Revista CadernoS de PsicologiaS

Os desafios éticos na formação profissional do psicólogo

Amanda Marilia Seabra Pereira Leite
Docente do curso de Psicologia do Unibrasil Centro Universitário

Psicóloga (CRP 08/IS - 708) — E-mail: amandamarilialeite@gmail.com
Bruna Guimarães Lopes
Discente do curso de Psicologia do Unibrasil Centro Universitário

E-mail: brunavenuri@gmail.com
Constância Tamyres da Silva Molinetti
Discente do curso de Psicologia do Unibrasil Centro Universitário

E-mail: constanciatamyres@gmail.com
Guilherme Fernandes Machado
Discente do curso de Psicologia do Unibrasil Centro Universitário

E-mail: machadoguif@gmail.com
#Inquietações_teóricas

Resumo: Dentro das principais atividades que o psicólogo pode realizar, a psicoterapia, que é um desdobramento da Psicologia Clínica, ganha destaque em relação às outras áreas de atuação do profissional. Porém, ainda que esse campo de atuação se apresente com perspectivas promissoras, percebe-se que muitos psicólogos atuantes não realizam sua própria psicoterapia. Essa “não realização”, por parte do profissional, foi o que produziu a inquietação para a escrita deste texto, visto que a compreendemos como ferramenta formativa para a atuação do psicólogo, que independentemente de seu campo de atuação, irá trabalhar com subjetividade humana. Para refletir a questão, a partir da metodologia de revisão de literatura, percorremos orientações e resoluções do Código de Ética Profissional do Psicólogo, bem como pressupostos psicanalíticos, dado que a análise pessoal de um analista é um ponto de sustentação para a sua prática.

Palavras-chave: código de ética; psicoterapia; psicanálise.

ETHICAL CHALLENGES IN THE PROFESSIONAL TRAINING OF PSYCHOLOGISTS

Abstract: Among the main activities that a psychologist can perform, psychotherapy, which is an offshoot of Clinical Psychology, stands out in relation to other professional areas. However, even though this field of practice presents promising prospects, it is observed that many practicing psychologists do not undergo their own psychotherapy. This ‘non-undertaking’ by professionals has prompted the writing of this text, as we perceive it as a formative tool for the psychologist’s practice, regardless of their field of specialization, as they will work with human subjectivities. To reflect on this question, using a literature review methodology, we explored guidance and resolutions from the Professional Code of Ethics for Psychologists, as well as psychoanalytic assumptions, given that the personal analysis of an analyst is a cornerstone for their practice.

Keywords: code of ethics; psychotherapy; psychoanalysis.

DESAFÍOS ÉTICOS EN LA FORMACIÓN PROFESIONAL DE LOS PSICÓLOGOS

Resumen: Dentro de las principales actividades que un psicólogo puede llevar a cabo, la psicoterapia, que es un desprendimiento de la Psicología Clínica, destaca en relación con otras áreas profesionales. Sin embargo, a pesar de que este campo de práctica presenta perspectivas prometedoras, se observa que muchos psicólogos en ejercicio no se someten a su propia psicoterapia. Esta ‘no realización’ por parte de los profesionales ha motivado la escritura de este texto, ya que lo percibimos como una herramienta formativa para la práctica del psicólogo, independientemente de su campo de especialización, ya que trabajarán con subjetividades humanas. Para reflexionar sobre esta cuestión, utilizando una metodología de revisión de literatura, exploramos orientaciones y resoluciones del Código de Ética Profesional de los Psicólogos, así como supuestos psicoanalíticos, dado que el análisis personal de un analista es un pilar fundamental para su práctica.

Palabras-clave: código de  ética; psicoterapia; psicoanálisis.

Introdução

Ao longo do tempo, muitos foram os desafios para os percursos formativos e a construção de normas para as melhores práticas profissionais dos psicólogos, categoria que teve sua regulamentação em 27 de agosto de 1962, sob a Lei nº 4.119 (Brasil, 1962). Segundo o Conselho Federal de Psicologia (CFP, 1992), psicólogo é aquele que atua na análise das relações e do comportamento humano, de forma individual ou grupal, agindo como instrumento de intervenção nos processos mentais.

A Resolução CFP n° 23, de 13 de outubro de 2022, regulamenta, ao total, 13 áreas de atuação para o profissional, podendo esse número sofrer atualizações sempre que surgirem novas demandas sociais. Mas, mesmo com todas as possíveis áreas, segundo os dados consolidados pelo CensoPsi, em 2022, a predominância de ocupação dos psicólogos, dentre os que foram entrevistados para a pesquisa, está na clínica e, em segundo lugar, na social (CFP, 2022).

