Resumo: O trabalho dentro do ambiente hospitalar permite o encontro com pacientes diferentes dos atendidos em uma clínica, onde se busca o trabalho psicológico. Esses dão entrada no hospital por conta do adoecimento do corpo. Logo, o que impera dentro desse contexto é a lógica biologicista. Durante o processo de residência foram realizados atendimentos psicológicos com pacientes de diferentes especialidades, Cardiologia, Onco-Hematologia e Neurologia, tanto em modelo de internação quanto ambulatorial. A partir da escuta desses pacientes, observa-se que o adoecimento está além daquilo que é visto fisicamente, mas que faz parte do sujeito, de sua história. Por conta disso, busca-se compreender a influência de fatores psicológicos no adoecimento do corpo pela perspectiva psicanalítica. O corporal em Psicanálise apresenta diferentes vertentes, e, para esta discussão optou-se pelo olhar da somatização, que parte de um dos conceitos fundamentais dessa abordagem: a pulsão.
Palavras-chave: Corpo; pulsão; psicanálise.
WHAT LEADS THE BODY TO SPEAK: EXPERIENCE REPORT
Abstract: Working in a hospital environment allows the encounter with patients who are different from those seen in a clinic, where psychological work is sought. These patients are admitted to the hospital because their bodies are ill. Therefore, what prevails within this context is the biologicist logic. During the residency process, psychological consultations were carried out with patients from different specialties, Cardiology, Onco-Hematology, and Neurology, both in the inpatient and outpatient models. By listening to these patients, it is observed that illness is beyond what is seen physically, but that it is part of the subject, of his or her history. Because of this, we seek to understand the influence of psychological factors on the illness of the body from a psychoanalytic perspective. The body in Psychoanalysis presents different aspects, and, for this discussion, we have chosen the somatization view, which is based on one of the fundamental concepts of this approach: the instinct.
Keywords: Body; instinct; psychoanalysis.
LO QUE HACE HABLAR AL CUERPO: INFORME DE UNA EXPERIENCIA
Resumen: Trabajar en un entorno hospitalario nos permite conocer a pacientes diferentes de los que se ven en una clínica, donde se busca el trabajo psicológico. Estos pacientes ingresan en el hospital debido a una enfermedad del organismo. Por lo tanto, lo que prevalece en este contexto es la lógica biologicista. Durante el proceso de residencia se realizaron consultas psicológicas con pacientes de diferentes especialidades, Cardiología, Onco-Hematología y Neurología, tanto en el modelo de hospitalización como ambulatorio. A partir de la escucha de estos pacientes, se observa que la enfermedad está más allá de lo que se ve físicamente, sino que forma parte del sujeto, de su historia. Por ello, tratamos de comprender la influencia de los factores psicológicos en la enfermedad del cuerpo desde una perspectiva psicoanalítica. El cuerpo en Psicoanálisis tiene diferentes aspectos, y, para esta discusión, hemos elegido analizar la somatización, que se basa en uno de los conceptos fundamentales de este enfoque: la pulsión.
Palabras-clave: Cuerpo; pulsión; psicoanálisis.
Introdução
A música de Milton Nascimento e Chico Buarque, “O que será (à flor da pele)”, traz um importante diálogo entre o corpo e o psíquico. Durante toda a música, a pergunta “O que será que me dá?” aparece como um questionamento sobre o que há com esse corpo, que demonstra diferentes sensações de ordem inconsciente como: aquilo que brota à flor da pele, faz a face corar, aperta o peito, perturba o sono, causa tremores, fazem os órgãos aclamarem…
Esse questionamento “O que será que me dá?”, pode ser pensado dentro do contexto hospitalar. O paciente, que se vê com um mal estar orgânico e/ou internado, dirige essa pergunta ao médico, na tentativa de compreender o que está acontecendo consigo mesmo. Uma equipe inicia uma investigação atrás de um diagnóstico para esse doente e tentativas de reabilitar as funções orgânicas que encontram-se adoecidas. Dentro da cena hospitalar, Simonetti (2015), afirma que a lógica que opera é a da racionalidade científica, a qual se baseia na clareza, universalidade e no padrão.
A Psicanálise tende a se afastar da visão biologicista que se opera dentro do contexto hospitalar, assim como, de uma compreensão psicobiológica acerca do paciente. (Elia, 1995) Neste artigo, ao utilizar esta abordagem, busca-se pensar no corpo e no adoecimento diferentemente da ordem médica. Simonetti (2015), traz que o corpo e o físico se apresentam de formas distintas, sendo que para a medicina isto não acontece. O corpo, na perspectiva psicanalítica, compreende a representação que o sujeito tem sobre si em relação ao seu corpo, indo além do biologismo que circunda a área médica. Entende-se que o adoecimento não se iniciou por uma alteração corpórea, a doença lhe pertence, não surge de fora, mas de algo que diz respeito ao próprio sujeito.
