Revista CadernoS de PsicologiaS

O desafio de trabalhar em uma unidade do CREAS

Carolina Martins dos Santos Carvalho
Doutora em Psicologia - PUC-GO

Psicóloga (CRP-08/34687) — E-mail: camasapsi@hotmail.com
#Relatos_de_experiência

Resumo: Esta pesquisa objetivou analisar a organização do trabalho em um Centro de Referência em Assistência Social/Sistema Único de Assistência Social. Trata-se de um estudo de caso de caráter descritivo e exploratório, embasado na Psicodinâmica do Trabalho. Participaram do estudo nove trabalhadores de diversas funções. Foram realizadas seis sessões de discussão coletiva e as análises ocorreram conforme o método proposto. Os resultados são apresentados considerando os seguintes componentes: o sistema de Assistência social federal e municipal; a gestão de pessoas; as condições de trabalho; estrutura física; segurança. Os trabalhadores descrevem uma organização do trabalho caracterizada por precárias condições de trabalho, o que constitui fonte de sofrimento, gerando sobrecarga cognitiva e psíquica no trabalho. Os dados revelam que os trabalhadores mobilizam sua subjetividade para lidar com o sofrimento advindo do trabalho, e mesmo com estratégias de enfrentamento ainda declaram vivências de sofrimento, angústia, impotência, havendo necessidade de ajustes na organização do trabalho.

Palavras-chave: CREAS; Psicodinâmica do trabalho; Organização do trabalho.

THE CHALLENGE OF WORKING IN A CREAS UNIT

Abstract: This research aimed to analyze the organization of work in a Social Assistance Reference Center/Unified Social Assistance System. This is a descriptive and exploratory case study, based on the Psychodynamics of Work. Nine workers from different functions participated in the study. Six collective discussion sessions were held and analyzes took place according to the proposed method. The results are presented considering the following components: the federal and municipal social assistance system; people management; working conditions; physical structure; security. Workers describe a work organization characterized by precarious working conditions, which constitutes a source of suffering, generating cognitive and psychological overload at work. The data reveal that workers mobilize their subjectivity to deal with the suffering arising from work, and even with coping strategies they still declare experiences of suffering, anguish, impotence, requiring adjustments in the organization of work.

Keywords:  CREAS; Psychodynamics of work; Organization of work.

EL RETO DE TRABAJAR EN UNA UNIDAD CREAS

Resumen: Esta investigación tuvo como objetivo analizar la organización del trabajo en un Centro de Referencia de Asistencia Social/Sistema Único de Asistencia Social. Se trata de un estudio de caso descriptivo y exploratorio, basado en la Psicodinámica del Trabajo. En el estudio participaron nueve trabajadores de diferentes funciones. Se realizaron seis sesiones de discusión colectiva y se realizaron análisis según el método propuesto. Los resultados se presentan considerando los siguientes componentes: el sistema de asistencia social federal y municipal; gestión de personas; las condiciones de trabajo; estructura física; seguridad. Los trabajadores describen una organización del trabajo caracterizada por condiciones laborales precarias, lo que constituye una fuente de sufrimiento, generando sobrecarga cognitiva y psicológica en el trabajo. Los datos revelan que los trabajadores movilizan su subjetividad para afrontar el sufrimiento derivado del trabajo, e incluso con estrategias de afrontamiento todavía declaran experiencias de sufrimiento, angustia, impotencia, que requieren ajustes en la organización del trabajo.

Palabras-clave: CREAS; Psicodinámica del trabajo; Organización de trabajo.

