Sigmund Freud (1856 – 1939) foi um transgressor de muitas das ideias que vigoravam em seu tempo. O autor inicia suas elaborações teóricas imerso em um meio científico fortemente influenciado pelas epistemologias cartesiana, racionalista e iluminista, as quais dedicavam-se ao estudo da consciência. Correntes de pensamento altamente em voga no século XIX, enfatizavam o ser humano enquanto racional, livre, intelectualizado, sempre voltado ao progresso e em busca de uma verdade absoluta. À teoria freudiana, no entanto, era simplesmente incompatível preconizar a racionalidade enquanto principal virtude humana, uma vez que o eu não é senhor em sua própria morada (Freud, 1917/1944, citado por Rivera, 2007). A proposta do inconsciente implica em uma nova concepção de sujeito, o sujeito da Psicanálise: “constituído e movido pelo desejo, sujeito este, que a ciência moderna não sustenta” (Veiga & Berbel, 2019, p. 18). Derruba-se a concepção do sujeito enquanto onipotente em relação ao seu corpo e mente, alguém que conhece a si próprio e possui sob controle seus pensamentos e ações. A “terceira ferida
narcísica” provocada pela Psicanálise na humanidade provoca o sujeito a confrontar-se com evidências da irracionalidade humana e do desconhecimento acerca de si mesmo (Veiga & Berbel, 2019).
A partir da elaboração de um sujeito falho, faltoso, que não possui um conhecimento sobre si e é movido não pela sua razão e intelecto, mas sim por pulsões inconscientes, a Psicanálise depara-se com a resistência, mecanismo de defesa similar à censura que se manifesta obstruindo a compreensão do sujeito acerca de si e de seu funcionamento (Mattos, 2010). De certa forma, há conforto na crença de que estamos no controle, e nada se quer saber acerca da falta, da falha e do desconhecimento de si. Curiosamente, no entanto, há um sujeito que escapa a esse movimento, tendo certeza de sua pequenez: o melancólico. E, segundo Freud, de alguma forma, ele tem razão. Pela via de seu adoecimento, o melancólico constitui-se enquanto um sujeito de certeza acerca de suas faltas e sua insignificância perante o mundo, parecendo aproximar-se de uma compreensão de si (Lapa, 2020). O corpo melancólico é aquele “constantemente comprometido com o perdido, ou ‘com o vazio instalado’” (Naves & Féres-Carneiro, 2007).
A partir deste entendimento, nosso interesse pela melancolia como descrita por Freud foi suscitado. Consequentemente, visando à apreensão do conceito em toda a sua evolução, o presente trabalho aborda as metamorfoses da conceituação da melancolia segundo a perspectiva freudiana, explorando a relação entre esse estado psíquico e o luto. Pretendemos apreender as concepções teóricas por trás da definição da melancolia enquanto decorrente de uma perda, assim como o luto, porém de natureza ideal e a nível inconsciente, na qual não se discerne claramente o quê foi perdido. Desta forma, na melancolia, a perda não culminaria no deslocamento de libido para outro objeto, mas sim em um recuo para o Eu, permitindo a identificação com aquilo que foi perdido.
A análise inclui uma revisão do referencial teórico proposto por Freud, destacando especialmente a evolução e as influências conceituais que delineiam a compreensão da melancolia como uma manifestação patológica do luto. Para contextualizar o conceito em sua evolução histórica, serão analisados os conceitos fundamentais que compõem a teoria freudiana sobre a melancolia, evidenciando as influências mitológicas e psicanalíticas presentes nesse processo. As produções de autores como Laplanche, Pontalis e Garcia-Roza foram utilizadas enquanto aporte teórico às revisões freudianas. Artigos e dissertações contemporâneas também
foram consultados, a fim de ampliar os elementos a serem considerados. Por fim, aborda-se o caso da noiva melancólica, descrito no texto “Luto e Melancolia” (1917), com intuito de ilustrar as teorizações freudianas em um caso atendido pelo mestre da Psicanálise. A partir do resgate dos trabalhos de Freud, visamos enriquecer a compreensão da complexidade da melancolia e sua relação com o luto, oferecendo perspectivas de reflexão sobre a clínica contemporânea dos lutos patológicos.
