Revista CadernoS de PsicologiaS

O narcisismo das pequenas diferenças:
Covid-19, encarceramento e extermínio dos negros no Brasil

Robson dos Santos Mello
Escola de Psicanálise dos Fóruns do Campo Lacaniano/ Fórum do Campo Lacaniano – Curitiba

Psicólogo (CRP-08/30170). E-mail: psicmello@uol.com.br
#Inquietações_teóricas

Resumo: O artigo objetiva aprofundar a situação do sujeito negro no Brasil a partir do conceito freudiano de “narcisismo das pequenas diferenças”, bem como o conceito de “ignoródio” proposto por Quinet, e, desse modo, lançar luz sobre as consequências nefastas da ausência de políticas públicas para essa parcela de sujeitos, que representa mais da metade da população brasileira. Utilizamos alguns textos de Freud, dados do Atlas da Violência de 2019, do Banco Nacional de Monitoramento de Presos (2018), da Fundação Oswaldo Cruz e de autores contemporâneos para pensarmos o racismo que expressa nos dados de saúde e dos encarceramentos em nosso país. O racismo estrutural é um problema e o recorte racial tem de estar presente em todas as pautas das políticas públicas no Brasil.

Palavras-chave: racismo aos negros; COVID-19; extermínio.

The narcissism of small differences: covid-19, imprisonment and extermination of blacks in Brazil

Abstract: The article aims to deepen the situationof the black subject in Brazil from the freudian concept of narcissism of small diferences, as well as the concept of ignoródio proposed by Quinet, and thereby , shed light on the harmful consequences of the absence of politics for this portion of subjects, which representes more than half of the brazilian population. We used some texts by Freud, data from the 2019 Atlas of Violence, National Bank of Monitoring of Prisioners (2018), Fundação Oswaldo Cruz and contemporary authors to think about the racismo that expresses in the health and incarceration data in our country. Structural racism is a problem and the racial profile must be presente in all public politics guidelines in Brazil.

Keywords: racismo against black people; Covid-19; extermination.

El narcisismo de las pequeñas diferencias: covid-19, encarcelamiento y exterminio de negros en Brasil

Resumen: El artículo tuve como objetivo profundizar la situación del sujeto negro em Brasil a partir del concepto freudiano del narcisismo de las pequenas diferencias, así como el concepto de ignoródio propuesto por Quinet, arrojando, así, luz sobre las nefastas  consecuencias de la ausencia de políticas públicas para esta porción de sujetos, que representa más de la mitad de la población brasileña. Utilizamos alguns textos de Freud, datos del Atlas de la Violencia 2019, del Banco Nacional de Seguimiento de Presos (2018), de la Fundación Oswald Cruz y autores contemporâneos para pensar en el racismo que expresa en los datos de salud y de los presos en nuestro pais. El racismo estructural és um problema y el recuento racial debe estar entre los lineamientos de política pública em Brasil.

Palabras clave: racismo contra los sujetos negros; Covid-19; extermínio.

A carne mais barata do mercado é a carne negra

Só-só cego não vê

Que vai de graça pro presídio

E para debaixo do plástico

E vai de graça pro subemprego

E pros hospitais psiquiátricos[1]

Há 132 anos a escravidão foi extinta no Brasil com Lei Áurea. De lá para cá, a população negra no País tem sofrido muito para conseguir igualdade de direitos e oportunidades, como os brancos. Nesta epidemia de Covid-19, as diferenças entre as raças se mostram, muitas vezes, mortais. Ao mesmo tempo em que foram libertos da escravidão, em 1888, os negros se viram condenados à desigualdade. Números do IBGE mostram que, quanto mais pobre é a faixa da população, maior é a porcentagem negra (IBGE, 2019). Dos 13,5 milhões de brasileiros vivendo em extrema pobreza, 75% são pretos ou pardos. Com a pandemia de coronavírus, essa realidade fica ainda mais escancarada: apesar de apenas 13% da população dos Estados Unidos ser composta por negros, eles representam 30% dos pacientes de Covid-19, segundo centros de controle e prevenção de doenças (Cultura UOL Notícias, 2020)

Vivemos um período inédito em nossa história contemporânea, que introduz um ponto de não-saber válido para todos, incluindo os especialistas dos comitês científicos que devem orientar as decisões de nossos governantes. Ninguém sabe até onde isso nos levará. O não-saber diz respeito ao real ao qual cada ser falante é confrontado. Esta é uma realidade à qual todos somos obrigados a obedecer para conter a propagação da pandemia de coronavírus. Como sabemos, de acordo com o discurso dos epidemiologistas, se trata de suavizar a curva para atenuar o pior. Mas todos os especialistas também sabem que isso só cessará quando cerca de 60% da população, país por país, continente por continente, tiver contraído o vírus e, assim, a imunidade coletiva terá feito com que o vírus seja inoperante. É tudo uma questão de alongar o tempo do processo, a urgência sendo a de conter a extensão do desastre (…) (Bousseyroux, 2020).

