#Relatos_de_Experiências
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Resumo: O presente relato de experiência apresenta reflexões sobre um estágio na ênfase de processos educativos, realizado por estudantes de um curso de Bacharelado em Psicologia de uma faculdade de ensino privada em Curitiba, em um Centro de Educação Infantil nos arredores da cidade. O estágio foi conduzido em um berçário com crianças de 1 a 2 anos, onde a instituição demandava avaliações psicológicas de seus alunos, dando ênfase à necessidade de apontamentos para laudos psiquiátricos. À luz da abordagem sócio-histórica, os estagiários realizaram observações e intervenções psicológicas para evidenciar o valor da estimulação no desenvolvimento cognitivo das crianças, propondo-a como substituto ao diagnóstico psiquiátrico e evitando, assim, a patologização precoce.
Palavras-chave: Abordagem sócio-histórica; Diagnóstico Psiquiátrico; Estimulação.
OBSERVATIONS AND CHALLENGES REGARDING THE PATHOLOGIZATION OF CHILDHOOD IN LIGHT OF THE SOCIO-HISTORICAL EPISTEME
Abstract: This experience report presents reflections on an internship focused on educational processes, carried out by students of a Bachelor’s Degree in Psychology from a private college in Curitiba, in an Early Childhood Education Center on the outskirts of the city. The internship was conducted in a nursery with children aged 1 to 2 years, where the institution required psychological evaluations of its students, emphasizing the need for notes for psychiatric reports. In light of the socio-historical approach, the interns carried out observations and psychological interventions to highlight the value of stimulation in the cognitive development of children, proposing it as a substitute for psychiatric diagnosis and thus avoiding early pathologization.
Keywords: Socio-historical approach; Psychiatric Diagnosis; Stimulation.
OBSERVACIONES Y CUESTIONAMIENTOS SOBRE LA PATOLOGIZACIÓN INFANTIL A LA LUZ DE LA EPISTEME SOCIOHISTÓRICA
Resumen: Este relato de experiencia presenta reflexiones sobre una pasantía con foco en procesos educativos, realizada por estudiantes de la Licenciatura en Psicología de una escuela normal privada de Curitiba, en un Centro de Educación Infantil en las afueras de la ciudad. La pasantía se realizó en una guardería con niños de 1 a 2 años, donde la institución requería evaluaciones psicológicas de sus estudiantes, enfatizando la necesidad de apuntes para los informes psiquiátricos. A la luz del enfoque socio-histórico, los pasantes realizaron observaciones e intervenciones psicológicas para resaltar el valor de la estimulación en el desarrollo cognitivo de los niños, proponiéndo como sustituto del diagnóstico psiquiátrico y evitando así una patologización temprana.
Palabras-clave: Enfoque socio-histórico; Diagnóstico Psiquiátrico; Estímulo.
Introdução
O estágio de Psicologia Educacional e Escolar, dentro da Universidade, pertencente à ênfase de Processos educativos, é integrante da estrutura de grade dos estágios de 4° ano (7° e 8° Período). Tinha como objetivo primário investigar, analisar e apreender os fenômenos psicológicos referentes a processos educativos, atuando em uma escola de Educação Infantil.
O Centro de Educação Infantil (CEI) que hospedou o estágio é uma Organização da Sociedade Civil, ou seja, uma entidade sem fins lucrativos que mantém uma relação cooperativa com o Estado brasileiro. Com capacidade para atender até 90 crianças entre 12 meses e 5 anos, a instituição atualmente possui 88 crianças matriculadas. O berçário, foco de observação do estágio, contava com 15 crianças ao final da prática. No total, 23 profissionais atuam no local, entre educadoras, cozinheiras, faxineiras, secretária, assistente social, diretoria e coordenação. O CEI funciona de segunda a sexta-feira, abrigando quatro turmas: berçário, maternal 1 e duas turmas de maternal 2. O berçário, especificamente, conta com quatro educadoras e 15 crianças. Além do serviço educacional há também um trabalho voltado à comunidade, através de um do programa sócio familiar. Esse programa inclui reuniões de pais, festas comunitárias e aconselhamento profissional e econômico. A instituição também atua em conjunto ao serviço social e a rede de proteção, além de fazer encaminhamentos para outros serviços.