Em “Luto e Melancolia” (1917), Freud define a melancolia como uma manifestação patológica do luto, cuja natureza se elucida a partir do entendimento deste. Desta forma, o autor busca enunciá-lo, descrevendo-o como uma reação psíquica do sujeito frente à perda do objeto de amor, seja este uma pessoa ou uma abstração. Para Freud, o luto é um fenômeno não patológico, a ser superado com o tempo, no qual ocorre o desinvestimento gradual de libido no objeto amoroso, incluindo as lembranças e expectativas que o envolvem. Neste processo, ocorre uma resistência do sujeito em renunciar à sua posição libidinal, engajando o psiquismo na rememoração do objeto na tentativa de reconstruí-lo. Assim, presente e passado ficam retidos em uma dinâmica dolorosa de esfacelamento de vínculo. A inibição, a ausência e o desinteresse pelo mundo exterior são características do luto, na medida em que o trabalho psíquico interno absorve o Eu. Neste processo, o psiquismo é totalmente engajado na simbolização da perda, e se conclui com a renúncia ao objeto, culminando no retorno da disponibilidade para amar.
Laplanche e Pontalis (1982/2022) descrevem o trabalho do luto enquanto um processo intrapsíquico, consecutivo à perda de um objeto de afeição e pelo qual o sujeito consegue progressivamente desapegar-se dele. O termo “trabalho do luto” foi inaugurado por Freud em “Luto e Melancolia” (1917), demarcando a concepção psicanalítica do luto não enquanto um processo espontâneo ou uma atenuação progressiva, mas sim como o fim de todo um processo interior que implica uma atividade do sujeito, atividade que, aliás, pode fracassar, como mostra a clínica dos lutos patológicos (Laplanche & Pontalis, 1982/2022). Freud dedicou-se a descrever a progressão existente entre o luto normal, os lutos patológicos e a melancolia. A melancolia transpõe o luto patológico a uma etapa suplementar: o Eu identifica-se com o objeto perdido (Laplanche & Pontalis, 1982/2022).
Como aponta Nympha Amaral (2014) em sua tese de doutorado, o conceito de melancolia entrelaça-se com o de mania desde a antiguidade, sendo ambos utilizados de forma acrítica e por vezes infundamentada para caracterizar fenômenos semelhantes, os quais contemporaneamente nomeamos sob esta mesma rubrica. No entanto, segundo Freud, a melancolia enquanto “mal de origem” seria o oposto compensatório da mania. Amaral faz uma análise dos manuscritos de Freud a Fliess visando contextualizar a evolução do conceito ao longo da produção freudiana. Segundo a psicanalista, o Rascunho N, escrito em 1897, traz em embrião o elemento central de sua estruturação desenvolvido posteriormente em 1917:
Neste momento em que está criando o conceito de inconsciente, verificando a condição inconsciente da libido e estabelecendo os mecanismos constituintes da neurose e da psicose, Freud trata amiúde da melancolia, articulando-a com os demais quadros que explorava com frequência, principalmente a neurose obsessiva, a paranoia e a histeria. Ainda no Rascunho N ele aproxima a melancolia da neurose obsessiva, atribuindo àquela o mecanismo de recalque como fundador: “parece que o recalcamento dos impulsos produz não angústia, mas talvez depressão – melancolia” (Amaral, 2014, p. 46).
Até este ponto, portanto, Freud fazia aproximações entre melancolia e neurose, em especial a neurose obsessiva, tendo em vista a exacerbação da consciência moral e o mecanismo do recalque. O “estatuto etiológico” da melancolia continua a evoluir, assim como diversos conceitos ao longo da produção de Freud, conforme o autor estabelece a sexualidade enquanto amálgama de sua teoria e desenvolve a primeira tópica. Em 1899, na Carta 102 a Fliess, Freud delimita claramente a decisiva distância, quase a oposição, entre a neurose obsessiva e a melancolia, apresentando o caso de uma paciente “com a convicção melancólica de que ela não valia nada, era incapaz de fazer qualquer coisa” (Freud, 1899/1980, citado por Amaral, 2014). A certeza da pequenez, característica ao melancólico, se faz visando evitar a dúvida, para que não se entre em angústia: eis a organização do melancólico enquanto um sujeito de certeza (Amaral, 2014). Em “Para Introduzir o Narcisismo” (1914), apesar de afirmar desconhecer as dinâmicas de funcionamento da melancolia, Freud ressalta a identificação enquanto decisiva para o desencadeamento do quadro melancólico (Amaral, 2014).
