#Resenha
Resumo: Trata-se de uma resenha crítica baseada no curta-metragem ficcional “Dois Estranhos”, lançado em 2021. A obra retrata o racismo perpetrado pela polícia norte-americana, fazendo alusão a casos reais de violência contra pessoas negras nos EUA. Presentes não apenas no contexto norte-americano, mas evidenciados cotidianamente também no Brasil, o racismo foi institucionalizados ao longo dos séculos pelo próprio Estado contra pessoas negras. Assim como é abordado no curta-metragem, uma das formas de o racismo estrutural e a necropolítica se apresentarem na sociedade é através da Polícia, que é um dos agentes executores da política de morte. A partir do curta-metragem, a resenha teve por objetivo debater os conceitos de racismo estrutural e de necropolítica, especialmente com base nas obras de Sílvio Almeida e Achille Mbembe, em cotejo com elementos trazidos pelo curta-metragem. Além disso, o texto traz uma breve reflexão sobre formas de resistência e necessidade de reparação.
Palavras-chave: racismo; necropolítica; polícia.
THE SHORT FILM “TWO DISTANT STRANGERS” FROM THE PERSPECTIVE OF STRUCTURAL RACISM AND NECROPOLITICS
Abstract: This is a critical review based on the fictional short film “Two Distant Strangers”, released in 2021. The work portrays racism perpetrated by the North American police, alluding to real cases of violence against black people in the USA. Present not only in the North American context, but also evident on a daily basis in Brazil, racism has been institutionalized over the centuries by the State itself against black people. As discussed in the short film, one of the ways in which structural racism and necropolitics present themselves in society is through the Police, which is one of the agents that executes the policy of death. Based on the short film, the review aimed to debate the concepts of structural racism and necropolitics, especially based on the works of Sílvio Almeida and Achille Mbembe, in comparison with elements brought by the short film. Furthermore, the text provides a brief reflection on forms of resistance and the need for repair.
Keywords: racism; necropolitics; police.
EL CORTOMETRAJE “DOS EXTRAÑOS” DESDE LA PERSPECTIVA DEL RACISMO ESTRUCTURAL Y LA NECROPOLÍTICA
Resumen: Esta es una reseña crítica basada en el cortometraje de ficción “Two Strangers”, estrenado en 2021. La obra retrata el racismo perpetrado por la policía norteamericana, aludiendo a casos reales de violencia contra personas negras en Estados Unidos. Presente no sólo en el contexto norteamericano, sino también evidente en el día a día en Brasil, el racismo ha sido institucionalizado a lo largo de los siglos por el propio Estado contra los negros. Como se analiza en el cortometraje, una de las formas en que el racismo estructural y la necropolítica se presentan en la sociedad es a través de la Policía, que es uno de los agentes que ejecuta la política de muerte. A partir del cortometraje, la reseña tuvo como objetivo debatir los conceptos de racismo estructural y necropolítica, especialmente a partir de las obras de Sílvio Almeida y Achille Mbembe, en comparación con elementos aportados por el cortometraje. Además, el texto ofrece una breve reflexión sobre las formas de resistencia y la necesidad de reparación.
Palabras-clave: racismo; necropolítica; policía.
Two Distant Strangers, ou Dois Estranhos, título em português, é um curta-metragem de ficção de 2020, escrito por Travon Free, lançado e distribuído em território nacional pela plataforma de streaming Netflix em 2021. Neste mesmo ano, foi vencedor da categoria de Melhor Curta no Oscar. Embora ficcional, o enredo faz alusão a casos reais de violência institucionalizada e repetidamente perpetrada pela polícia contra pessoas negras nos EUA. A partir da obra, faz-se uma resenha crítica, com o objetivo de debater o racismo estrutural e a necropolítica. Para isso, é necessário abordar alguns detalhes que revelam cenas finais do enredo – um alerta para futuros espectadores.
O enredo tem Carter como protagonista, um jovem negro cartunista bem-sucedido. O desenrolar da história tem início com o personagem acordando na casa de Perri, uma mulher com quem passou a noite após um encontro no dia anterior. Após deixar o apartamento da moça, o jovem, já na calçada da rua, retira da mochila um maço de cigarros, deixando cair uma quantia significativa de dinheiro no chão. Em seguida, sem querer, esbarra em um rapaz branco, deixando-o aborrecido, apesar de logo seguir seu caminho. Ao ver o pequeno desentendimento, Mark, um policial branco, aborda Carter e o questiona sobre o tipo de substância que o rapaz tinha consigo, sua forma de trabalho e a quantidade de dinheiro que havia caído no chão – pois, segundo o policial, seria uma quantia muito grande para um homem como ele. O jovem diz ser um designer gráfico muito requisitado, no entanto, Mark continua incomodado e inicia uma revista brusca, ordenando-o que entregue seus pertences e se encoste à parede. Outros dois policiais chegam ao local e a abordagem se torna cada vez mais violenta. A cena termina com o cartunista deitado na calçada dizendo que não consegue respirar – uma alusão ao caso George Floyd, ocorrido nos EUA em maio de 2020 -, contudo, os três policiais permanecem sobre o rapaz, até que ele é assassinado (Free, 2020).