O Centro de Referência Especializado em Assistência Social (CREAS), mantido pelo Sistema Único de Assistência Social (Suas), com repasse de verbas das três esferas políticas – municipal, estadual e federal (Ipea, 2010) –, consiste em uma unidade pública e estatal, que oferece serviços especializados e continuados a famílias e indivíduos em situação de ameaça ou violação de direitos (Lei nº 12.435, 2011), que atende aos que necessitam de Proteção Social Especial (PSE) de média e alta complexidade, como nos casos de abandono, negligência, usuários de drogas, pessoas em situação de rua, abuso sexual, trabalho infantil, discriminados em decorrência da sua orientação sexual e/ou raça/etnia, vítimas do tráfico de pessoas e adolescentes em cumprimento de medidas socioeducativas em meio aberto.

Dada a especificidade das situações vivenciadas, os serviços ofertados pelo CREAS não podem sofrer interrupções, seja por questões relativas à alternância da gestão ou qualquer outro motivo.

Em consonância com uma avaliação crítica da realidade, o profissional do Sistema Único de Assistência Social no Brasil deve ser capaz de garantir que os direitos humanos sejam respeitados, com práticas e intervenções fecundas, fundamentadas política e cientificamente e conectadas com a transformação da realidade (Iamamoto, 2012). Boschetti (2017) afirma que as condições e as relações de trabalho vêm sendo marcadas pela precarização na política. Com efeito, no SUAS, as relações e condições de trabalho são resultantes da dinâmica dos processos sociais contemporâneos, baseadas na flexibilização, exploração, espoliação e terceirização, enquanto sua efetivação como política social nos limites do capital ocorre com fortes tendências à focalização, à descentralização e à precarização.

A Psicodinâmica do Trabalho considera que vários fatores influenciam no alcance do equilíbrio psíquico, sendo o contexto laboral constituído pela organização e condições de trabalho e por relações sociolaborais (Macêdo, 2018). O trabalho é um processo dialético, na medida em que o sujeito tanto influencia quanto é influenciado por ele. Por um lado, dá sentido ao que faz; de outro, as situações de trabalho interferem nas percepções desse trabalhador em relação a esse contexto. A situação o leva a vivenciar prazer e sofrimento.

De acordo com Dejours (2012), o próprio conceito de trabalho já prevê uma lacuna entre o prescrito e o real, lacuna que gera uma vivência de sofrimento inerente, sendo que a forma como o trabalho é organizado, planejado e gerido pode tanto contribuir para o equilíbrio do trabalhador como para seu desequilíbrio.

A partir dos estudos realizados em Psicodinâmica do Trabalho, Dejours (2016) enfoca a gênese e as alterações dos sofrimentos mentais atrelados à organização deste, sendo essa a fonte geradora de tensões e constrangimentos capazes de desestruturar a vida psíquica do sujeito. O trabalho nunca é neutro no que se refere à saúde do trabalhador.

A saúde mental do trabalhador está relacionada para além do preparo técnico e do conhecimento, mas com o campo das relações, no qual é preciso entender o trabalho como dinâmico, que se transforma de acordo com as necessidades dos diferentes atores envolvidos nesse processo. Pelas próprias características do trabalho com população vulnerável na Assistência Social, entende-se que a saúde mental dos profissionais que lidam com situações vulneráveis merece mais atenção e, para tanto, se faz necessário desvelar como é a organização do trabalho desses trabalhadores.

Método

Objetivou-se, com este estudo, analisar a organização do trabalho presente no CREAS localizado em um município na região Centro-Oeste do Brasil, a partir da Psicodinâmica do Trabalho. A pesquisa foi realizada no período de abril a junho de 2018 e foi um estudo de caso que teve caráter descritivo e exploratório.

A organização estudada foi um CREAS situado na região Centro-Oeste do Brasil. A unidade de assistência social atende, além da população do seu perímetro urbano, pessoas residentes em quatro comunidades rurais e recebe demandas encaminhadas pela justiça, por interesse da própria vítima ou por solicitação de outras instituições. As demandas são diversificadas e por vezes relacionadas a questões de ilegalidade e narcotráfico, abuso e exploração sexual de crianças e adolescentes, violência física e psicológica de vulneráveis, feminicídio, cárcere privado, tráfico de pessoas (principalmente mulheres e crianças), negligência e abuso financeiro ao idoso, dentre outras formas de violação de direitos. A variação das ocorrências exige diversos tipos de atuação por parte dos profissionais.