É somente a partir da incorporação do conceito de narcisismo na formação do Ideal do Eu e das elaborações sobre consciência moral em “Totem e Tabu” (1913) que o conceito de melancolia pôde ser formulado como o foi. Julgamos que tais incorporações foram valiosas, pois permitiram situar a origem de uma instância julgadora e punitiva no psiquismo, bem como a própria constituição do Eu, que em determinado ponto se toma de forma narcísica como objeto de investimento libidinal a partir do discurso parental. A ideia de melancolia se alarga a partir deste ponto, pois passa a ser entendida como um desenvolvimento específico da personalidade dentro de processos comuns a todos os indivíduos.
Crucial ao entendimento de diversos elementos da teoria psicanalítica, entre eles a melancolia, a acepção mitológica em “Totem e Tabu” descreve a gênese da sociedade como a conhecemos. Segundo Freud, a horda primeira era composta por filhos controlados por um pai detentor de todo o poder, violento e que guardava todas as mulheres para si próprio, expulsando seus filhos conforme estes cresciam. Em conjunto, os filhos optaram por assassinar seu pai e devorar seus pedaços. Como explica Garcia-Roza (1995), o pai primevo era não apenas temido e odiado, mas também admirado e invejado pelos filhos. Antropologicamente, o devorar literal representava a incorporação das qualidades do devorado àquele que o ingeria. Portanto, devorar o pai significaria assimilar sua força e seu poder. Na acepção freudiana, o devorar é simbólico, ou seja, é usado de forma a representar o momento de inscrição da Lei paterna através da identificação e da incorporação do pai, que culmina no desenvolvimento do Supereu.
O desfecho do mito usado por Freud é peculiar: a decorrência do assassinato não foi a liberdade e o alívio, como se esperava por parte dos filhos, mas sim o sentimento de culpa, e o pai morto tornou-se mais forte do que fora vivo (Garcia-Roza, 1995). O que até então era proibido pela existência real do pai, passou a ser proibido pelos próprios filhos. Criaram-se os dois tabus fundamentais do totemismo, correspondentes aos desejos recalcados do complexo edípico: o parricídio e o incesto (Garcia-Roza, 1995). Eis o ponto em que Freud localiza a aquisição do sofrimento melancólico:
Assim, esse grande acontecimento da história da humanidade [parricídio do “pai primevo”], que pôs fim à horda primitiva e a substituiu pela fraternidade vitoriosa, daria origem às predisposições da peculiar sucessão de estado de ânimo que reconhecemos como particulares afecções narcisistas ao lado das parafrenias. O luto pelo pai primitivo emana da identificação com ele, e tal identificação provamos ser a condição do mecanismo da melancolia (Freud, 2010, como citado por Amaral, 2014).
Freud justifica a importância da mitologia e antropologia para a Psicanálise, pois afirmava que não somos nós que fazemos os mitos, mas sim os mitos que nos fazem. Nesse caso, o autor considerava intrigante a analogia entre o intuito dos banquetes antropofágicos característicos aos povos nativos e a substituição da escolha de objeto através do mecanismo da identificação (Garcia-Roza, 1995). As propostas antropológicas de Freud são controversas por uma série de razões que não pretendemos explorar neste artigo. Polêmicas à parte, julgamos relevante destacar o papel do simbólico para a Psicanálise, que é representado de forma alegórica nas acepções mitológicas. Aqui, o simbólico é compreendido como o sistema que confere significação às experiências vividas. Portanto, nada é tomado exatamente na literalidade.
Ao evocar narrativas mitológicas, Freud pretende demonstrar de que forma os mitos universalizantes são manifestos no inconsciente, e como são reencenados de forma simbólica por todos. Encenar inconscientemente o mito da horda primeira é internalizar de forma simbólica a figura paterna, sua força, suas características e interdições estabelecidas, em analogia aos povos primevos que realizavam banquetes antropofágicos visando incorporar parte do caráter daqueles que consumiam (Garcia-Roza, 1995).
Em “Totem e Tabu”, o canibalismo proposto por Freud culminaria na identificação do devorador com a pessoa ingerida. Com isso, o autor prenuncia a concepção de identificação narcísica posteriormente desenvolvida em “Luto e Melancolia”. O narcisismo constitui-se como outro conceito-chave à compreensão do conceito, haja vista que “a melancolia toma uma parte de suas características do luto e outra parte da regressão, da escolha de objeto narcísica para o narcisismo” (Freud, 1916/2010, como citado por Amaral, 2014). Anterior ao estágio do narcisismo, o bebê encontra-se submetido ao autoerotismo, não concebendo o próprio corpo enquanto total e uno. Para que essa imagem totalizante se forme e para que o Eu seja constituído, é necessário que a criança adentre o estágio do narcisismo primário. Essa passagem e constituição do Eu têm como matriz o investimento paterno e materno no bebê, extensão dos próprios narcisismos do pai e da mãe (Amaral, 2014).