Na cena seguinte, o protagonista surge vivo com uma sensação de déjà vu, novamente na cama de Perri, tal qual o dia anterior, e toda a primeira cena se repete. O restante da trama se desenvolve continuamente em um loop temporal: Carter se vê acordando do mesmo modo, e seu dia se desenrola da mesma forma, ou seja, sendo abordado e, posteriormente, assassinado pelo mesmo policial. A cada dia, o cartunista tenta mudar seus comportamentos, buscando modificar o desfecho, no entanto, o final sempre se repete e culmina em sua morte. Em algumas das dezenas de tentativas de evitar seu fatídico assassinato, Carter tenta a via do diálogo com o policial, revelando os acontecimentos que vêm se repetindo. Ainda que explique ao policial como pessoas negras são frequentemente vítimas de abordagens aleatórias e violentas, o esforço acaba sendo em vão e o que lhe parece inevitável de fato acontece, sua morte (Free, 2020).
De fato, o racismo se apresenta, tanto na sociedade norte-americana, como na brasileira, em estreita relação com as instituições oficiais, como a polícia. O retrato do negro como alguém de “segunda classe”, que não mereceria ter seus direitos respeitados – em comparação ao branco europeu detentor de uma suposta superioridade – representa fortes resquícios de séculos de exploração e escravidão, imagem que ainda está impregnada na sociedade atual.
Sílvio Almeida (2020), em seu livro “Racismo Estrutural”, discorre sobre o conceito de raça não ser estático, mas sim dinâmico e dependente das relações sociais vigentes em determinada sociedade. Segundo ele, o racismo é definido em três concepções. A primeira é a concepção individualista, em que o racismo é apontado como um tipo de anomalia, não existindo racismo, mas sim preconceito. A segunda, institucional, na qual o racismo é resultado do funcionamento das instituições que atuam dando privilégios e desvantagens com base na raça, práticas que são normalizadas através do uso do poder e dominação. E a terceira, a concepção estrutural, na qual o racismo é resultado do próprio modo “normal” presente nas relações sociais, políticas, jurídicas e econômicas. Segundo o autor, o racismo é estrutural, pois a possibilidade de reprodução sistêmica das práticas racistas se encontra tanto nas instituições como nos comportamentos individuais, sendo dada como regra, e não exceção. Assim sendo, “não é o racismo estranho à formação social de qualquer Estado capitalista, mas um fator estrutural, que organiza as relações políticas e econômicas” (Almeida, 2020, p. 181).
Ademais, o racismo também é concebido como um processo de constituição de subjetividade. Para isso, deve-se reconhecer que nossa relação com o mundo é mediada por diversos instrumentos simbólicos, dentre eles, a ideologia. A relação do sujeito com a sociedade é mediada pela ideologia, que é reproduzida e inscrita no sujeito através da educação, da mídia e do sistema judicial, e que prevalece em todas essas esferas em conformação com a realidade. Sendo assim, o sujeito não nasce racializado, mas se torna a partir do momento em que entra em contato com toda a rede de sentidos e significações de uma sociedade, que são pré-estabelecidas antes de seu nascimento (Almeida, 2020). Desse modo, o sujeito tem sua identidade moldada por concepções ideológicas constantemente postas em seu cotidiano, ora de forma sutil, ora escancarada. A título de exemplo, é diária a presença do populismo penal midiático em grandes jornais e canais de TV aberta, nos quais o perfil do criminoso é traçado caricatamente como um sujeito não-branco, periférico e pobre, sendo frequentemente objeto de perseguições, acusações sem fundamento, permeadas por um discurso sensacionalista ao tratar da criminalidade. Em paralelo ao racismo disseminado na mídia, existe o racismo institucionalizado pelo próprio Estado.