No dia 6 de agosto de 2018, havia 602.217 pessoas cadastradas no sistema como privadas de liberdade, incluídas as prisões civis e internações como medidas de segurança, distribuídas nas unidades da Federação. Os Estados de São Paulo e Rio Grande do Sul não lograram finalizar a alimentação do cadastro em tempo hábil para a referida publicação. Considerando que vários campos inseridos no formulário de qualificação das pessoas privadas de liberdade são de preenchimento facultativo, as informações aqui apresentadas no presente se referem ao total dos presos em que o dado está disponível. Quanto raça, cor etnia das pessoas privadas de liberdade no país, dos dados incluídos no cadastro da pessoa privada de liberdade, o total de 54,96% foram classificados como pretos ou pardos, contra 42,03% de pessoas brancas na mesma condição (Conselho Nacional de Justiça, 2018). Importante destacar que há 2,47% de pessoas que não se autodefiniram como brancas, pardas, pretas, amarelas e tampouco indígenas – o que dá margem para uma variação nos dados dentre (somente!) os que responderam ao referido campo. E sem considerar aqueles que sequer o responderam. Vale lembrar também que neste registro não estão incluídos os adolescentes em cumprimento de medida socioeducativa de internação ou semiliberdade, que não integraram o escopo do levantamento do (Conselho Nacional de Justiça, 2018).

O Atlas da Violência de 2020 nos fornece dados ainda mais assustadores sobre a situação do negro e da juventude negra brasileiros. Nele verificamos a continuidade do processo de aprofundamento da desigualdade racial nos indicadores de violência letal no Brasil, já apontado em outras edições. Em 2017, 75,5% das vítimas de homicídios foram indivíduos negros (definidos aqui como a soma de indivíduos pretos ou pardos, segundo a classificação do IBGE, utilizada também pelo Sistema de Informações sobre Mortalidade – SIM), sendo que a taxa de homicídios por 100 mil negros foi de 43,1, ao passo que a taxa de não negros (brancos, amarelos e indígenas) foi de 16,0. Ou seja, proporcionalmente às respectivas populações, para cada indivíduo não negro que sofreu homicídio em 2017, aproximadamente, 2,7 negros foram mortos. No período de uma década (2007 a 2017), a taxa de negros cresceu 33,1%, já a de não negros apresentou um pequeno crescimento de 3,3%. Analisando apenas a variação no último ano, enquanto a taxa de mortes de não negros apresentou relativa estabilidade, com redução de 0,3%, a de negros cresceu 7,2%. Curiosamente, será a terra natal de Zumbi dos Palmares que o referido Atlas aponta como sendo a cidade onde “a desigualdade racial dos homicídios fica evidenciada, uma vez que, em 2017, “a taxa de homicídios de negros superou em 18,3 vezes a de não negros”. Assim sendo, a terra de Zumbi dos Palmares é um dos locais mais perigosos do Brasil para indivíduos negros (Instituto de Pesquisa Econômica Aplicada, 2020).

Em duas semanas, a quantidade de pessoas negras que morrem por Covid-19 no Brasil quintuplicou. De 11 a 26 de abril, mortes de pacientes negros confirmadas pelo Governo Federal foram de pouco mais de 180 para mais de 930. Além disso, a quantidade de brasileiros negros hospitalizados por Síndrome Respiratória Aguda Grave (SRAG) causada por coronavírus aumentou para 5,5 vezes. Já o aumento de mortes de pacientes brancos foi bem menor: nas mesmas duas semanas, o número chegou a pouco mais que o triplo. E o número de brasileiros brancos hospitalizados aumentou em proporção parecida. A explosão de casos de negros que são hospitalizados ou morrem por Covid-19 tem escancarado as desigualdades raciais no Brasil: entre negros, há uma morte a cada três hospitalizados por SRAG causada pelo coronavírus; já entre brancos, há uma morte a cada 4,4 hospitalizações, segundo Fonseca, Muniz e Pina (2020, maio). Apesar dos dados mostrarem que negros tiveram maior aumento de óbitos e registram mais mortes entre hospitalizados, o Governo Federal não divulga em detalhes essas informações. Não há, por exemplo, a informação de quantos casos foram confirmados por raça/cor ou o número de testes em negros, brancos e outros grupos, conforme apontam os dados da Escola Nacional de Saúde Pública Sergio Arouca (2020). Segundo José Vicente, reitor da Universidade Zumbi dos Palmares, “a face mais perversa do racismo estrutural no Brasil é justamente essa, porque quando se coloca uma pandemia como a atual percebemos que nessa situação a pandemia tem cor e RG, vai pegar aqueles mais vulneráveis e que não têm os meios e equipamentos para acessar os ambientes de saúde” (Cultura UOL Notícias, 2020).