O discurso dos cuidadores revivesce o narcisismo parental, atribuindo à criança as mais diversas perfeições e concedendo-lhe privilégios que os próprios pais precisaram, um dia,
abandonar. Com isso, forma-se o Ideal do Eu. A partir da falta dos próprios pais, o discurso parental envolve a criança em uma bolha narcísica, atribuindo-lhe características antes mesmo que a criança as possua. Será deste manancial, mais exatamente de seu transbordamento, que se originará o investimento da libido em objetos externos (Amaral, 2014). Este Ideal do Eu é herdeiro do amor narcísico da infância e é de natureza tanto sublimatória quanto sexual-não-sublimada (Amaral, 2014). A partir do momento em que se cria o Ideal do Eu, a criança passa a identificar-se com ele, em certa medida, durante o processo de constituição do Eu.
Em Luto e Melancolia, está postulada uma instância que resulta de uma conjunção entre consciência moral, desenvolvida em “Totem e Tabu”, e Ideal do Eu, explicado em “Para Introduzir o Narcisismo”: a herança do Pai no sujeito (Amaral, 2014). O texto “Luto e Melancolia” representa o encontro e a articulação entre as teorizações freudianas sobre moral e narcisismo no que tange a questão da existência de uma instância crítica ideal. Além disso, decorre das reflexões sobre o lugar do objeto na organização psíquica, deixando “entrever os impasses entre a libido e a ainda então não postulada pulsão de morte” (Amaral, 2014). A internalização simbólica da figura paterna no sujeito, característica à neurose (haja vista a não inscrição paterna em casos de psicose) permite, neste ponto, aproximações entre melancolia e as neuroses.
A melancolia em sua definição freudiana “final” e o caso da noiva melancólica Feitas essas considerações, podemos chegar ao conceito em sua forma final, postulado por Freud em 1917. Assim como o luto, a melancolia decorre de uma perda, mas de natureza ideal e a nível inconsciente, na qual não se discerne claramente o quê foi perdido. Desta forma, a perda não culmina no deslocamento de libido para outro objeto, mas em um recuo para o Eu, permitindo a identificação com aquilo que foi perdido. Neste quadro clínico, a ambivalência diante da perda é nítida. Amor e ódio são componentes centrais desta dinâmica inconsciente, lutando para desligar e manter o objeto ao mesmo tempo. Segundo Freud (1917), o ódio atua no objeto substitutivo em forma de insultos e rebaixamentos, como se o sujeito buscasse se vingar, por intermédio da doença, do objeto amoroso. Assim, pela dificuldade e pela intensidade do investimento amoroso, “parte do investimento [libidinal] regride ao narcisismo e parte ao sadismo” (Freud, 1917). O resultado disso é a experimentação das ofensas como autoimagem e realidade de si, chegando à expectativa delirante de punição (Freud, 1917). Em 1923, na medida em que Freud formula a segunda tópica, o Eu do melancólico passa a ser compreendido enquanto alvo exacerbado das exigências do severo Supereu. Com isso, o sujeito constrói certeza acerca de sua incurabilidade, imprestabilidade e perdição (Lustoza, 2018).
Neste fenômeno, portanto, o laço afetivo em questão é ser o objeto. Assim, não se necessita abandonar a relação amorosa, pois a substituição do amor objetal se dá pela identificação apesar do conflito com aquilo que se ama. Por esta razão, Otto Rank (citado por Freud, 1917/2006), afirma haver uma escolha objetal de base narcísica nesse quadro. A partir deste momento na Psicanálise, a melancolia parecia aproximar-se com concretude de uma condição clínica dentro da psicose. Nisso destacava-se o retorno do recalque no real, de forma que o indivíduo não mais parecia ser o autor das suas representações, pois aquilo que é abolido retorna de fora, como se não pertencesse a ele.
A especificidade em relação ao luto reside na destruição da autoestima. O trabalho interno consome o Eu, que se torna pobre e vazio, vivendo em um delírio de pequenez. Esta forma patológica de luto funciona como uma ferida aberta que atrai completamente a energia de investimento de todos os lados. A insônia e a anorexia, sintomas característicos de alguns casos, podem aí encontrar sua gênese. No texto, Freud adiciona que a melancolia tende a se transformar em mania, estado com sintomas opostos. O autor supõe, ciente dos limites da teoria, que a alegria e o regozijo vêm do triunfo sobre o objeto, como se o Eu o superasse e a energia direcionada a ele se tornasse disponível novamente. A razão para esta alegria, entretanto, permanece oculta. Os dois estados podem se intercalar periodicamente, produzindo um quadro de loucura cíclica.