Segundo Achille Mbembe (2016), uma das formas de o Estado expressar sua máxima soberania é exercendo controle sobre a existência humana, ditando quem pode viver e quem pode morrer. Dito de outro modo, soberania, para o autor, seria a “capacidade de definir quem importa e quem não importa, quem é ‘descartável’ e quem não é” (Mbembe, 2016, p. 135). Nesse sentido, uma das táticas aplicadas pelo Estado seria a utilização do medo como elemento central, o que pressupõe a construção da figura de um inimigo público, para que este seja visto como um perigo e uma ameaça para a sociedade, conforme os interesses históricos exigirem (Bento, 2018).
Uma das primeiras formas de aplicação biopolítica foi a escravidão, que teve na estrutura colonial o estabelecimento de um estado de exceção. Nesse contexto, o indivíduo escravizado surgiu sem direitos sobre seu próprio corpo, sem lar, sem cidadania, completamente desumanizado. Nas colônias, vigorou o regime de excepcionalidade, em que os direitos e garantias da ordem judicial poderiam ser suspensos e o direito do soberano teria primazia sobre qualquer norma legal. Tudo isso em prol da “civilização”, em contraposição ao terror colonial que era suscitado em torno dos povos “selvagens” (Mbembe, 2016).
No intuito de justificar a política de morte, em prol de uma suposta segurança da sociedade como um todo, o “inimigo” é desumanizado e objetificado, para que, assim, não sejam a ele aplicados os direitos e garantias constitucionais. Trata-se da “percepção da existência do outro como um atentado contra minha vida, como uma ameaça mortal ou perigo absoluto, cuja eliminação biofísica reforçaria o potencial para minha vida e segurança” (Mbembe, 2016, p. 128-129). Tal fenômeno pode ser compreendido como uma forma de exercício do chamado biopoder, de que tratou Michel Foucault, que opera mediante a divisão entre os que merecem viver e os que devem morrer. Para haver a imposição de controle, o pressuposto é que haja uma divisão da espécie humana em grupos e subgrupos, estabelecendo-se diferenças biológicas entre eles, o que o filósofo chamou de racismo, cuja função, segundo ele, seria permitir o poder de morte por parte do Estado (Mbembe, 2016).
Enquanto Foucault, ao tratar do biopoder, falou sobre a capacidade do Estado de “deixar morrer”, Mbembe, no entanto, ressalta que o termo pode dar um tom de passividade e omissão por parte do Estado, como se houvesse tão somente um não agir. Para além de uma postura de mera negligência, o que de fato se verificam até hoje são políticas estatais planejadas de ‘fazer morrer’, mirando propositadamente em certas vidas em detrimento de outras. As “vidas matáveis” seriam aquelas que deturpariam o ideal europeu de uma nação cristã, heterossexual e branca (Bento, 2018). Além disso, Mbembe (2016) ressalta que a noção de biopoder não consegue explicar todas as formas de controle da vida pelo poder da morte. O filósofo traz o conceito de necropolítica para explicar os novos contextos presentes na pós-modernidade, na qual populações inteiras são subjugadas e reduzidas ao status de “mortos-vivos”. Isso ocorre em virtude da implantação no mundo contemporâneo de novas tecnologias de destruição máxima de pessoas, subjugando-as a um cotidiano de intimidação e terror. Conforme Bento (2018), na atualidade, uma das técnicas sistemáticas do Estado objetivando a eliminação de uma parcela da população se faz presente na política de encarceramento, que possui como alvo, majoritariamente, pessoas negras.
É preciso ressaltar um momento prévio ao da repressão que sofre a população negra dentro sistema carcerário, que é o da abordagem policial. Há um racismo institucionalizado também no âmbito da Polícia, que justifica suas ações frequentemente dizendo que teria notado “atitudes suspeitas” em relação àqueles que prendem e matam, uma desculpa totalmente injustificada para exercer uma política de morte, que de excepcionalidade tem se tornado regra geral quando a pele é negra. O poder apela frequentemente para a exceção e emergência, referindo-se a uma noção ficcional de inimigo, que traria um perigo para a sociedade, sendo passível de neutralização. (Mbembe, 2016).
O curta-metragem “Dois estranhos” ilustra claramente a execução da necropolítica sobre indivíduos negros por parte da Polícia. A história ficcional do curta-metragem se passa nos EUA, mas a narrativa poderia ser brasileira, pois o mesmo fenômeno se faz presente em nosso país cotidianamente. O racismo institucionalizado se evidencia ao verificarmos a seletividade da abordagem policial, que constantemente recai sobre as mesmas pessoas pela cor da pele, ainda que estes não estejam envolvidos em atitudes “suspeitas”. A violência policial ocorre em qualquer espaço cotidiano, pouco importando o contexto em que os indivíduos estejam envolvidos A pessoa negra já é previamente taxada como suspeita, independente do que esteja fazendo, em razão de um estereótipo social e historicamente construído, que advém de bases coloniais.