 No período do estudo, a instituição contava com 9 (nove) pessoas em seu quadro de pessoal, em sua maioria do sexo feminino, a maior parte com ensino superior completo, sendo celetistas ou concursados. A pesquisa foi realizada com todos os trabalhadores e as etapas de coleta e análise foram desenvolvidas de acordo com as etapas da Clínica do Trabalho proposta  por Dejours (2004).

A primeira etapa – a pré-pesquisa – foi realizada com o apoio da gestora e do assistente administrativo do CREAS estudado, que apoiaram o projeto em todas as suas etapas. Nessa fase foram realizadas análise documental e entrevistas individuais com os trabalhadores visando constituir a demanda para a realização do estudo.

O critério para composição do grupo de participantes deste estudo foi intencional e a demanda surgiu dos próprios trabalhadores do Centro de Referência em Assistência Social.

A pesquisa documental também contribuiu para o estudo, pois permitiu o acesso à história do órgão, às normas e aos procedimentos e ao histórico dos motivos de afastamento dos trabalhadores com atestado dos três últimos anos entre 2015 e 2018.

Na etapa denominada pesquisa propriamente dita foram realizadas sessões para discussões coletivas que caracterizam a clínica do trabalho, constituindo, assim, um espaço que propiciou a construção coletiva entre trabalhadores e pesquisadores do conhecimento acerca do campo estudado. Seis encontros de discussão coletiva foram realizados como um espaço de escuta e foram conduzidos a partir de perguntas gerais abordando a organização do trabalho e a mobilização subjetiva dos trabalhadores.

As sessões de discussão coletivas foram gravadas, transcritas e analisadas pela Clínica do Trabalho, usando como critério a triangulação de juízes. Para a validação dos dados, seguindo o prescrito por Dejours, foram realizados encontros com o grupo de participantes. A realização das sessões de discussão coletiva e a análise clínica do trabalho a partir da fala, que permitiu construir um conhecimento de forma  coletiva, com vistas a levantar aspectos da organização do trabalho e seu impacto nos trabalhadores, foi o objetivo deste estudo.

Resultado

Este trabalho apresenta resultados parciais de uma tese que buscou analisar a organização do trabalho presente no CREAS localizado em um município na região Centro-Oeste do Brasil, a partir da Psicodinâmica do Trabalho.  As equipes de referência do SUAS são compostas por um grupo de profissionais multidisciplinares que possuem objetivos comuns e que definem coletivamente estratégias para alcançá-los. O prescrito para a composição de uma unidade do CREAS prevê uma proporção de um profissional para atendimento a, no máximo, 20 casos, acolhidos em até dois equipamentos da alta complexidade para pequenos grupos. No entanto, os dados indicam que o real do trabalho na unidade tem exigido que cada profissional tenha que atender três vezes mais do que o previsto, ou seja, eles têm atendido uma média de 60 casos.

Os atendimentos dos casos podem ocorrer por meio de sessões de atendimento individuais ou grupais; visitas domiciliares; concessão e acompanhamento de benefícios. Há, então, uma desproporcionalidade com o prescrito na normativa de referência e o praticado na unidade, levando a uma demanda exaustiva para os trabalhadores. Observa-se sobrecarga de trabalho, não apenas em relação ao número de atendimentos, mas também uma sobrecarga cognitiva e emocional em decorrência da especificidade da tarefa. Os dados indicam ainda que, em consequência do nível elevado de atendimentos, algumas atividades essenciais dos profissionais são relegadas a segundo plano, deixando lacunas relativas a processos e procedimentos.