Por fim, no que concerne ao debate estrutural referente à melancolia, Freud não a situa nem enquanto exclusiva à neurose, tampouco à psicose. O autor opta por uma terceira via, a fim de vencer a dualidade empobrecedora entre neurose e psicose (Rochel, 2018), enquadrando a melancolia no campo da neurose narcisista: “nem simplesmente neurose, nem simplesmente psicose, mas uma maneira de estar no mundo sem a reclusão do louco, sem o repúdio radical à realidade externa, como também sem a entrega e a submissão aos imperativos do Outro” (Peres, 2011, citado por Rochel, 2018, p. 202-203). Tal afirmação suscita inquietações no campo psicanalítico. Desta forma, autores posteriores a Freud elaboram suas teorias tanto na direção concordante, quanto na contrária no que diz respeito à estrutura por detrás da melancolia.
Freud (1917/2006) cita em seu texto um exemplo representativo do quadro: uma noiva melancólica que foi abandonada. Seu noivo deixou de existir ou foi perdido como objeto de amor, mas a noiva permaneceu identificada à perda. Algo de seu Eu ficará para sempre perdido, precipitando a morte do desejo. Diferentemente do luto, a perda na condição melancólica não é exterior ao sujeito, ela se presentifica no coração do Eu. Ocorre então a particular dificuldade na cicatrização, estando o melancólico identificado à perda em si, mantendo uma ferida aberta. Segundo Freud, a melancolia difere-se do luto pois nela há dúvida sobre o que foi retirado da consciência: daí sua aparência enigmática. No luto, não há nada de inconsciente no que se refere à perda (Freud, 1917, apud Rochel, 2018, p. 203). Já na melancolia, muito do que concerne a perda é inconsciente. Através da noção de identificação narcísica, Freud põe a melancolia como parte do Eu identificada ao objeto perdido e se torna a própria perda em si.
Dessa forma, ocorre na noiva uma recusa em perder/renunciar o objeto amoroso, assim, o mantém identificado ao Eu. Poderia também, de certa forma, a noiva se autorrecriminar por ser abandonada e ter perdido o objeto de amor. Pensamentos ilustrados no caso, como “eu sou horrível”, “sou uma péssima esposa”, “não fui suficiente”, característicos ao melancólico, ilustram o sujeito que trata a si mesmo como objeto, dirigindo a si a hostilidade que sente pelo objeto ao qual recusa-se renunciar. Eis um retrato da ambivalência entre amor e ódio. Conforme Lustoza, “eis um sujeito que não espera que mais nada de bom lhe aconteça; não porque o mundo seja fundamentalmente mau, mas porque a nocividade residiria no próprio Eu” [grifo original] (Lustoza, 2018).
No exemplo de Freud, não ocorre necessariamente a morte do objeto, mas sim uma perda do objeto de amor, seja pela morte ou por abandono, afastamento, assim por diante. Essa perda do melancólico consiste em uma falta que não é elaborada no plano simbólico, e por isso retorna no real como uma perda do Eu. Faz com que, neste ponto, a melancolia se aproxime do campo da psicose, na medida em que não se sabe conscientemente o quê foi perdido. Isto é justificado por autores como Garcia-Roza a partir da articulação entre ideal do Eu e Eu ideal:
“Acontece que o melancólico não consegue constituir um Eu ideal articulado ao ideal do Eu (Supereu), como assim fazem os neuróticos, porque simplesmente o ideal do Eu não existe. Dito de uma outra forma, “o que no luto era uma perda de objeto, na melancolia transforma-se em perda do Eu” (Garcia-Roza, 1995, p. 76).
Tendo a si próprio enquanto o único responsável por seus sofrimentos, o melancólico receia ser uma presença prejudicial àqueles ao seu redor, teme atrair ruína, desonra e morte devido a seus erros, limitações e renúncias (Séglas, 1895, citado por Lustoza, 2018). A despeito do pessimismo característico ao pensamento melancólico, faz-se crucial considerar que “não se trata simplesmente de esperar resignadamente o advento do pior, mas de tomar o Eu como sendo o ponto de origem a partir do qual todos os infortúnios são gerados” (Lustoza, 2018, p. 131). Eis a diferenciação entre um sujeito neurótico e puramente pessimista, de um sujeito melancólico. Desta forma, contrariando as noções de Eu ideal e ideal do Eu, o melancólico coloca-se na contramão das perfeições que muitos sujeitos atribuem a si próprios, utilizando-se de mecanismos de defesa como a resistência para involucrar o Eu em uma bolha narcísica. Enquanto um sujeito de certeza, o melancólico reconhece sua pequenez e sofre em decorrência dela.
