#Estilhaços
Foi dentro da compreensão Desse instante solitário Que, tal sua construção Cresceu também o operário. […] Razão porém que fizera Em operário construído O operário em construção. (Moraes, 1959)
O que melhor caracteriza um operário senão a exaustão?
Depois de cinco anos de graduação, e ainda cursando uma especialização, penso que nunca houve dúvida sobre a existência de um trabalho interminável que me aguardava no percurso de formação enquanto psicóloga. Independente de quais estágios eu fizesse ou qual abordagem decidisse seguir, sabia que haveria muito trabalho pela frente. Trabalho de escuta, leitura, estudo, aperfeiçoamento, treinamento, observação. Há também o trabalho na análise. É importante reconhecer o investimento de um trabalho interno, necessário para nos prepararmos para o exercício da função. Lembro aqui que entre os conselhos de Contardo Calligaris (2021) para os jovens terapeutas, está a coragem de fazer valer os próprios desejos, para que assim seja possível ajudar alguém a querer o mesmo, afinal, nos propomos a ser agentes de transmissão de uma ciência que se faz a partir da subjetividade – ou seja, nos apropriamos de quem somos para criar um processo de trabalho. Seguimos sendo trabalhadores – ou talvez, operários.
Esse fato extraordinário:
Que o operário faz a coisa
E a coisa faz o operário.
(Moraes, 1959)
É claro que a ideia de um trabalho cuidadoso e bem executado não é exclusiva da nossa categoria. Tratar do outro, em qualquer aspecto de sua singularidade, exige dedicação e comprometimento ético. Além disso, quando falamos de trabalho, atravessamos também uma discussão moral sobre a supervalorização da produtividade, intrínseca às gerações concebidas na era do capital. Asa Cristina Laurell (1979) nos diz que podemos ver com maior clareza a forma como o trabalho ocupa a centralidade na organização social quando percebemos que qualquer planejamento, desejo ou escolha que cerceia nossas vidas passa, necessariamente, por uma conciliação com o trabalho – quando não é ele próprio o objeto dos nossos anseios.
Ainda assim, acredito que compartilhamos uma admiração profunda pela transformação individual e coletiva que a psicologia é capaz de promover. Roberta Baccarim (2022) escreveu à esta revista: “Considero todas(os/es) as(os/es) psicólogas(os/es) pessoas afetadas.” De fato, sustentar afetos e desafetos não é tarefa fácil. Orquestrar o bom ouvinte ao mau entendedor é a função de quem não pode deixar que se esgote o desejo de reelaborar aquilo que está sempre em construção. Mas de qual psicologia falamos quando, inseridos nas instituições, nos vemos como engrenagem de um sistema esmagador? Como perpetuar o fascínio pela prática quando nossos esforços não são suficientes para sustentá-la? Além das atribuições que nos unem, partilhamos dos mesmos cansaços?
Atualmente, sigo minha jornada como residente em um programa de atenção básica/saúde da família. O município onde atuo é de médio porte. O meu território de abrangência, especificamente, atende uma população adscrita com cerca de 7.000 pessoas. Não existem equipes multiprofissionais disponíveis para todas as Unidades de Saúde, e por vezes, os residentes são a maioria nos serviços. Não temos ambulatórios de saúde mental e a nossa rede tem “buracos”. Quase que diariamente recebo solicitações de outras equipes que não possuem recursos para oferecer assistência à pessoas em sofrimento psíquico. Cabe aqui argumentar sobre o matriciamento e a educação em saúde, mas é preciso assumir que as demandas de saúde mental acabam sempre concentradas em nós. Assim como eu, a minha instituição ainda caminha em meio aos erros e acertos.
O trabalho na ponta (ou no chão de fábrica) é frequentemente marcado pela precariedade das condições. Não esperávamos o glamour dos divãs, mas certamente surpreende a exaustão coletiva que encontramos. E como poderia ser diferente? Aprendemos na graduação que as psicoterapias são práticas ideais para o consultório privado, implicitamente restritas à elite. No SUS, primeiro nos interessa saber se as pessoas que conseguem chegar ao consultório podem acessar condições de vida dignas, muito antes de recomendar algum setting terapêutico. Ao operar essas dinâmicas, nos esquivamos das armadilhas de um trabalho adoecedor, que se vale da responsabilização individual e da especialidade como fator determinante para um tratamento de sucesso, como se já não estivessemos apoiados em políticas públicas insuficientes – e reconheço esse como o nosso modus operandi. Sobrevivemos da reinvenção de recursos, e também da esperança de dias melhores. Ao menos não estamos sozinhos na esteira de produção. Seguimos sendo trabalhadores – ou melhor, operários. Porque nos sentimos assim – esgotados, consumidos, desgastados.
Na grande maioria das vezes em que recorri às revistas, livros e aulas para procurar respostas, acabei encontrando novas perguntas. O mesmo acontece aqui. O encontro com os pares talvez seja uma oportunidade para seguir fazendo perguntas sobre as práticas que ainda não alcançamos, sobre os percalços que não conhecemos e também sobre o que sonhos que ainda podemos aspirar.
Tudo, tudo o que existia Era ele quem o fazia Ele, um humilde operário Um operário que sabia Exercer a profissão. (Moraes, 1959)
Baccarim, R. C. G. (2022). A psicologia é afetada, antimanicomial e feminista. CadernoS de PsicologiaS, 3. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/a-psicologia-e-afetada-antimanicomial-e-feminista/
Calligaris, C. (2021). Cartas a um jovem terapeuta: Reflexões para psicoterapeutas, aspirantes e curiosos. Editora Paidós, 1.
Laurell, A. C. (1979). Trabalho e Saúde no México. Tradução: Fernando Farias/Coletivo Saúde Camarada, 2024. Recuperado de: https://drive.google.com/drive/folders/1wW_b6u1i2bXnDPIdsWgtZYatKERDe7dD
Moraes, V. (1959). O operário em construção. Recuperado de: https://www.viniciusdemoraes.com.br/pt-br/poesia/poesias-avulsas/o-operario-em-construcao
ABNT — ROSS, G. dos S.; MOURA, C. S. de. O psicólogo em construção. CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/o-psicologo-em-construcao/. Acesso em: __/__/___.
APA — Ross, G. dos S., & Moura, C. S. de. (2024). O psicólogo em construção. CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/o-psicologo-em-construcao/