A Universidade já possui um vínculo pré-estabelecido com o Centro de Educação Infantil (CEI). Nesse contexto, o CEI apresentava uma demanda por laudos psiquiátricos e diagnósticos psicológicos, os quais desempenhavam um papel central na lógica institucional, pois ocupava-se de uma população com maior precariedade social, motivo pelo qual o laudo torna-se o único meio de acesso aos serviços adequados, necessários para o desenvolvimento das crianças atendidas. No entanto, os estagiários adotaram uma abordagem crítica a esse modelo de atuação, buscando alternativas baseadas em uma compreensão mais ampla e socialmente situada das crianças e suas necessidades, pensando na instituição de forma integral e holística. Dessa maneira, as práticas realizadas no estágio possuíram uma demanda já direcionada desde seu início e a busca da gênese da tais demandas consistiu no fulcro das presentes reflexões.
A teoria adotada como base interventiva e reflexiva é a de Lev Semionovitch Vigotski (1991), que parte dos princípios do materialismo histórico-dialético, enfatizando a análise e compreensão das relações humanas, e seu entrelaçamento com o ambiente físico e social. Essas relações são mediadas por ferramentas, instrumentos e signos – como a linguagem, os símbolos e os números – que transformam as formas de interação entre as pessoas e o mundo. Esse processo dialético, é parte fundadora do psiquismo, e portanto integral para o desenvolvimento cognitivo e o aprendizado. Assim, a mediação, vista como elemento central para a construção das funções cognitivas superiores, serviu como eixo das intervenções realizadas, que buscavam romper com o paradigma institucional.
O papel da Psicologia dentro do contexto escolar é amplo e relevante historicamente, considerando que no Brasil, a chegada da ciência psicológica começa no século XIX, sendo perpetuada e reproduzida pela educação e a medicina1 (Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região, 2011). Segundo Martinez (2010), o propósito do psicólogo inserido no contexto escolar é aplicar conhecimentos psicológicos sobre o funcionamento e comportamento humano para otimizar a aprendizagem e o desenvolvimento dos alunos, compreendendo as múltiplas e complexas relações existentes nesse ambiente. As atuações mais comuns do psicólogo escolar incluem avaliação e diagnóstico psicológico, formação de professores, encaminhamento de alunos com dificuldades escolares, orientação de pais e profissionais, orientação sexual, e intervenção em problemas emocionais, de aprendizagem e comportamento. Além disso, práticas emergentes envolvem a avaliação institucional, análise de processos educativos e participação ativa na construção da proposta pedagógica, desde a escolha da equipe pedagógica até a contribuição para a coesão e formação técnica da equipe de direção. Outras possibilidades incluem a realização de pesquisas internas, implementação de políticas públicas e a preparação de oficinas de interesse psicológico para os alunos.
O grupo estagiou em uma sala de Berçário, composta por crianças de 1 a 2 anos, que permanecem na instituição em tempo integral e apresentam vulnerabilidades sociais. Elkonin (apud Lazaretti, 2011) afirma que as aquisições oriundas da atividade objetal manipulatória, são fatores que implicam em uma mudança significativa nas relações sociais e suas atividades, além disso outras aquisições como andar e o desenvolvimento da linguagem primária são marcadores da formação de todos os processos psíquicos e de personalidade. Ao início dessa formação, para Mukhina(1996), as condições de vida, educação e ensino exercem papel decisivo “Assim já no primeiro ano se manifesta claramente a lei geral do desenvolvimento psíquico, segundo a qual processos e qualidades psíquicos se formam na criança sob a influência decisiva das condições de vida, da educação e do ensino” (MUKHINA, 1996, p. 84).