Gori (1998), pela perspetiva de Canguilhem, a “doença do doente”, coloca que um acontecimento somático se inscreve no campo da fala e da linguagem e que diz respeito a esse sujeito. A queixa corporal, direcionada ao médico, que o paciente transmite está de acordo com a construção imaginária que tem de si e de sua doença. Ao escutar sobre o que trouxe o paciente ao hospital, observa-se que a forma como o paciente verbaliza sobre o que dói, o que está incomodando, tem relação com as representações de sua história.
Existem diversos aspectos que podem influenciar no aparecimento de uma doença, fatores genéticos, alimentação, estilo de vida, entre outros. Porém, o foco deste artigo é investigar a influência de fatores psicológicos no adoecimento orgânico pela perspectiva psicanalítica. Na residência houve a possibilidade de realizar a escuta de pacientes internados e em modo ambulatorial, cada encontro teve sua singularidade, suas associações e percepções em relação a si. Com isso, levantou-se o questionamento sobre o aparecimento de diferentes experiências em que o enfermo correlaciona sua doença com vivências anteriores.
Jurkiewicz (2008), em sua tese sobre “Vivências de perda” dentro do ambiente hospitalar, identificou através assistência psicológica em pacientes internados que alguns traziam em seu discurso recordações de familiares e amigos próximos falecidos, separações conjugais, problemas financeiros, dificuldades nos relacionamentos interpessoais, entre outros. Também expressa que, em alguns casos, os pacientes correlacionavam a manifestação das doenças orgânicas com esses acontecimentos anteriores. A autora ainda traz os eventos significativos que apareceram com maior predominância durante o período em que o paciente permaneceu no hospital, morte de familiares manifestou-se com maior frequência na amostra estudada, seguido pela separação de familiares, doença na família, acidente familiar, perda na situação de trabalho, dificuldades financeiras e acidente de carro.
Para este artigo, foi pensando em realizar um relato de experiência voltado para essa discussão, corpo e mente, pelo olhar psicanalítico. Para isso, serão apresentados alguns casos que puderam ser vivenciados durante o processo de residência nos setores da Cardiologia, Oncologia e Neurologia. Ao final dessa leitura, espera-se que seja possível uma reflexão em relação à temática corpo e psíquico.
O artigo trata de um relato de experiência do trabalho psicológico dentro do ambiente hospitalar. Este método de pesquisa possibilita a concepção de uma “narrativa científica, especialmente no campo das pesquisas capazes de englobar processos e produções subjetivas.” (Daltro & Faria, 2019, p. 224)
Esse modelo de pesquisa permite traduzir um conjunto de ideias observadas e armazenadas na memória pelo observador, através de reflexões e associações deste, oferecendo um ponto de vista sobre o material coletado com o auxílio da abordagem psicanalítica. (Daltro & Faria, 2019) Ou seja, através dos atendimentos realizados e do material coletado foi possível abordar reflexões da autora embasadas nesta teoria.
Os fragmentos utilizados foram retirados das anotações pessoais da psicóloga referente aos atendimentos dos pacientes internados e, também, que realizaram acompanhamento ambulatorial nas especialidades Cardiovascular, Neurologia e Onco-Hematologia. Foi escolhido abordar sobre a passagem por todas as especialidades durante o período de residência para se ter uma experiência mais abrangente em relação a temática em diferentes setores, e, analisar similaridades e singularidades de cada ambiente e dos indivíduos neles inseridos. Por se tratar de um relato de experiência foram retirados fragmentos dos atendimentos realizados, onde prevaleceu uma análise da psicóloga sobre a temática do corpo e psiquismo, recaindo “sobre a qualidade da experiência vivenciada”. (Almeida & Portela, p. 3, 2020) Dentro do ambiente hospitalar, as possibilidades de realizar uma análise mais aprofundadas sobre os casos demonstram-se em menor quantidade devido à alta rotatividade de pacientes. Por essa razão, a discussão que se segue são hipóteses acerca da temática abordada, e não dos casos em si.