Metas impossíveis de serem atendidas considerando o tamanho da equipe disponível para a realização das tarefas, somadas a uma pressão por resultados constituem fatores que geram sofrimento nos trabalhadores, pois quando essas metas não são alcançadas, muitas vezes a culpa/responsabilidade recai para o fator humano, no caso, os trabalhadores, e não se questiona a falha no planejamento e gestão dos recursos financeiros e humanos da unidade (Dejours, 2012).

Além da demanda maior do que esperada, o público-alvo do CREAS estudado abrange geograficamente a população urbana e também a rural, conforme identificado na pesquisa preliminar. Nesse sentido, os que estão na zona rural possuem problemas que envolvem sua logística e tempo. Nos encontros de grupo, foi possível identificar que os deslocamentos são deficientes em se tratando do tempo de viagem e das condições viárias. Esses elementos imperam sobre as condições de trabalho, como evidenciado no recorte seguinte: “(…) é muito longe esse assentamento daqui. A gente está indo lá toda semana para dar suporte para essa família, para ajudar a segurar as pontas mesmo. (…) esse suporte a família é de direito (…)” (Participante 4).

Essa situação limita a realização de todos os trabalhos agendados, além de deixar ainda mais estreita a capacidade de atendimento às demandas, visto haver uma priorização da quantidade de pessoas a serem atendidas por profissional em detrimento da qualidade do atendimento. Para que o processo de trabalho funcione, é necessário reajustar as prescrições e desenvolver a organização do trabalho efetiva, o que é diferente da organização do trabalho prescrita.

Conforme descrito nas orientações técnicas do CREAS, suas competências enquanto órgão da política de assistência social fazem parte de um arcabouço de leis e normativas que fundamentam e definem essa política social e regulam o SUAS. Os dados coletados permitem a análise de que tais orientações prescritas parecem não ser suficientes para dar conta do real do trabalho. De acordo com relato dos participantes, cada dia é um aprendizado diferente, uma nova necessidade de estudar o caso.

Além disso, há uma dificuldade por não haver uma supervisão dos casos, já que muitas análises e relatórios influenciam sobremaneira a vida das pessoas vulneráveis atendidas. Nessa perspectiva, apesar de haver normas e orientações prescritas a serem seguidas, o real do trabalho demanda muita carga psíquica, estudo e discussão de casos, além do documento apresentar déficits referentes à descrição específica dos cargos técnicos.  A lacuna entre o prescrito e o real se apresenta complexa diante de um cenário de precarização, que acarreta insatisfação, insegurança e sofrimento psíquico.

Ter perfil para trabalhar na assistência social é considerado um fator muito importante pelos participantes, conforme o seguinte relato: “Também tem que identificar o perfil do profissional. Tem profissional que tem o perfil pra caso de abuso ou de alienação” (Participante 5). A qualidade dos serviços socioassistenciais disponibilizados à sociedade depende da estruturação do trabalho, da qualificação e da valorização dos trabalhadores atuantes no SUAS.

Embora o processo de credenciamento e contratação aconteça de acordo com a NOB/SUAS (2012), há, segundo a gestão da organização, uma escassez de mão de obra, o que impossibilita um processo seletivo mais eficiente. Ainda que tenham esse gargalo, há uma inobservância no treinamento e desenvolvimento e isso desfavorece a aplicação do trabalhador ao trabalho. O relato do Participante 2 mostra a sensação de não preparo para o cargo “soube da oportunidade de emprego no CREAS. Nunca tinha ouvido falar, não imaginei como seria aqui (risos) porque são violações graves. Então eu cheguei sem nenhum preparo mesmo. (…) Cá estou há três anos”.