A mediação adulta é indispensável para que o fator exploratório e de apropriação ocorra. É por meio da relação com o adulto que a criança realiza a manipulação de objetos, não apenas de forma a manejá-lo, mas também compreendendo a função socialmente elaborada para seu uso. Essas ideias podem ser ilustradas por Elkonin (apud Lazaretti, 2011, p. 169-170) da seguinte maneira:
Sob a direção dos adultos e em constante contato com eles, a criança aprende a atuar com os objetos, por meio dos quais satisfaz suas variadas necessidades (comer com a colher, beber com a xícara, abotoar os botões, colocar as meias etc.)… Quando a organização e o método de ensino são bons, a criança aprende com perfeição as maneiras corretas de atuar com os objetos.
Moraes, Chastinet e Borges (2019) também destacam a necessidade de estimulação no desenvolvimento infantil, a mediação adulta é classificada por Vygotsky (1991) como essa estimulação, pelo intermediação do adulto, a oportunidade de inúmeras possibilidades de aprendizagem e ensino são observadas. Essas ações orientadas pelo adulto são assimiladas pela criança e consolidam a base de seu desenvolvimento psíquico (Mukhina, 1996, p. 84).
Segundo Duarte (1993), a atividade regula a existência da criança e seu desenvolvimento, ou seja, o meio social que está inserido é essencial para formação social e cognitiva, cada um com sua especificidade e características. Vygotsky (1996) afirma que a origem da personalidade que a criança se apropria, é um processo de interação que é determinado pela situação social de desenvolvimento, isto é, o contexto com que a criança se relaciona é a fonte do desenvolvimento possibilitando a transformação social em individual.
O estágio de Psicologia Escolar supervisionado pelo professor Matheus Vosgerau teve início em março de 2024. Os textos trabalhados durante as supervisões tiveram como objetivos principais: ampliar o repertório dos alunos para atuação em campo sob a perspectiva escolar e despatologizar as visões já estigmatizadas do campo educacional. Neste sentido, todos os alunos receberam acesso a preparação teórica que teve como foco: as capacidades do psicólogo escolar (Martinez, 2010), aspectos do desenvolvimento da criança pela perspectiva social e histórico-cultural (Moraes, Chastinet, & Borges, 2019) e as problemáticas envolvendo a cultura do fracasso escolar (Caldas, 2005). Quanto à organização do estágio, ficou acordado entre a supervisora de campo juntamente a equipe de estagiários que a prática seria realizada todas às terças-feiras, das 14:00 as 17:00 horas da tarde.
Orientados pela demanda da instituição, o grupo decidiu em supervisão adotar uma nova postura em campo, estimulando o que era visto como um atraso no desenvolvimento por parte das educadoras, a partir de intervenções desenhadas com base nos conceitos de Vygotsky acerca da Zona de Desenvolvimento Real (ZDR) e Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP) (Moraes, Chastinet, & Borges, 2019). A partir dessa fundamentação teórica o grupo escolheu 3 casos (H, A e N) para analisar e realizar intervenções, as crianças dos casos tinham de 9 meses a 2 anos, e possuíam queixas direcionadas ao diagnóstico, apontando um atraso no desenvolvimento e um possível quadro de Transtorno Do Neurodesenvolvimento.