A coleta do material foi realizada durante o período de residência nos anos de 2021 e 2022, em um hospital universitário localizado em uma cidade do Paraná, através da escuta psicológica dos pacientes. Dentro do hospital, o trabalho do psicólogo se dá de uma forma diferente da convencional, isto é, daquela que se dá dentro de um consultório, com horário marcado, com privacidade e apenas entre o psicólogo e o paciente. No ambiente hospitalar, o profissional de Psicologia oferta a escuta ao paciente que encontra-se internado, e o atende à beira leito. Quando o paciente comparece para uma sessão de quimioterapia, o atendimento se dá durante esse processo. Alguns encontros ocorreram apenas uma vez, outros se prolongaram por semanas e até meses. Também houve a possibilidade do acompanhamento ambulatorial daqueles pacientes que desejavam continuar os atendimentos para além desses períodos.
O trabalho de escuta realizado tem como fundamentos a Psicanálise, assim como a análise e discussão do material coletado será baseado nesta abordagem. Ressalta-se, aqui, que os dados pertinentes para esta pesquisa ocorreram conforme o direcionamento dos pacientes durante os atendimentos através da associação livre, conceito fundado por Freud. Segundo o Laplanche e Pontalis (2001), esse termo é compreendido como um “método que consiste em exprimir indiscriminadamente todos os pensamentos que ocorrem no espírito, quer a partir de um elemento dado (palavra número, imagem de um sonho, qualquer representação) quer de forma espontânea” (p.38). Através disso, Freud ao criar esse modo de atendimento possibilitou o contato com a subjetividade de cada paciente, ou seja, com aquelas ideias que estão inconscientes.
Os atendimentos psicológicos foram transcritos após sua finalização, segundo Freud (1912), no texto “Recomendações aos médicos que exercem Psicanálise”, durante o período junto ao paciente é importante que se mantenha a “atenção uniformemente suspensa”. Para o autor quando se concentra em um ponto específico algo importante pode ser perdido:
[…] assim que alguém deliberadamente concentra bastante a atenção, começa a selecionar o material que lhe é apresentado; um ponto fixar-se-á em sua mente com clareza particular e algum outro será, correspondentemente, negligenciado, e, ao fazer essa seleção, estará seguindo suas expectativas ou inclinações. Isto, contudo, é exatamente o que não deve ser feito. (Freud, 1912, p. 127)
Ao revelar que selecionar conteúdos durante os atendimentos seja através de anotações ou atenção seletiva, Freud (1913/1996) afirmou que corre-se o risco de não descobrir nada além daquilo do que já se sabe, daquilo que está consciente. Para esta pesquisa, buscou-se priorizar o trabalho clínico dentro do hospital. Sendo assim, os conteúdos selecionados foram coletados pela releitura das anotações pessoais da psicóloga. Nos resultados e discussão a seguir serão utilizados nomes fictícios para preservar o direito de sigilo do paciente presente no Código de Ética Profissional do Psicólogo do Conselho Federal de Psicologia (CFP), de acordo com esse manual “é dever do psicólogo respeitar o sigilo profissional a fim de proteger, por meio de confidencialidade, a intimidade das pessoas, grupos ou organizações, a que tenha acesso no exercício profissional”. (CFP, 2005, p. 13)
Em um dos momentos iniciais dentro da residência, foi atendido um paciente, que, aqui, será chamado de Ernesto. Este encontrava-se com 80 anos, era casado, tinha dois filhos (um havia falecido), era aposentado e residia em uma cidade no interior do Paraná. O paciente foi internado duas vezes durante o período de residência, ambas as internações decorrentes de uma insuficiência cardíaca, porém em sua história clínica houveram outros internamentos pelo mesmo problema.
Ernesto, ao contar sua história, revelou que foi militar, e, durante a maior parte de sua vida seguiu essa carreira. Nesse momento o paciente verbalizou: “eu tive que fazer muita coisa que não queria, vi muita coisa que não queria” (sic.), acompanhado dessa fala as lágrimas começavam a cair e o monitor apontava que seus batimentos estavam elevados. Em outro momento do atendimento, quando o paciente começa a falar do filho falecido, esse mesmo processo se iniciava. Ele conta que os dois realizavam diversas atividades juntos, principalmente, pescaria, a qual o paciente não consegue mais realizar por lembrar dos momentos com o familiar. O que chamou atenção ao final do atendimento com Ernesto, foi sua fala de conclusão “é, aconteceu tanta coisa comigo que meu coração ficou enfraquecido” (sic.).
Este caso foi o ponto de partida para traçar uma linha de pensamento para esta pesquisa, quando Ernesto verbalizou suas últimas palavras do atendimento, notou-se que o paciente fez uma correlação do seu problema orgânico com algumas experiências de sua história pregressa, a qual é acompanhada de conteúdos subjetivos do enfermo.