O mito da democracia racial

Há um consenso entre os autores pesquisados sobre a inexistência no Brasil da chamada democracia racial, por outro lado, também em consenso, os mesmos autores apontam para a existência de um racismo estrutural (Silva & Cruz, 2019; Pereira, 2019; Alves & Lemos, 2019; Rocha, 2019; Silva, 2019; Ribeiro, 2019; Miranda, 2019, Freitas, 2018 e Lucas, 2018). Assim posto, Freitas (2018) aponta para o fato de que os atos genocidas contra o povo negro e os atos violentos contra os jovens desse mesmo recorte racial, hoje, não mais são vistos como problema social haja visto o racismo estrutural presente no Brasil. Rocha (2019) destaca esse mito ao mesmo tempo que diz que ele influencia um imaginário capaz de negar a materialização do racismo no solo brasileiro. E do mesmo modo, Silva (2019) nos propõe que a ideia da democracia racial é falaciosa e faz parte também, junto com a política de drogas , e dos autos de resistência, de uma engrenagem que coloca a máquina racista para operar, e que a sociedade brasileira, bem como as suas instituições e políticas são marcadamente racistas e é necessária a percepção clara desta dinâmica para que se dê início ao necessário processo de superação. Miranda (2019) vai nesse mesmo sentido ao dizer que a subalternidade da população negra não é algo novo, pois foi formatada ao longo de tempo a partir de mecanismo históricos de exclusão e estereótipos negativos, justificados por diversas ciências, de uma falsa democracia racial, e que ainda no século passado foi desmistificada e apontada a existência de um racismo na base estruturante da sociedade brasileira, que atua de forma velada, fazendo com que enfrentemos com naturalidade situações de inferiorização da população negra no país.

Racismo

O racismo no Brasil é estrutural e institucional, e encontra as suas raízes no processo de construção social amparado pelo discurso colonialista dos séculos XIX e XX (Silva & Cruz, 2019; Pereira, 2019; Alves & Lemos, 2019; Rocha, 2019; Silva,2019; Ribeiro, 2019; Miranda, 2019, Freitas, 2018 e Lucas, 2018). Nesse sentido, Alves & Lemos 2019) apontam que a falta de discussão sobre problemas sociais estruturais é o que faz com que esse o discurso racista se propague, Rocha (2019) defende que o racismo também inspira a legislação penal brasileira desde meados do século XIX e a política de drogas desde o início do século XX, Ribeiro (2019) considera que o racismo e o sexismo são estruturantes das desigualdades, especialmente em países periféricos como o Brasil. Lucas (2018) nos traz a compreensão de que há um recorte racializado do usuário de drogas no Brasil, e que há um caráter velado do racismo brasileiro. Amparados por Miranda (2019) podemos dizer que o modus operandi do sistema penal e sua predileção pelo público negro não é uma mera coincidência, mas sim fruto de uma construção que não é episódica, e está intrincada com a reprodução das relações sociais no Brasil que tem, no racismo, seu elemento fundante. Silva & Cruz (2019) nos alertam para o fato de que a negativa do racismo, além de refletir na contemporaneidade, ainda é um fator de resistência na luta pela construção de um país onde a justiça e a igualdade de direitos imperem para todos os cidadãos e cidadãs, independente das diferenças sociais e, em especial, a cor da pele.

Discussão

Freud (1930/2009) esclarece-nos o que realmente está por trás de tudo isto, e que, segundo ele, se pretende desmentir. O autor é claro em nos esclarecer que o ser humano não é um ser amável, manso e que somente se defende quando o atacam, mas que devemos atribuir à sua dotação pulsional uma grande dose de agressividade. E que, assim sendo, o outro não lhe é somente um possível auxiliar objeto sexual, mas, sim, e sobretudo, uma tentação para satisfação sua agressão, e cita as circunstâncias em que isso se dará:

(…) explorar sua força de trabalho sem ressarci-lo, usá-lo sexualmente sem seu consentimento, despossuí-lo de seu patrimônio, humilhá-lo, infligir-lhe dores, martirizá-lo e assassiná-lo. Homo homini lúpus[2]. Quem, tendo em vista as experiências da vida e da História, ousaria pôr em dúvida tal apótema? (Freud, 1930/2009, p.108).