As queixas atribuídas ao caso H eram relacionadas à falta de habilidade motora, como por exemplo, sentar sem apoio ou manter firmeza ao ser segurado no colo. Segundo Papalia, Feldman e Martorell (2013) 50% das crianças com 9 meses de idade apresentam o marco do desenvolvimento motor ao sentarem sem apoio, a partir desse suposto atraso apresentado pelas educadoras, foram feitas observações e intervenções pontuais. Importante salientar que H frequentava a escola a apenas 40 dias. Durante as observações H apresentou movimentos de rolar, virar-se, chutar o ar e força nas pernas ao empurrar o chão, o que demonstra que esses comportamentos já haviam se consolidados em sua Zona De Desenvolvimento Real (ZDR), Moraes, Chastinet e Borges (2019) diferenciam o desenvolvimento enquanto Zona de Desenvolvimento Proximal (ZDP), isto é, consegue fazer com auxilio e Zona de Desenvolvimento Real (ZDR) a partir do estágio em que o comportamento pode ser exercido por conta própria. A atividade objetal manipulatória também foi observada, H apresentava comportamento exploratório como chacoalhar o chocalho e colocar os objetos em manipulação na boca, apesar desse comportamento a mediação adulta não foi constatada, durante a observação houve momentos em que se viu uma atitude consciente das educadoras de deixá-la de lado, sendo posicionado em sua almofada de barriga para baixo e reposicionado caso mudasse de posição.
Ao caso A eram direcionadas demandas relacionadas a comportamentos supostamente enquadrados no diagnóstico de TEA (Transtorno do Espectro Autista), correspondente ao CID 6A02, disputa/agressividade, a não vocalização, “falta de intenção comunicativa” e a relação de posse com objetos específicos Foi informado pela coordenação e educadoras que A; foram feitas 4 observações em sala e uma intervenção individual a fim de investigar a linguagem, cognição e sociabilidade.
No caso N as queixas eram voltadas a um atraso no desenvolvimento padrão, sendo uma criança com cerca de 1 ano e meio e não possuindo a capacidade de ficar de pé e andar sem apoio, atribuída a uma falta de força nas pernas e uma capacidade de verbalização diminuta. Também era evidente um apontamento para TEA, corroborado por um preenchimento de 11 pontos na escala M-CHAT em sua carterinha de vacinação. Sendo esse, um instrumento de rastreio na forma de inventário, que usa como critério a presença e ausência de determinados comportamentos.
Também foi utilizado como ferramenta complementar, avaliações individuais para observar determinadas dimensões e comportamentos que não se apresentaram durante nossas observações na sala de aula, como o desenvolvimento da linguagem, sendo base de nossa investigação, os itens apresentados no Inventário Portage, com um uso de forma adaptada (Aiello & Williams, 2021). Além da intervenção com as crianças selecionadas, foram realizadas as entrevistas com os responsáveis legais, sendo questionados sobre os comportamentos apresentados por seus filhos fora do contexto escolar para o levantamento de mais informações. As entrevistas seguiram um padrão semi-estruturado, com perguntas pré-estabelecidas que permitiram a equipe se aprofundar em tópicos específicos sobre os apontamentos levantados pela escola, e a percepção das mães quanto a isso. Vale ressaltar, que tudo o que foi discutido também foi interpretado pelos estagiários, que levaram os relatos para supervisão e discutiram com base no histórico já apresentado ao longo das semanas que sucederam o estágio. Os estagiários coletaram informações que julgaram relevantes para a construção dos casos, referentes à nível socioeconômico, situação familiar, teste do pezinho, vacinação, gestação, dieta e comportamentos relatados. Também houve uma conversa com as educadoras sobre o ponto de vista delas sobre as crianças.
As intervenções feitas junto às observações foram suficientes para concluir que a estimulação e mediação intencionalmente planejada é essencial para o desenvolvimento infantil, a partir das funções psicológicas superiores, personalidade e zonas de desenvolvimento. Ao decorrer das semanas as crianças demonstravam uma evolução significativa, as intervenções surtiram efeitos e solidificaram atividades na Zonas de Desenvolvimento Real (ZDR), assim como Moraes, Chastinet e Borges (2019) já orientava: “Então, como conclusão, as atividades úteis como interventivas são aquelas que a criança não consegue fazer sozinha, mas sim com mediação.”