O diagnóstico desse paciente foi de Insuficiência Cardíaca (IC), que segundo a Sociedade Brasileira de Cardiologia (2018), é representada pela incapacidade do coração em bombear sangue para contribuir com as necessidades metabólicas completas do organismo. Essa condição caracteriza-se pela “redução no débito cardíaco e/ou das elevadas pressões de enchimento no repouso ou no esforço.” (p. 442) Alguns de seus sintomas são: falta de ar, ortopneia, fadiga, cansaço, entre outros.
A interpretação que o paciente fez para seu coração foi que se encontra “enfraquecido” (sic.), e, levando em consideração o conceito de IC, pode-se interrogar que existe um enfraquecimento das funções do coração. Nesse caso, a indagação que se faz quando o enfermo verbaliza as últimas frases do atendimento, por parte da psicóloga, é: o corpo pode produzir resposta ao sofrimento psíquico do paciente?
No decorrer da residência foi possível perceber que em outros casos atendidos esse discurso também aparecia. Para ampliar a discussão deste artigo, serão apresentados, a seguir, outros pacientes que trouxeram essa relação do psíquico e o corpo.
Uma paciente que deu entrada no setor de Neurologia, chamada de forma fictícia de Maria, foi internada com protocolo de Acidente Vascular Cerebral (AVC). Junto com este diagnóstico, também apresentava como comorbidade hipertensão. Durante o atendimento com a Psicologia, em determinado momento a paciente verbalizou que sua filha havia falecido há dois meses, de morte súbita por conta de sua hipertensão. Maria expressou frases como: “depois que minha filha faleceu comecei a ter problemas que eu não tinha” (sic.), referindo-se a sua hipertensão e seu episódio de AVC, e, ao falar de seu sofrimento psíquico em relação à filha, “meu coração está em pedaços, parece que estou me derramando” (sic.).
Ao explorar sobre o termo AVC nas plataformas de pesquisa, um termo popular que pode ser encontrado é o derrame. A paciente utilizou-se do termo “derramando” para expressar o que estava sentindo, assim como a hipertensão que começou a apresentar depois do falecimento da filha, a qual faleceu do mesmo diagnóstico que, agora, Maria apresenta. É possível levantar, novamente, a hipótese de que os eventos abordados pela paciente estejam associados com sua condição atual.
Outra paciente iniciou o tratamento quimioterápico de forma ambulatorial no setor de Onco-Hematologia. Os atendimentos aconteciam durante o processo de medicação intravenosa. Durante os atendimentos com Priscila, ela verbalizou sobre sua história de vida. Passou por um relacionamento conflituoso com a mãe, seguido de um abandono. Junto com a irmã, transitou pelas casas de tios, tias, avós, pessoas da sua família, fazendo trabalhos diários para conseguir roupas e alimentos. Priscila sempre tentou uma reaproximação com sua mãe, mas os contatos eram breves e distantes. O relacionamento com a família do marido “nunca foi fácil” (sic.), segundo a paciente, vivia sob as memórias de uma ex-noiva, demoraram anos até que pudesse se inserir na família, utilizando de métodos que aprendeu na infância, pelos afazeres domésticos. Priscila expressa em certa altura que “tudo sempre foi muito difícil para
mim, durante toda minha vida nada foi fácil, quando achei que finalmente seria, veio esse câncer” (sic.). Hoje, a paciente se encontra com um câncer agressivo e sem cura. Passou por diferentes quimioterapias e nenhuma delas consegue conter o avanço da doença. O câncer seria mais um episódio difícil, uma repetição na vida da paciente?
Psicossomática, conversão histérica, sintoma, inibição, hipocondríaca…A temática do corpo no campo psicanalítico segue diferentes caminhos, cada vertente terá um olhar, uma forma de analisar o corpo. A discussão deste artigo será voltada para a somatização, Dunker (2006), caracteriza essa linha investigativa pela:
“presença de uma alteração orgânica induzida pelo efeito continuado da angústia ou ansiedade sob o sistema adrenérgico. A tese é de que haveria uma etiologia indiret das manifestações somáticas, uma alteração na economia da angústia tem efeitos sobre um sistema, que se polarizam em um determinado órgão.” (n.p.)