Diante disso, os profissionais que atuam na clínica, norteados pela abordagem escolhida, subsidiam-se na Resolução de nº 10, de 20 de dezembro de 2000, que especifica e qualifica a psicoterapia como parte integrante do escopo de atuação do psicólogo. Essa Resolução define que a psicoterapia, instrumento baseado em métodos e técnicas científicas, deverá ser utilizada para compreender, analisar e intervir no relacionamento terapêutico (CFP, 2000).

Dentro das diferentes abordagens da psicologia, que são referenciais teóricos base para o apoio da interpretação do comportamento e da mente humana, uma pesquisa realizada pelo CFP, que teve como objetivo fomentar estratégias na formação e qualificação para a prática psicoterápica, apontou que as mais utilizadas para o exercício da psicoterapia são: “terapia cognitivo comportamental; psicanálise; gestalt terapia; sistêmica familiar; junguiana; humanista; psicodrama/análise psicodramática; fenomenológica existencial; reichiana; e análise centrada na pessoa” (CFP, 2022).

Porém, para além das atribuições, linhas teóricas e área de atuação de um profissional, há a necessidade de um agir moral e ético, onde ética é definida por Crisostomo, Varani e Pereira (2018, p. 90) como uma normativa para o comportamento humano individual, a fim de evitar conflitos morais, visto que as ações éticas são elaboradas a partir das vivências em sociedade, o que refletirá no coletivo. Já a moral, diz de um conjunto de princípios, normas e regras de ordem prática, atribuindo juízo de valor às atitudes tomadas pelo sujeito em determinada sociedade (Bersano, 2014, p. 51).

Conforme Calligaris (2019), mesmo com a formação contínua após a graduação, apenas parte do aprendizado é diretamente aplicável na carreira. Desse modo, apesar do sentimento de falta comum entre os psicoterapeutas ao constatarem que não há possibilidade de apreensão total do conhecimento teórico, é importante estar advertido que para a aquisição da experiência e da compreensão dos pressupostos psicológicos também está o próprio percurso terapêutico do psicólogo, pois apenas a formação teórica e a atuação prática não formam um terapeuta.

Dessa maneira, entendendo a importância de o psicólogo buscar o próprio processo terapêutico, o CensoPsi 2022 (CFP) demonstrou que os profissionais da psicologia procuram a psicoterapia como uma maneira de formação complementar, a qual é fomentada também durante a graduação. Entretanto, a maioria dos entrevistados naquele documento relata que apesar da consciência de que a psicoterapia é um percurso fundamental para a formação técnica e pessoal do psicólogo, nem todos o fazem. Diante dessa inquietação, perguntamos: o psicólogo que não realiza seu autocuidado, por meio de psicoterapia, conseguirá desempenhar suas atividades profissionais de maneira ética?

Nesse sentido, o objetivo geral desta pesquisa é examinar os desafios éticos que surgem durante a formação profissional de psicólogos; entender suas implicações na prática clínica, com ênfase na ausência de psicoterapia individual; e articular algumas contribuições da psicanálise à psicologia, visto que desde seu precursor, Sigmund Freud, o analista aspirante é advertido sobre a importância da realização da análise pessoal, posto que se trata de um dos pilares da formação e ponto de sustentação do ofício de um psicanalista. Assim, a metodologia utilizada neste artigo será a revisão de literatura.

A construção do código de ética profissional do psicólogo

Em 1975, sob a Resolução n.° 08, de 02 de fevereiro de 1975, foi aprovado o primeiro código de ética, elaborado pela Associação Brasileira de Psicólogos, mas que já estava em vigor desde 1967 (CFP, 1975). A partir de um código de ética (CFP, 2005), espera-se que o profissional esteja alinhado aos seus pares e que as práticas empregadas atendam às demandas sociais emergentes. Adicionalmente, deve guiá-lo aos valores relevantes para a obtenção de um padrão de conduta dentro da categoria em que atua. 

Esse documento é um modelo democrático e reflexivo para que o profissional exerça suas atividades de forma ética, tendo como compromisso as causas emergentes da sociedade (CRP, 2022). De acordo com Crisostomo, Varani e Pereira (2018, p. 49), é por meio da ética profissional que se cria um acordo moral, onde será essencial o cumprimento de obrigações e deveres baseados no exercício profissional que foi escolhido. 