Ficou evidente que a maioria das crianças apresentam comportamentos adequados para a faixa etária. Explicitando uma falta de preparo profissional na mediação de algumas atividades e relações, essa lacuna foi notificada em algumas crianças em específico, em comparação com as outras, onde seus comportamentos eram equiparados com os de seus colegas mais velhos ou em um estágio de desenvolvimento mais avançado, cuja evolução parecia ser usada como norma padrão, comportamentos presentes dentro da ZDP (Vygotsky, 1991) eram continuamente vistos como problemas de natureza fisiológica/psicológica no lugar de falta de estimulação e mediação.
A chegada ao campo ocorreu no início de abril, com o grupo sendo o primeiro a se apresentar na instituição. Cada grupo foi alocado em uma turma específica de acordo com os horários fornecidos pelo professor supervisor. Para os grupos de três integrantes, havia inicialmente a previsão de separação, com um dos estagiários sendo designado para acompanhamento de crianças de forma individual em uma sala distinta, separado dos outros estagiários. No entanto, após discussão com a coordenação e a necessidade de aprovação do supervisor, essa decisão foi revertida pela escola. Posteriormente, os estagiários que seriam encarregados do berçário no período da manhã foram remanejados, e o grupo acabou sendo o único responsável pela sala. Portanto, não foi possível obter informações sobre o funcionamento da turma no período da manhã para além do que foi informado pela escola.
A prática de estágio sucede um processo anterior supervisionado por outro docente e pertencente a outra ênfase, a partir dos relatos coletados, alude para um modelo voltado ao diagnóstico psicológico, com um projeto final direcionado à orientação de professores. Essa visão do papel do profissional de psicologia parece ter se solidificado no imaginário da coordenação e das educadoras. Embora, em reuniões com o professor supervisor, a instituição tenha demonstrado abertura para a implementação de novas práticas e uma compreensão da amplitude do fazer psicológico, na primeira visita ao campo, a coordenadora prontamente avisou que na próxima semana, disponibilizaria fichas com a documentação individual de certos alunos para serem examinadas, evidenciando a expectativa institucional de dar continuidade à abordagem diagnóstica previamente estabelecida.
Dado as condições, o que poderia ser feito naquele momento, era observar o comportamento das crianças e a dinâmica em sala de aula de forma natural, minimizando ao máximo a influência do grupo de estagiários naquele ambiente. O comportamento individual de cada uma das crianças foi anotado, compilado e debatido, bem como a relação entre elas e as educadoras. Havia o objetivo secundário de construir um vínculo sólido com a instituição, na tentativa de, a partir um bom relacionamento, desconstruir o viés pré-estabelecido. Ficou evidente, que a maior parte das crianças demonstra comportamentos apropriados para sua idade. A maioria das queixas estava relacionada a demandas pontuais ou à capacidade de verbalização de algumas crianças, com constantes alusões a possíveis sinais de Transtorno do Espectro Autista (TEA). No entanto, houve casos que exigiram investigação mais aprofundada. Conforme as observações se sucederam, ficou nítido um direcionamento mais incisivo por parte das educadoras a questões comportamentais de três crianças. Os comportamentos em questão, relatados pelas professoras foram: atraso na fala, ausência de intenção comunicativa, atraso no desenvolvimento motor (manter-se sentado sem auxílio, andar) e comportamento agressivo, cada uma das crianças indicadas poderia apresentar um ou mais deles. Os dois primeiros comportamentos foram descartados pelos estagiários no decorrer das primeiras semanas de prática, sob justificativa da observação atestar o oposto do que foi comunicado pelas professoras, os dois últimos, tornaram-se foco de maior investigação para duas das crianças apontadas.