Nesse contexto, não são consideradas as competências e capacitações do trabalhador no momento de colocá-lo em determinada área, o que leva à inadequação das competências exigidas para o exercício da função e as atividades do setor, gerando insatisfação e sofrimento. Os trabalhadores relatam que vivenciam um estado de tensão, de insatisfação, de frustração e de angústia constante. Isso fica claro no relato seguinte: “Fala que é o Centro de Referência Especializado, mas a gente não é especializado em nada. A gente é generalista. Mas a gente sabe o que está falando aqui. Tem gente que está nesses órgãos e não sabe” (Participante 1). O profissional é contratado para o trabalho sem informações necessárias acerca das atividades que deverá desempenhar e de como irá se organizar para o trabalho, vai se especializando com o decorrer das experiências reais.

De acordo com as análises e com os relatos dos participantes, a remuneração ofertada para o trabalho está abaixo do nível salarial do mercado, principalmente se consideram o nível de complexidade exigido para a atuação. Esse é um dos fatores que, segundo os relatos, os impedem de procurar ajuda psicológica. Outro fator agravante é que os trabalhadores efetivados por meio de credenciamento, além de receberem um salário inferior ao dos colegas concursados que exercem a mesma função, não têm direito a férias e aos demais benefícios, importantes para os trabalhadores que atuam na assistência social.

Tais aspectos geram o sentimento de falta de reconhecimento e de injustiça pelo trabalho, realizado segundo o tipo de contrato de trabalho e os direitos neles estabelecidos, como expresso neste depoimento: “A questão da remuneração precisava ser reavaliada, revista. A questão de como somos contratados, a participante 5 é a única que tem direito a férias aqui. Poderia rever também. Não sei, alguma forma” (Participante 2).

Dessa forma, os tipos de vínculo de trabalho estabelecem as condições de trabalho a que os trabalhadores são submetidos. A ausência de reconhecimento retratada na retribuição financeira injusta é fonte de sofrimento. Os baixos salários podem piorar as condições de vida pessoal, familiar e de saúde (Minayo, 2013).

Em relação às condições de trabalho, faltam investimentos institucionais na ergonomia e na qualidade de vida dos trabalhadores do CREAS pesquisado. Periculosidade é aparente na maioria dos relatos dos participantes ao descreverem as características da atividade do trabalhador no município estudado, como expressa o Participante 1 em uma das vivências: “O homem de lá tem fama de matador e tudo. (…) falei pro motorista: você desce comigo. (…) porque já intimida. (…) me deparei com a idosa, igual uma cadeia (…) uma área cercada por tela de ferro e trancado com cadeado”.

Periculosidade literalmente significa algo perigoso. Dessa forma, atividades que envolvem risco à vida do colaborador podem dar direito ao adicional de periculosidade. Apesar de o município ser pequeno, sempre ocorrem situações de violência, risco e morte, evidenciado no recorte seguinte: “(…) tivemos usuária nossa que foi assassinada. A gente deslocou até a residência para prestar todo suporte. (…) a gente sabe que (…) tem uma situação de vulnerabilidade total, financeira, emocional, psicológica (…)” (Participante 4).

Em relação ao contato diário com situações de violência, os profissionais relataram a tensão de conviver com essa realidade, expostos a muitas situações perigosas, inclusive sofrendo ameaças durante as visitas domiciliares e a busca ativa, conforme expresso no relato do Participante 1: “(…) no caso de violência doméstica, a mulher chega aqui pra gente, ela não tem contato telefônico, ela passa só o endereço, zona rural ou na cidade, e a gente tem que fazer uma visita. Aí a gente nunca sabe se na visita o agressor vai estar ou não”. Em determinados casos, a equipe relatou sentir-se bastante inibida em agir frente à denúncia, pois muitas vezes o agressor era alguém muito próximo da vítima ou da própria família. Quando se pergunta ao grupo participante “Quem resguarda a segurança de vocês em relação ao agressor?”, as respostas saem em um só tom, parecendo até mesmo um coro: “Deus”.