Essa terminologia considera o sistema imunológico, o sistema simpático e parassimpático, o sistema nervoso central (SNC) e a economia da neurotransmissão. Além de levar em consideração manifestações corporais que estão correlacionadas com alguma atividade psíquica, desenvolvendo uma determinada doença. Dunker (2006), afirma que é comum que a ocorrência dessas manifestações corporais seja persistente, que apresente-se como algo repetitivo, crônico e que tenha baixa responsividade ao tratamento médico.
O primeiro paciente citado acima apresenta um histórico clínico de diversas internações pelo mesmo problema insuficiência cardíaca e com baixa efetividade medicamentosa. No último encontro realizado com o paciente antes de sua alta, ao finalizar o atendimento o paciente verbaliza “não se preocupe, eu irei voltar aqui”, como se soubesse que iria ser internado novamente. A outra paciente que está em tratamento quimioterápico também segue sem uma resposta. Apesar de existirem fatores genéticos, hereditários, ambientais…o processo de somatização pode estar presente nesses pacientes.
Dunker (2006) traz o conceito de pulsão para abordar a vertente da somatização. No artigo, o autor coloca a pulsão como:
“conceito limite entre o psíquico e o somático […] funcionando como lugar chave para o deslocamento do dualismo que impregna o tema da corporeidade em psicanálise. Ela cumpre a função de tradução entre as exigências que seriam propriamente corporais (pressão e fonte) daquelas que seriam propriamente psíquicas (objeto e objetivo).” (n.p.)
O conceito de pulsão começa a ser introduzido nos estudos de Freud com a discussão do termo instinto. Em “Os instintos e seus destinos”, o autor, em suas primeiras páginas, aborda sobre a fisiologia e biologia, portanto, incluindo o corpo como um ponto de investigação. Inicia trazendo sobre a ideia de estímulo como algo que deriva de fora, do mundo exterior, para o corpo, mais especificamente o sistema nervoso, sendo descarregado novamente para fora pela ação. Este caminho se seguiu para que se chegasse na discussão sobre os instintos. (Freud, 1914)
Um instinto, para Freud (1914), é diferente de um estímulo. Define-se como algo que tem origem dentro do organismo e de força constante, sem possibilidade de fuga. Um exemplo para clarificar as ideias expostas sobre estímulo e instinto seria, respectivamente: um paciente que sente dor ao iniciar o tratamento intravenoso da quimioterapia, principalmente onde se insere o medicamento, pode informar um profissional de enfermagem, que colocará uma bolsa de água quente no local para amenizar ou cessar essa queixa álgica. Outro paciente em tratamento quimioterápico, que comunica ao médico que sente náusea durante o procedimento, e segue sentindo mesmo que seja prescrito uma medicação intravenosa para acompanhar esse processo, pode estar relacionado a algo psíquico.
Freud coloca o corpo em um trabalho árduo para livrar-se desses instintos, porém, diferentemente dos estímulos externos, mesmo que exista essa tentativa de fuga, não é possível eliminá-los.
De acordo com Elia (1995), apesar de Freud iniciar uma discussão acerca dos instintos, a pulsão compreende-se como algo diferente. Este conceito é caracterizado como uma exigência por conta da ligação do psiquismo com o corpo. Ela não é comum a todos os indivíduos porém, se assemelha aos instintos por “afetar todo sujeito humano, sem exceção, pelo que atesta de seu caráter estrutural, não há sujeito para quem a pulsão não se coloque como exigência de trabalho, não há sujeito, a rigor, se não houver pulsão”. (Elia, 1995, p. 47) A pulsão demonstra-se como uma energia fundamental do sujeito e necessária para seu funcionamento, apresentam como natureza geral a fonte, o impulso, o objeto e a finalidade, através disso, a pulsão pode apresentar diferentes destinos, como inversão, recalcamento, sublimação, entre outros. (Chemama, 1995)
O objeto da pulsão se apresenta como algo variável, buscando como finalidade uma satisfação. Para demonstrar a amplitude da pulsão, Elia (1995) traz que o caráter deste conceito é absolutamente plástico e responsável por efeitos na cultura. Essa satisfação sempre irá acontecer, através dos diferentes destinos, porém é essencialmente parcial, pois a pulsão é caracterizada como indefectível, ou seja, não pode ser destruída, mantém-se como algo constante dentro do corpo. Sendo assim, o objeto é considerado como necessariamente contingente, substituído conforme a necessidade, para alcançar a satisfação, que sempre será parcialmente insatisfeita.