“Dois estranhos” ilustra perfeitamente a disparidade existente entre os povos negros e brancos, particulamente perante as autoridades policiais, que, ao invés de promoverem a segurança e o bem estar – direitos constitucionais de todo ser humano -, os colocam em posições de inferioridade e marginalização. Ao retratar e retomar casos reais ocorridos nos Estados Unidos e de grande repercussão mundial, o curta-metragem promove a conscientização e um olhar mais atento a fatos que, infelizmente, se tornaram corriqueiros: centenas de pessoas negras cruelmente violentadas física e emocionalmente todos os dias ao redor do mundo em razão da cor.
Como forma de homenagear as vítimas, nas cenas dos créditos, o curta-metragem traz à memória diversos assassinatos sofridos por pessoas pretas nos Estados Unidos nos últimos anos. A obra relembra casos reais de vítimas abordadas e mortas pela polícia de forma completamente imotivada, em meio a situações cotidianas, tal qual o protagonista, sem qualquer chance de defesa. A referência ao movimento Black Lives Matter visa denunciar a manifesta violência institucional contra a comunidade negra norte-americana. Os episódios de racismo estrutural se alicerçam na imagem distorcida e historicamente construída da pessoa negra – odiosos e, por vezes, velados subterfúgios como forma de justificar a barbárie. Tais casos revelam que pouco importa a roupa, modo de expressão ou poder aquisitivo das vítimas, pois, em razão do estigma fabricado ao longo da história, elas acabam sendo subjugadas e, não raro, sumariamente sentenciadas à morte tão somente em razão de sua cor da pele.
O final do curta-metragem mostra o quão difícil é desvencilhar-se das marcas coloniais que se encontram imbricadas nas relações e instituições sociais. Isso não quer dizer que se deva adotar uma posição de resignação, aceitando passivamente o destino cruel que é retratado. Entendemos que não é possível desfazer o que é da ordem colonial. Não há uma forma fácil de reverter o que está posto. Não há possibilidade de retorno ao status quo, afinal, a história não se apaga. O que existem são formas de resistência, projetos de criação e de conquista, processos de construção baseados numa lógica decolonial. Conforme Guimarães (2017), para além do reconhecimento da existência dessas questões na sociedade, é preciso de prática e reparação. É necessária uma postura ativa a fim de abandonar privilégios, para transformarmos estruturas, instituições, relações sociais, política, e também a psicologia.
Embora não seja um caminho fácil, tendo em vista muitos séculos de dominação e desigualdade, é preciso romper esse looping. Seja por meio de novas formas de conhecimento pautadas no pensamento decolonial, seja por meio de políticas públicas ou projetos de resistência e enfrentamento dos mecanismos de dominação, temos ainda um longo caminho pela frente de construções e conquistas.
Almeida, S. L. de. (2020). Racismo Estrutural. São Paulo: Sueli Carneiro; Editora Jandaíra.
Bento, B. (2018). Necrobiopoder: Quem pode habitar o Estado-nação?. Cadernos Pagu [online], n. 53, e185305. Recuperado de: https://doi.org/10.1590/18094449201800530005
Free, T. (Roteirista e Diretor), & Roe, M. D. (Diretor). (2020) Two Distant Strangers. Estados Unidos da América: Netflix.
Guimarães, R. S. (2017). Por uma Psicologia decolonial: (des)localizando conceitos. In E. F. Rasera; M. S. Pereira; D. Galindo (org.). Democracia participativa, estado e laicidade: psicologia social e enfrentamentos em tempos de exceção. Porto Alegre: ABRAPSO.
Mbembe, A. (2016). Necropolítica. Arte & Ensaios, 2(32), Recuperado de: https://revistas.ufrj.br/index.php/ae/article/view/8993/7169
ABNT — AMARAL, A. D. C. Resenha crítica do curta-metragem “Dois Estranhos” sob a ótica do racismo estrutural e da necropolítica. CadernoS de PsicologiaS, n. 4. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/o-curta-metragem-dois-estranhos-na-perspectiva-do-racismo-estrutural-e-da-necropolitica/. Acesso em: __/__/___.
APA — Amaral, A. D. C. (2023). Resenha crítica do curta-metragem “Dois Estranhos” sob a ótica do racismo estrutural e da necropolítica. (Re)Construção do que me faz ser na psicologia. CadernoS de PsicologiaS, 4. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/o-curta-metragem-dois-estranhos-na-perspectiva-do-racismo-estrutural-e-da-necropolitica/