Freud (1930/2009) seguindo seu raciocínio, deixa claro que quando inexistem forças psíquicas contrárias que poderiam inibir a dotação pulsional agressiva, o que se vê é a face de “besta selvagem” do ser humano, que sequer respeita o seu semelhante. O teórico atribui a isso o elemento perturbador dos vínculos entre os humanos, que está em nós mesmos e nos outros, também o que faz com que a cultura desperdice energia. A sociedade culta se encontra sob uma permanente ameaça de dissolução na base desta hostilidade primária e recíproca (Freud, 1930/2009, p.109). (…) Lembra que o que vem do campo do pulsional é mais forte que os interesses racionais, e que “a cultura tem de mobilizar tudo para pôr limites às pulsões agressivas dos seres humanos, para sofrear mediante formações psíquicas reativas suas exteriorizações (Freud, 1930/2009, p.109).

Posto isto, destaca a importância de que os sujeitos sejam impulsionados a efetuarem identificações e vínculos amorosos de mete inibida, e evidencia o fato de que não há nada mais incongruente com a natureza humana do que o mandamento religioso ideal: “amar ao próximo como a ti mesmo”, que, subliminarmente, alimenta a agressão, posto que retoma a referência narcísica, e não o outro semelhante efetivamente. O autor adverte para o fato de que o ser humano nunca está disposto a renunciar a satisfação que obtém a partir de sua inclinação agressiva. A que deu o nome de “narcisismo das pequenas diferenças a essa satisfação relativamente cômoda e inofensiva da inclinação agressiva, cujo intermédio facilita a coesão dos membros da comunidade” (Freud, 1930/2009, p.111). E esclarece onde há um maior risco disso ocorrer: “onde a ligação social se estabelece principalmente por identificação recíproca entre os participantes, ao par que individualidades condutoras não alcançam a significação que lhes corresponderia na formação da massa (Freud, 1930/2009, p.112).

Quinet (2009), em “A estranheza da psicanálise – a Escola de Lacan e seus analistas”, corrobora com o conceito freudiano e propõe que “o narcisismo das pequenas diferenças aparece no grupo como defesa, pois cada um se atém à sua particularidade e diferenças imaginárias para não ser apanhado por essa identificação especular com o outro. Para não ser outrificado, o sujeito se atém às suas mínimas diferenças, provocando as rivalidades imaginárias e à angústia vinculada à competição. (p.105). O referido autor alerta também para o fato de que, no racismo, o que fundamentalmente está em questão é a questão do gozo – mais precisamente do gozo Outro, que vai para além do gozo do UM do poder instituído (supremacia branca, propomos que coloquemos aqui!). E cita algumas outras formas de rejeitar esse gozo, tais como: calar, excluir, torná-lo igual, o Mesmo, através do mecanismo da assimilação – são todas práticas de racismo. E lembra Lacan, em Televisão (1974/1993, p.58) que nos propõe: “deixar a esse Outro seu modo de gozo, eis o que só poderia fazer não impondo o nosso, não o considerando como um subdesenvolvido”.

Quinet, em seu texto “A política do mais-de-gozar” (2018), apresentado no Encontro Nac. da EPFCL-Brasil (SP), nos mostra como o discurso do capitalista corrompe todos os laços sociais com sua mais-valia abrindo as sendas do ultra-neoliberalismo e da segregação em massa. O autor nos lembra que tal política parte da noção de objeto a proposta por Lacan, qual seja: sua face de objeto causa de desejo, mas também sua outra face causa de horror, de abjeção, que pode ser encarnado pelo outro.  O semelhante que comparece não como igual e sim como diferente, podendo ser ameaçador, elemento a ser mapeado, designado como inimigo, marcado para ser perseguido e até eliminado (negros, gays, moradores das comunidades, povos indígenas, comunistas etc.) numa lista de abjetos que não para de crescer. numa lista de abjetos que não para de crescer. O outro do laço social pode incarnar o outro radical – que estruturalmente corresponde ao objeto a, o absolutamente outro – e ser assim objetalizado, alvo de abjeção, violência e até mesmo extermínio. O outro reduzido a um abjeto pode ser alvo do ignoródio (ignomínia/in-nomem = sem nome/que remete também a uma afronta pública), a conjunção das paixões do ódio com a ignorância. Que é a combinatória de paixões explorada pela extrema-direita: a estimulação do ódio, da violência, do medo e da ignorância. O ignoródio expressa o ódio ao saber. Vinculado às formas de negação do saber (recalque, desmentido e a foraclusão).