A decisão ética de avaliar crianças de 1 a 2 anos a partir de uma métrica patologizante, foi cuidadosamente suspensa, dado a linha tênue entre comportamentos que se situam dentro do padrão de desenvolvimento típico e aqueles que podem ser considerados desadaptativos ou patológicos, principalmente se tratando de crianças em um estágio inicial de desenvolvimento. Ficou evidente a partir de um olhar mais minucioso sobre as demandas apresentadas pelos 3 alunos que, após avaliações individuais e conversas com os cuidadores, todos os comportamentos vistos como indicadores de um desenvolvimento atípico pela escola, se mantinham dentro do padrão esperado e ainda por cima eram situados dentro do contexto de vida de cada um deles. Essa atitude, carregada de valores éticos a serem defendidos, demonstrou a importância de não rotular comportamentos como problemáticos, evitando desconsiderar de forma acrítica, o contexto em que a criança está inserida e as múltiplas facetas do desenvolvimento infantil, que também é social, cultural, relacional e psicológico.
O maior desafio enfrentado pelos estagiários foi subverter a lógica de aplicação de diagnósticos da escola. Por conta de sua participação em órgãos de assistência social, atuando em conjunto a rede de proteção, a instituição possuía um explícito caráter assistencialista que visava auxiliar e fornecer suporte através do diagnóstico, visto que a escola muitas vezes não tem os recursos necessários para lidar com as demandas apresentadas, além disso, observa-se uma ausência de preparo e um certo desconhecimento em lidar e entender determinadas situações e comportamentos. Para os estagiários, esta postura gerou problemáticas como a patologização de ciclos normais do desenvolvimento infantil e comparações que não respeitavam o tempo e particularidade de cada indivíduo. Dessa forma, a fim de demonstrar alternativas para esta perspectiva, os estudantes visam estimular diretamente por meio de atividades, as capacidades assinaladas como insuficientes nas crianças apontadas pelo CEI.
De forma geral, as demandas encaminhadas aos estagiários não fugiram completamente do modelo de aluno problema/diagnóstico (Patto, 1997). Porém, ao longo das práticas buscou-se ao máximo descaracterizar essa cultura e perspectiva de comparação entre os alunos, que apenas contribui para a culpabilização das crianças de aspectos que possuem muita influência do ambiente e contexto. Como foi muitas vezes conversado com as professoras e com a coordenadora do local, existe uma tendência no ambiente escolar, a realizar uma comparação entre as crianças, e também muitas vezes ações iguais, realizadas por elas dentro de sala, não recebem o mesmo peso, fato observado diversas vezes pela equipe. A falta de orientação profissional foi revelada como um fator que precariza a mediação das atividades, como já descrito nesse texto, a mediação adota um lugar indispensável para que o fator exploratório e de apropriação ocorra. É por meio da relação com o adulto que a criança realiza a manipulação de objetos, não apenas de forma a manejá-lo, mas também compreendendo a função socialmente elaborada para seu uso. (Vygotsky, 1991)
Com relação ao objetivo do estágio definido em conjunto com o professor, de desestruturar o viés assistencialista presente na instituição, cabe destacar a última conversa realizada entre os estagiários e a diretora do local. Durante a devolutiva dos relatórios prometidos pela equipe, foi possível perceber a pequena semente plantada ao longo do estágio. Pela primeira vez, ao ser informada diretamente sobre os casos trabalhados no semestre por uma ótica diferente do que estavam habituados, em conjunto aos vários escopos da psicologia social, a responsável pelo local considerou o trabalho de estagiários com a equipe de profissionais da escola. Em vista disso, é prudente afirmar que os estagiários foram capazes de alterar, mesmo que sutilmente, o caráter inflexível da instituição. Se espera que esse fator contribua para o campo de estágio a longo prazo, favorecendo o trabalho de futuros alunos que perpetuem o mesmo objetivo de transformar a lógica operacional do campo aos poucos.