O relato seguinte apresenta trecho evidenciando o quanto esses profissionais precisam estar alertas a todas as ações que vão desenvolver: “Porque sinceramente eu já falei pra juiz. Porque dependendo do relatório que a gente tem que fazer relatando o que aconteceu com a vítima… eu falei pro Juiz: Doutor eu não quero que o agressor saiba” (Participante 2). As condições de trabalho são apontadas pelos trabalhadores como possível fator ligado a alta rotatividade de profissionais e, com isso, os serviços sofrem; ademais, não há nada prescrito em relação às demandas do território estudado e as prescrições estabelecidas pelas diretrizes de funcionamento do órgão são conflitantes, sendo muitas vezes diferentes da atuação prática.

A organização do trabalho é repassada pelo representante do órgão e, assim, o profissional recém-chegado aprende pela observação e pelo material produzido e disponibilizado pelo órgão, como conta o Participante 7: “Pior que a evolução é muito importante. Ainda mais na rotatividade de técnicos. Chega outro técnico fica completamente perdido (…)”.

A sobrecarga de trabalho (ritmo de trabalho) vivenciada pelos profissionais associa-se, principalmente, à escassez de recursos humanos e à inadequação da carga horária, o que acarreta momentos de tensão e um grande esforço por parte do profissional, na tentativa de atender à demanda apresentada (desgaste emocional e físico). Devido a casos específicos há alterações no horário de trabalho, onde o trabalhador precisa se adequar à realidade do usuário para dar conta da demanda real do trabalho.

Na percepção dos participantes, parece que as leis trabalhistas ignoram todos os riscos impostos aos trabalhadores do CREAS, ou os mesmos são negligenciados pela gestão, como revelado no trecho seguinte: “(…) olha o grau de risco pessoal que a gente corre no próprio trabalho. (…) se uma hora essas pessoas invadem o órgão (…). O risco que a gente corre na rua, porque a cidade é uma cidade pequena. (…) nós temos filhos, temos família. (…) a gente começa a pensar nisso e a gente começa apavorar” (Participante 7).

 Em contato diário com situações de violência, os profissionais relataram a tensão de conviver com essa realidade, expostos a muitas situações perigosas, inclusive sofrendo ameaças durante o exercício de suas funções. O trabalhador fica mais suscetível aos efeitos negativos a nível psicológico, físico e social, tais como estresse relacionado com o trabalho, esgotamento ou depressão, gerando incapacidade individual e coletiva.

Em relação ao ambiente físico e aos equipamentos utilizados no trabalho, a unidade estudada é adaptada em uma casa alugada e não havia estrutura acessível, com rampas e corrimões para acessibilidade de cadeirantes e deficientes físicos, sendo necessário o atendimento desses casos em domicílio. Ainda, a falta de condução foi uma das maiores dificuldades, pois o veículo era compartilhado com outros programas do CREAS e com as demais secretarias do município, acarretando atrasos nas visitas domiciliares, na busca ativa por atendimentos.

A falta de abrigo para acolher os usuários vulneráveis faz com que os trabalhadores se sensibilizem e às vezes até ofereçam abrigo na própria casa ou levem alimentos, roupas e sapatos a quem necessita. Ainda mais, algumas vezes, para darem conta do real do trabalho, reúnem contribuições entre os membros da equipe ou solicitam doações da comunidade, como revelado no trecho seguinte: “ (…) a gente não podia expor a família, não podia colocar na pensão, porque o agressor iria procurar, (…) levei para minha casa (…)” (Participante 2).

Os impactos à saúde mental do trabalhador do CREAS são transferidos para a família, que acompanha o trabalho e vivencia as situações de medo. Foi possível notar a ausência de condições laborais adequadas, principalmente em relação à infraestrutura, recursos e equipamentos, constatando-se a inadequação para o desenvolvimento das atividades propostas pela instituição.