Não é considerada um conceito fundamental para a Psicanálise sem razão, apresenta um papel importante na constituição do sujeito. O corpo nesta abordagem, não pode ser entendido como uma unidade, por conta da pulsão, pois apresenta-se como “uma explosão irreversível, na medida em que introduz uma disjunção que o torna inconsútil, insuturável.” (Elia, 1995, p. 51)
Pensando nos atendimentos realizados, foi possível identificar em alguns casos, uma perda presente no histórico desses pacientes. Em “Luto e Melancolia”, Freud (1914), traz uma definição para cada um desses conceitos. O primeiro, é representado pela resposta a uma perda, esta não necessariamente de um ente próximo, mas, também, algo que represente isso, como demissão de um emprego, aposentadoria, término de um relacionamento, um ideal, entre outros. Já o segundo conceito, ainda que parecido com o luto, é caracterizado por “um abatimento doloroso, uma cessação do interesse pelo mundo exterior, perda da capacidade de amar, inibição de toda a atividade e diminuição da autoestima” (p.172). Demonstra-se por acusações e recriminações contra si mesmo e uma possível punição.
No caso dos pacientes internados e ambulatoriais, foi possível escutar diferentes formas de luto, assim como Freud dizia em seu texto. Alguns pacientes sofriam pela perda de alguém próximo, pelo corpo que não era mais saudável, pelo ideal de vida que deveriam levar, entre outros.
Freud (1914), denomina o processo de luto como algo não patológico, mas que causa um afastamento do enlutado de sua conduta normal de vida. Ao vivenciar esse processo, o enlutado encontra-se em:
“um doloroso abatimento, a perda de interesse pelo mundo externo – na medida em que não lembra do falecido -, a perda da capacidade de eleger um novo objeto de amor – o que significaria substituir o pranteado -, o afastamento de toda atividade que não se ligue à memória do falecido. […] Essa inibição e restrição do Eu exprime uma exclusiva dedicação ao luto, em que nada mais resta para outros intuitos e interesses.” (Freud, 1914, p.173)
Jurkiewicz (2008) aponta que esses acontecimentos durante o luto são representados por uma introversão da libido, toda a libido investida irá de encontro com aquilo que a pessoa perdeu. Esse processo é necessário para que a posteriori o enlutado possa se ligar a novos objetos. Porém, Freud (1914) alerta que esse percurso não é fácil, levando tempo e investimento para que ocorra o desligamento da libido desse objeto. Durante, ele ainda afirma que a pessoa apresenta dificuldade para deixar uma posição libidinal, mesmo que um novo objeto já esteja se demonstrando presente.
Como a pulsão pode estar relacionada com esse processo? Nesse processo o objeto encontra-se perdido, como dito anteriormente, perda de algo que seja significativo para o
paciente. Quando esse objeto se perde, a pulsão não consegue encontrar uma descarga, ficando acumulada dentro do corpo, o que pode ocasionar diferentes direcionamentos para o sujeito, como o adoecimento.
Jurkiewicz (2008), em sua pesquisa de dissertação trouxe, também, considerações de alguns autores sobre o luto e o adoecer. O adoecimento pode se desenvolver por conta de perdas presentes na vida da pessoa, onde desamparo e desesperanças são sentimentos citados como possíveis causadores da doença física. Dessa forma, uma manifestação orgânica é uma resposta a uma perda que não foi elaborada. Esse fato pode ser desencadeado tanto pela perda em si quanto por um sentimento de culpa relacionado ao que se perdeu. A dor característica desse processo, é psíquica. (Parkes, 1998, Silva, 1994, Násio, 1997)
Essa dor psíquica pode ser ocasionada pelo alto investimento que a pessoa atribui ao objeto perdido. Posto isso, a retirada de interesse e da libido do mundo externo que se encontra presente no luto, poderia causar uma dor física ou uma doença orgânica. (Medeiros & Fortes, 2019).
A partir do momento em que o paciente se encontra identificado com objeto perdido, ele não o perde. Essa identificação é caracterizada por Laplanche e Pontalis (2001) como “um processo psicológico pelo qual um sujeito assimila um aspecto, uma propriedade, um atributo do outro e se transforma, total ou parcialmente, segundo o modelo desse outro” (p. 226) Essa identificação pode ser considerada uma apropriação, associando-se a um componente comum que é inconsciente. No caso, da paciente Maria, que começa a apresentar hipertensão após o falecimento da filha que apresentava o mesmo diagnóstico, encontra-se uma identificação, a nível inconsciente, visto que a paciente relata que começou a apresentar sintomas orgânicos que não havia antes, sem perceber a possível ligação que seu adoecimento tem com a filha. E, ao verbalizar que está se derramando, pode representar essa dor psíquica, que acabou ocasionando um derrame na paciente.