Os resultados da análise bibliográfica e da evolução do conceito indicam que a melancolia, segundo a perspectiva freudiana, é uma manifestação psicopatológica que se origina a partir da relação entre a perda de um objeto de amor e a consequente identificação narcísica com esse objeto. Diferentemente do luto, no qual ocorre o desinvestimento gradual de libido no objeto amoroso perdido, na melancolia há um recuo da libido para o Eu, resultando em uma identificação com o objeto perdido. O processo melancólico é marcado por uma ambivalência entre amor e ódio em relação ao objeto perdido. O ódio é direcionado ao objeto substitutivo, manifestando-se em forma de insultos e rebaixamentos, como uma busca por vingança em relação ao objeto amoroso. Esse conflito intenso e a dificuldade de desligar-se do objeto amoroso levam ao retorno da libido ao narcisismo e ao sadismo, manifestando-se na autodepreciação e na expectativa delirante de punição.
Desempenhando papel crucial na melancolia, a identificação narcísica leva o sujeito a manter uma ligação íntima com o objeto perdido, mesmo diante do conflito e da ambivalência. Essa condição clínica se caracteriza por uma ferida aberta que atrai completamente a energia de investimento. A presença do narcisismo na constituição da melancolia ressalta a importância do desenvolvimento saudável do narcisismo primário na infância. Considera-se a identificação narcísica enquanto um mecanismo que permite a formação do Ideal do Eu. Para uma concepção
que coloca a melancolia no campo da psicose, a melancolia decorreria em perturbações na identificação, conturbações no desenvolvimento do Eu idealizado e na possível ocorrência de uma falha na integração psíquica. Essa falha resultaria na obstinação de uma ferida psíquica aberta, levando à experiência persistente de culpa, diminuição da autoestima e desvalorização do Eu.
A ambivalência emocional presente na melancolia, caracterizada pelo conflito entre amor e ódio em relação ao objeto perdido, revela a profundidade da relação emocional e a complexidade da dinâmica psíquica envolvida. Essa ambivalência contribui para a manutenção da ligação afetiva com o objeto, mesmo após a perda, e cria entraves na elaboração simbólica da falta.
Segundo a perspectiva freudiana, enquanto estado psíquico desafiador e doloroso, a melancolia oferece percepções valiosas para a compreensão das complexas interações entre perda, narcisismo e identificação. Essa análise reforça a relevância de compreender a melancolia não apenas como uma condição psíquica individual, mas também como um fenômeno que traz à tona questões essenciais sobre a natureza estrutural do aparelho psíquico e a complexidade de suas dinâmicas.
Importante destacar que o enlace entre psicose e melancolia proposto por Freud será posteriormente revisto e questionado por diversos psicanalistas, inclusive por ele próprio. A produção freudiana sempre esteve suscetível a revisões e transformações, seja por Freud ou outros autores. Jacques Lacan é um dos autores que, em consonância com o estruturalismo por ele defendido, mantém a melancolia no campo das psicoses, enquanto o próprio Freud e contemporâneos como Naves e Féres-Carneiro (2007) enfatizam a relação entre melancolia e a neurose narcísica. O presente trabalho objetiva resgatar e discorrer sobre o histórico do conceito de melancolia conforme o proposto por Freud, sem pretensões de adentrar os debates posteriores do enquadre da melancolia em estruturas psicóticas e/ou neuróticas. No entanto, considerando a ênfase aqui dada às elaborações teóricas freudianas, e sendo que, em diversos momentos, Freud aproximou a melancolia tanto da psicose quanto da neurose, optamos por mencionar tais aproximações, sem no entanto dá-las enquanto certas. Por mais que Freud tenha situado a melancolia em uma terceira via, a neurose narcísica, as contribuições posteriores de autores como Lacan nos oferecem ricas perspectivas acerca das estruturas e fenômenos elementares da psicose, além de sua possível aproximação com a melancolia. Ademais, o texto freudiano “Luto e Melancolia” traz à tona a questão das escolhas objetais, as quais posteriormente serão alvo de brilhantes elaborações por psicanalistas como Melanie Klein (Rochel, 2018).
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