As características da atividade expõem os trabalhadores a situações de vulnerabilidade e violência, o que ocasiona medo potencializado pela falta de proteção e vigilância no órgão, que pode sofrer retaliações de agressores revoltados com o serviço, como já ocorreu. Trechos do relato de um participante ilustra esse aspecto: “(…) já entraram aqui e roubaram e quebraram as coisas, passaram fezes na parede, na mesa (…) no computador (…). Deixou a gente muito com o sentimento de impotência mesmo” (Participante 1).

Ter a sua segurança física garantida foi uma preocupação predominantemente presente nos encontros e relatos. Algumas vezes, quando o quadro de trabalhadores não está completo, eles buscam estratégias como encostar o portão ou se sentarem em um lugar de fácil acesso para a saída, pois nunca se sabe o que esperar nos casos de visitas e buscas ativas, segundo expresso a seguir: Só sei que o soco pegou nele e voltou em mim. “(…) escorreu lágrimas nos olhos dele. (…) tentei segurar a porta pra ela não ir pra rua ou fazer algo mais grave com ele. Aí ele ficava sempre com pedaço de pau na mão porque ela agredia ele (…)” (Participante 4). As situações relatadas indicam que o trabalhador vive em constante adrenalina na sua rotina de trabalho, tendo de estar, a todo o momento, sujeito a todos os tipos de vulnerabilidades, inclusive contra si mesmo.

Em muitos casos o Ministério Público é acionado e, então, o CREAS tem de sempre estar pronto para atender as demandas do Judiciário, que estabelece prazos muitas vezes inviáveis de cumprir, tanto pela complexidade do trabalho quanto pela demanda. Isso é expresso no relato do Participante 8: “(…) a gente não está podendo por causa da demanda do Judiciário, não está podendo pegar muito caso, então está indo mais devagar”. Importante observar que muitas vezes os trabalhadores foram obrigados pelo Judiciário a realizarem atividades pertinentes a um técnico da Justiça e, devido à falta deste profissional no município, caracterizando um desvio de função imposto pelo Ministério Público. Tal ação ocasiona, no técnico, desgaste psíquico e emocional, visto que não tem preparo e nem os  materiais necessários para realizar tais atividades.

Frente a essa situação, foram relatados os sentimentos de insegurança e incapacidade, tanto na resolução dos casos quanto em acolher toda a demanda advinda da Rede. Apesar de serem realizadas reuniões e estudos de caso com a Rede, junto à Saúde, Conselho Tutelar e outros, na busca da realização de um trabalho interdisciplinar e contextualizado em casos considerados mais difíceis, os participantes relataram não haver engajamento, cooperação e interesse dos colegas das outras instituições.

Outra dificuldade encontrada pelos profissionais é a falta de um atendimento especializado para o agressor, já que muitas vezes ele é acometido de algum transtorno e precisa de tratamento. No entanto, o CREAS é um órgão de atendimento especializado a vítimas de violência, conforme expresso no relato seguinte: “(…) eu nego atender o agressor, porque a gente atende a vítima. Geralmente vem o marido. (…) veio o pai querendo que eu o escutasse, (…) abusou a vida toda da menina, ele queria vir aqui falar comigo. (…) Eu não saí da minha sala. Não queria que ele visse o meu rosto” (Participante 3).

Como estratégia de defesa operatória contra o sofrimento advindo do medo no trabalho a participante preferiu esconder-se do agressor. Apesar de negarem o contato com o agressor, os participantes consideram que cuidar de um agressor é proteger diversas futuras vítimas, não só a vítima em si, a família da vítima, a família do agressor, o próprio agressor, a sociedade como um todo. A prática puramente punitiva aplicada pelo Direito Penal brasileiro não tem impacto na diminuição da reincidência da violência e tampouco na mudança do comportamento sexual humano.

Centros de educação e reabilitação de agressores estão previstos na Lei Maria da Penha, mas são apenas para agressores restritos da liberdade. Torna-se necessário constituir uma forma organizacional mais dinâmica, articulando as diversas instituições envolvidas. Cuidar de pessoas vulneráveis implica na realização de tarefas agradáveis ou não, levando a sentimento de impotência que gera tensões, angústias, sentimentos fortes e contraditórios, como piedade, compaixão, amor, culpa, ansiedade, ódio e ressentimento.