De acordo com Medeiros e Fortes (2019), “a dor nesse momento, é o paradigma do narcisismo, de modo que o retorno narcísico concentra a vida psíquica em uma parte do corpo”. (p. 232) O termo narcisismo vem do mito sobre Narciso, um símbolo de amor próprio. O personagem caiu nas águas do rio, por apaixonar-se pelo próprio reflexo, ao tentar beijá-lo. Esse conceito é usado amplamente na obra de Freud (1914), denominando como “um complemento libidinal do egoísmo do instinto de autopreservação”. (p. 15) O autor coloca o conceito de narcisismo como parte do desenvolvimento normal do ser humano, o qual se inicia na infância e mantém seus resquícios até o fim da vida. Tem como característica o alcance de uma satisfação, ressalta-se que esta não representa apenas algo
prazeroso, mas também algumas sensações que o sujeito pode localizar com sensações de desprazer. Os afetos de dor, a doença, a hipertensão, a insuficiência cardíaca, o câncer, apesar de serem vistos como um mal estar, podem ser interpretados como uma satisfação.
Para Lazzarini e Viana (2006), ao abordar sobre a concepção de corpo em psicanálise, deparar-se com o narcisismo não é incomum. Na vida psíquica, o Eu do bebê encontra-se investido de pulsões, em sua maioria, autoeróticas. O autoerotismo apresenta-se como:
[…] o prazer retirado da manipulação do órgão (boca, língua, mucosa anal, etc.) e revela a dimensão do sexual centrada no indivíduo, ou seja, numa mesma região do corpo a fonte e o objeto da satisfação estariam presentes e se fundiriam. (Lazzarini & Viana, 2006, p. 245)
O percurso do autoerotismo para o narcisismo se dá pela exigência do corpo em ser uma imagem unificada, e as zonas erógenas na fase autoerótica caracterizam-se por um registro espalhado pelo corpo. Esse caráter de totalidade, permite que a construção do eu e do corpo façam parte de algo único. Pensando no sujeito como um quebra-cabeça, a pulsão, pelo seu caráter de não-unicidade, seria a ponta de encaixe do autoerotismo para o narcisismo para que esse Eu e o corpo possam existir juntamente.
Conclusão
A temática do corpo é uma área abrangente dentro do contexto psicanalítico, pode ser interpretada de diferentes formas e olhares. A partir da somatização e dos relatos dos pacientes atendidos foi traçada uma linha de pensamento, hipóteses acerca da influência do psíquico no corpo, e que, podem ter favorecido no aparecimento das doenças citadas acima.
Quando se pensa no trabalho dentro do hospital, o psicólogo deve levar em consideração o contexto em que o paciente se encontra, o de adoecimento. Os conceitos articulados durante a discussão foram pensados de acordo com o que os pacientes trouxeram durante os atendimentos. A pulsão como um conceito fundamental da psicanálise, dá sinais de sua existência de diferentes formas, pela sua ligação com o corpo, uma delas pode ser a doença. Porém, quando o paciente chega queixando-se de um mal estar é importante questionar-se o que levou o sujeito a essa condição atual.
A discussão abordada a partir dos atendimentos com Maria, Giovanna e Ernesto é apenas um esboço do que é visto durante a trajetória pela cena hospitalar, em outros momentos, houve a possibilidade de observar a articulação desses conceitos psicanalíticos. O luto circula pelos discursos dos pacientes por conta de um alguém próximo, do corpo que não é saudável, de um ideal, o encontro com a finitude, entre outros. Em outros casos, como no de Maria, a identificação aparece como uma forma de resposta a esse luto, não elaborado, mas
que, por conta da dor psíquica, o sujeito encontra um modo de manter o objeto consigo mesmo. Porém, essas articulações não seriam possíveis sem abordar o narcisismo, pelo desenvolvimento desse processo, que o Eu e corpo podem ser compreendidos como unidade e como se relacionam entre si.