A práxis que constitui o Estágio dentro das imediações do Centro de Educação infantil revelou-se particularmente interessante, ao se propor, subverter as expectativas de uma intervenção pautada em um olhar de avaliação diagnóstica de caráter biomédico. Trabalhando
sobre a perspectiva de uma teoria crítica, que conflitava com aquilo que era requisitado, enfrentando um amordaçamento inicial dado a necessidade de manter o vínculo entre instituição e universidade. A perspectiva sócio-histórica, deu base para buscar alternativas para o que era pedido, demonstrando capacidade de oferecer soluções diferentes que atendessem às necessidades da instituição, sem necessidade de sequer evocar o vocabulário médico. Esse enfoque se mostrou determinante para uma mudança na atitude e no modo de pensar da instituição, permitindo novos caminhos para a compreensão do desenvolvimento infantil e para manejar situações futuras.
Vygotsky é amplamente reconhecido como o principal representante da psicologia soviética, cujas ideias têm sido incorporadas no Brasil desde a década de 80, especialmente por psicólogos escolares, devido às suas reflexões sobre o desenvolvimento humano e a pedologia (Oliveira, 2002). No contexto brasileiro, suas teorias abriram um campo significativo de diálogo crítico e intercâmbio de ideias, o que é menos evidente em outros países ocidentais, onde a Guerra Fria gerou tensões que dificultaram essa troca. Esse debate também se conecta à discussão sobre modelos de desenvolvimento normativo contemporâneos, que pouco foram atravessados por essa perspectiva, que como destacado por esse relato de experiência, pode ser instrumentalizada como substituta ao pensamento biomédico, capaz de olhar para pessoas que desviem de um padrão de desenvolvimento esperado de outras formas, além da causa biológica e da patologia em si.
[1] Há de se destacar que esse vínculo histórico da psicologia com a medicina exerceu uma influência determinante tanto na estruturação do campo quanto nos modos de pensar e praticar psicologia. Essa conexão é visível, por exemplo, na origem histórica da psicoterapia como prática médica, o que também facilitou a propagação do modelo biomédico nas intervenções psicológicas.
[2] De acordo com o estilo APA (American Psychological Association).
Caldas, R. F. L. (2005). Fracasso escolar: Reflexões sobre uma história antiga, mas atual. Psicologia: Teoria e Prática, 7(1), 1-10. São Paulo.
Conselho Regional de Psicologia da 6ª Região. (2011). Exposição 50 anos da psicologia no Brasil: A história da psicologia no Brasil. São Paulo: CRPSP.
Duarte, N. (1993). A educação escolar e a teoria das esferas de objetivação do gênero humano. Perspectiva, 11(19), 67–80. https://doi.org/10.5007/%x
Lazaretti, L. M. (2011). Vida e obra de um autor da psicologia histórico-cultural (1º ed.). São Paulo: Editora.
Martinez, A. M. (2010). O que pode fazer o psicólogo na escola? Em Aberto, 23(83), 39-56. Brasília.
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Mukhina, V. (1996). Psicologia da idade pré-escolar. São Paulo: Martins Fontes.
Oliveira, M. K. (2002). Vygotsky: aprendizado e desenvolvimento, um processo sóciohistórico (4. ed.). São Paulo: Scipione.
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Patto, M. H. S. (1997). Para uma crítica da razão psicométrica. Psicologia USP, 8(1), 47-62. São Paulo.
Vygotsky, L. S. (1991). A formação social da mente (4ª ed.). Martins Fontes.
Vygotski, L. S. (1996). Obras escogidas (Vol. IV). Madrid: Visor Dist. S. A.
ABNT — MARINHO, J. de S. et al. Observações e contestações sobre a patologização infantil à luz da episteme sócio-histórica. CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/desconstrucoes-de-uma-liga-academica-de-psicanalise-relato-de-experiencia/. Acesso em: __/__/___.
APA — COSTA, J. S. et al. (Des)construções de uma liga acadêmica de psicanálise: relato de experiência. CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/desconstrucoes-de-uma-liga-academica-de-psicanalise-relato-de-experiencia/