesso em: __/__/____.