Para finalizar essa reflexão, mas para que outros que irão ler, também, instiguem-se a refletir sobre a importância de questionar a doença como algo que diz respeito ao sujeito, que conta uma história, onde a doença pode representar apenas a ponta do iceberg de um mar de representações. E, apesar da lógica biologicista circundar as paredes dos ambientes hospitalares, Del-Volgo (1998), nos parágrafos finais de seu livro, cita algo importante para os que trabalham dentro desses ambientes:
“o instante de dizer consiste em um quase nada, em um pouco de desordem no encadeamento contínuo, prescrito, tarifado, controlado dos exames clínicos e paraclínicos, de algumas poucas palavras e de alguns fonemas na transferência, de um pouco de tempo subtraído desses empregos codificados, de uma pausa nos processos de passivação da instituição hospitalar, de um pouco de ruído tornando-se fala. Uma fala que a técnica poupa e que o “instante de dizer” convoca.” (p.193-194)
Cada pedido de consulta direcionado, reuniões com a equipe, conversas impessoais com os profissionais em que se dizia, que o paciente encontrava-se “ansioso”, “não aceitava as condutas da equipe”, “não queria realizar um procedimento”, “com humor depressivo”, “choroso”, “que este iria dar trabalho”, após dois anos de residência, essa afirmação de Del Volgo ressoa na forma como se conduz o trabalho de psicólogo. Leva-se em consideração as próprias questões de cada profissional envolvido no caso, e a ordem biologicista que impera, mas, também, o que esse paciente está querendo dizer com esses comportamentos. E, por que não começar abrindo um espaço escuta para que esse sujeito fale sobre o que o levou até aquele momento?
Almeida, N. B., Portela, M. V. Z.(2020) A força do silêncio na criança: um relato de experiência. Revista Subjetividades, 20(2), e7564 http://doi.org/10.5020/23590777.rs.v20i2.e7564
Chemama, R. (1995). Dicionário de Psicanálise. Porto Alegre: Artes Médicas.
Código de Ética Profissional do Psicólogo. Conselho Federal de Psicologia, Brasília, agosto de 2005.
Daltro, A. R., Faria, A. A. (2019). Relato de experiência: Uma narrativa científica na pós-modernidade. Estudos e Pesquisas em Psicologia, 19(1), 224-237.
Del Volgo, M. J. (1998). O instante de dizer: o mito individual do doente sobre a medicina moderna. São Paulo: Editora Escuta.
Dunker, C. I. L. (2006). Elementos para uma Metapsicologia da Corporeidade em Psicanálise. Trabalho apresentado no II Congresso Internacional de Psicopatologia Fundamental na Mesa Redonda Por uma Metapsicologia do Corpo, Belém, PA.
Elia, L. (1995). Corpo e Sexualidade em Freud e Lacan. Rio de Janeiro: Uapê.
Freud, S. (1914) Introdução ao Narcisismo. In: FREUD, S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras.
Freud, S. (1914). Luto e Melancolia. In: FREUD, S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras.
Freud, S. (1914) Os instintos e seus destinos. In: FREUD, S. Introdução ao narcisismo, ensaios de metapsicologia e outros textos (1914-1916). São Paulo: Companhia das Letras.
Freud, S. (1912) Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise. In: Obras Psicológicas Completas de Sigmund Freud: edição standard brasileira. Rio de Janeiro: Imago, Vol. XII, 2006.
Gori, R. Prefácio: O corpo da fala (1998). In: Del Volgo, M. J. O instante de dizer: o mito individual do doente sobre a medicina moderna. São Paulo: Editora Escuta.
Jurkiewicz, R. (2008). Vivências de perdas: relação entre eventos significativos, luto e depressão, em pacientes internados com doença coronariana. (Tese de doutorado) Faculdade de Medicina da Universidade de São Paulo, São Paulo, SP.
Lazzarini, E. R., Viana, T. C. (2006) O corpo em Psicanálise. Psicologia: Teoria e Pesquisa, 22(2), 241-250.
Laplanche, J, Pontalis, J. B. (1996) Vocabulário da Psicanálise. São Paulo: Martins Fontes.
Medeiros C., Fortes, I. (2019). A dor do luto: perspectivas psicanalíticas. Trivium: Estudos Interdisciplinares, 6(2), 222-234.
Simonetti, A. (2015). Psicologia Hospitalar e Psicanálise. São Paulo: Caso do Psicólgo.
Sociedade Brasileira de Cardiologia. Diretriz Brasileira de Insuficiência Cardíaca Crônica e Aguda. Arq Bras Cardiol. 2018, 111(3), 436-539.
ABNT — CHMIELEWSKI, L. A. P. GIOPPO, J. R. W. O que leva o corpo a falar: um relato de experiência. CadernoS de PsicologiaS, n. 4. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/o-que-leva-o-corpo-a-falar-um-relato-de-experiencia/
APA — Chmielewski, L. A. P. Gioppo, J. R. W. (2023). O que leva o corpo a falar: um relato de experiência. CadernoS de PsicologiaS, 4. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/o-que-leva-o-corpo-a-falar-um-relato-de-experiencia/. Acesso em: __/__/___.