O sentimento de incapacidade de dar conta das demandas sempre mutantes do trabalho justifica  o fato de o modo de ser dos trabalhadores encontrar-se sob o foco da atenção dos estudos da Psicodinâmica do Trabalho (Lancman & Sznelwar, 2004).

Conforme exposto, as causas apontadas pelos profissionais como geradoras de sofrimento são diversas, relacionadas, principalmente, às condições de trabalho, exigências emocionais e sociais da atividade, além de dificuldades na organização e estruturação do serviço. Foram frequentes sentimentos contraditórios, identificatórios, reações emocionais intensas (revolta, desabafo com amigos, crises de ansiedade e choro), sentimento de impotência e frustração, insatisfação, conflitos interpessoais. Reagiram com atitudes de enfrentamento, caracterizadas por improvisação, passividade e individualismo.

Diante da análise feita e das considerações tecidas, pode-se concluir que a análise psicodinâmica contribui para uma melhor compreensão do significado e das formas de sofrimento psíquico vivenciadas pelos profissionais no trabalho; esta é uma tentativa de fazer com que esse sofrimento revelado na fala do trabalhador seja instrumento de transformação das condições e da organização patologizantes do trabalho, tornando essa atividade profissional equilibrada e saudável para o trabalhador.

Conclusão

O trabalhador, no CREAS, vem encontrando dificuldades em sua prática profissional, decorrentes da falta de sinergia entre as dimensões de ordem estrutural (diretrizes de proteção social no Brasil), particular (a função do serviço na rede local de atenção às vulnerabilidades do território e aos dispositivos de interdependência e ou colaboração do sistema) e singular (organização do serviço). Há a necessidade de mudar as condições de trabalho do profissional do CREAS estudado.

Os profissionais ressaltaram, também, ser necessário haver mais investimentos financeiros por parte do governo em políticas públicas e sociais na área de saúde mental, vindo eles a assegurarem o atendimento às necessidades humanas dos trabalhadores e a eficiência do  serviço institucional.

A constituição do espaço de discussão coletiva favoreceu as análises das condições de trabalho do CREAS, possibilitando desvelar fatores que implicam a promoção da saúde mental dos trabalhadores, conforme proposto na metodologia deste trabalho. Os dados indicam que os trabalhadores mobilizam sua subjetividade para lidar com o sofrimento advindo do trabalho, e mesmo com estratégias de enfrentamento ainda declaram vivências de sofrimento, angústia, impotência, havendo necessidade de ajustes para minimizar o impacto em seu equilíbrio.

Por se tratar de uma organização pública e que possui uma vasta dimensão e diversas outras unidades em todo o território nacional, o CREAS está presente em vários locais no Brasil, entende-se que não se pode afirmar que é uma característica das demais, capaz de ser apenas uma unidade com problemas pontuais, o que fragiliza os resultados. Assim, sugerem[1]se novos estudos nas demais unidades, ampliando o projeto. Outra etapa importante é realizar novas pesquisas, que levem a tratativas peculiares à manutenção da saúde mental dos trabalhadores no CREAS, tendo em vista as características das atividades conforme apresentadas neste estudo.

Referências

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Como citar esse texto

ABNT — CARVALHO, S. M. C., O desafio de trabalhar em uma unidade do CREAS. CadernoS de PsicologiaS, n. 4. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/o-desafio-de-trabalhar-em-uma-unidade-do-creas/. Acesso em: __/__/___.

APA — Carvalho S. M. C. O desafio de trabalhar em uma unidade do CREAS. CadernoS de PsicologiaS, 4. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/o-desafio-de-trabalhar-em-uma-unidade-do-creas/