Quinet (2009), em “A estranheza da psicanálise” pontua que a política da causa analítica é a da separação, e não da segregação. Esta é uma modalidade de separação que parte de um todo, de um conjunto totalizador que exclui, que segrega. A segregação é a ação pela qual se coloca à parte, separa-se de um todo, de uma massa, de um grupo. O apartheid não é uma operação de causação do sujeito. A segregação dessubjetiva, desconsidera o sujeito, trata-o como um rebotalho, um dejeto a ser expulso. Trata-se de uma separação comandada pelo Outro até mesmo ao aniquilamento do sujeito. (…) A política da psicanálise não implica defender a causa do segregado. Trata-se antes da política da separação, que é a da causa analítica. Enquanto ser segregado parte do Outro, separar-se parte do sujeito, enquanto subvertido pelo objeto de seu desejo. (p.38-39). O teórico também destaca que não há por que o analista se “ausentificar” da Cidade dos Discursos. Assim, deixando bem claro o fato de que não tem como o psicanalista ficar de fora de toda essa discussão política que a todos assola.

Considerações finais

Há uma lógica do extermínio que orienta nossas elites, como se houvesse dois tipos de seres humanos – aqueles que servem, e aqueles que usufruem. A covid-19 escancarou a falência absoluta de um modo de vida que só se sustenta nessa nova forma de escravidão de servidores do deus mercado, sem direitos, sem saúde pública, sem Estado, sem bem-estar social, em aceleração tal que só pode produzir deixando como resto a segregação, o lixo industrial e a morte de muitos. E está em nossas mãos a construção de um novo futuro mais digno para os nossos filhos onde A, B e C possam reconhecer-se como humanos, e perceberem-se que só há saída do inferno pelo coletivo (Prates, 2020, 25 de Março). Safatle vai na mesma direção ao nos indicar que a alternativa para a nossa mistura de capitalismo e escravidão “passa pela consolidação da solidariedade genérica que nos faz sentir em uma sistema de mútua dependência e apoio, no qual minha vida depende da vida daqueles que sequer fazem parte do “meu grupo”, que estão no “meu lugar”, que tem as “minhas propriedades”. Esta solidariedade que se constrói nos momentos mais dramáticos lembra aos sujeitos que eles participam de um destino comum e devem se sustentar coletivamente (Safatle, 2020, 27 de março). Todas essas questões são resultado do racismo estrutural que existe na sociedade.

Além de combatê-lo, como raiz do problema, é preciso tomar medidas urgentes para minimizar os impactos negativos da Covid-19 na população negra (Cultura UOL Notícias, 2020). Como vemos: a realidade da vida de muitos sujeitos negros (jovens, homens e mulheres), a partir dos dados apresentados e considerações feitas é a seguinte: se conseguir escapar das muitas arbitrariedades do sistema policial e judiciário (se não for preso!), se não for assassinado restará, ainda assim, o descaso das políticas públicas, agora no contexto da saúde. Viver para a população negra no Brasil é um ato decidido e constante de resistência. Muitos, já efetivamente vulnerabilizados por diversos fatores (também o psicológico!) – que são o resultado de uma política de extermínio “velada” dessa parte da população (e não somente no Brasil. Daí a citar o caso de George Floyd entre tantos outros!) não suportam e sucumbem. Parem de nos matar! Dizia um cartaz que, certa vez, tive oportunidade de ler numa manifestação contra o racismo aos negros no nosso país.

Notas

[1] Yuka, M & Capellette, Ulisses (2002). A carne negra. Warner/Chappell Edições Musicais Ltda.

[2] O homem é o lobo do homem.

Referências

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Como citar esse texto

APA – Mello, R. dos S. (2020). O narcisismo das pequenas diferenças: Covid-19, encarceramento e extermínio dos negros no Brasil. CadernoS de PsicologiaS, 1. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/o_narcisismo_das_pequenas_diferencas.

ABNT – MELLO, R. dos S. (2020). O narcisismo das pequenas diferenças: Covid-19, encarceramento e extermínio dos negros no Brasil. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/o_narcisismo_das_pequenas_diferencas>. Acesso em: __/__/____ .