No artigo 1°, do Código de Ética (CFP, 1975), é previsto que o documento será válido até haver necessidade de atualizações e revisões, o que ocorreu quatro anos depois, em 1979, sob a Resolução n° 29, de 30 de agosto de 1979 que estabeleceu e aprovou o segundo código de ética da categoria. A reformulação deu-se pela observação do crescente número de novos profissionais, a mudança para outros campos de trabalho e as novas perspectivas de áreas de atuação (Amendola 2014 apud Veloso, 1980).

De acordo com Amendola (2014), em meados da década de 1980, surge um novo contexto a partir de movimentos criados em direção à democracia, abordando fortemente as questões sociais. Com isso, emerge a necessidade de nova reformulação do código de ética, que teve sua terceira versão estabelecida em 1987, oito anos após o anterior, por meio da Resolução n° 02, de 15 de agosto de 1987.

Em 2005, por conta do contexto do país, das legislações decorrentes e do avanço da psicologia como ciência e profissão, dezoito anos após a edição anterior, sob a Resolução n° 10, de 21 de julho de 2005, foi aprovado o quarto código de ética. A proposta dessa nova construção foi direcionar e dar ênfase para que o psicólogo crie um processo mais reflexivo de sua conduta do que normativo, a partir das orientações disponíveis (CFP, 2005). 

Ainda é importante frisar que o código de ética (CFP, 2005), como proposta de reflexão, foi pautado em discutir os limites e direitos individuais e coletivos, os quais são fundamentais para a execução das atividades, independente do contexto de atuação, como também a relação que é estabelecida entre os usuários ou beneficiários dos serviços que são ofertados.

Espera-se que o código de ética, para o psicólogo, opere de modo colaborativo na construção da identidade profissional, a fim de nortear sua atuação. Porém, a falta de normativas para a psicoterapia torna-se um desafio, visto a necessidade de autoconhecimento como uma das ferramentas disponíveis e necessárias para o avanço com seu paciente no setting terapêutico.

Diante do exposto, pode-se observar que há necessidade de adaptações contínuas às questões éticas, visto que há novas exigências impostas pela sociedade, como demonstrado na evolução do código de ética profissional do psicólogo. O sujeito é protagonista e também efeito de um tempo histórico. Mas, mesmo assim, após todas as reformulações ocorridas, ainda não se observa, no documento, implicação ou obrigatoriedade de realização de psicoterapia pessoal pelo profissional.

O psicólogo e a psicoterapia frente às mudanças no século XXI

O psicólogo, no século XXI, está atravessando mudanças diferentes de seus antecessores. Além de questões de preocupações ética e moral, que se fazem presentes em toda profissão, o avanço da Internet e o fácil acesso a conteúdos diversos em tempo real, são algumas das mudanças da atualidade. Se de um lado temos a facilidade na obtenção de conhecimento científico sobre diversos questionamentos que acometem a saúde mental do ser humano, de outro temos promessas de curas rápidas e desinformação, propagados por profissionais ditos promovedores da saúde, alheios à área da psicologia, que ao invés de trazer benefícios colocam em risco a saúde mental da sociedade em todas as faixas etárias.

Diante desses fatores, vemos a necessidade de se fazer uma psicologia pautada na ciência e na ética, para que seja possível proporcionar escuta e intervenção adequadas aos pacientes, sendo um agente de mudança da realidade. Dentro da perspectiva da ciência psicológica, temos o compromisso com as urgências e as necessidades da maioria da população, se afirmando como ciência importante à toda sociedade brasileira. Nesse sentido, os psicólogos trabalham auxiliando na ressignificação das experiências, potencializando as pessoas, fazendo com que sejam agentes de transformação de si mesmas e do mundo (Bock, Furtado & Teixeira, 2018). Ressignificação esta que proporcionará a seus pacientes o encontro com uma nova perspectiva, a partir do reposicionamento de suas experiências passadas. 

Por estarmos inseridos em uma sociedade que está em constante transformação, em decorrência de fatores ambientais, econômicos, tecnológicos e sociais, vemos o profissional da psicologia ganhando cada vez mais espaço, implicando em constante atualização de suas técnicas e práticas. Implicação que não é novidade ao profissional que está atento às necessidades do tempo histórico da sociedade em que atua. Por isso, cabe à psicologia e ao psicólogo participarem da contínua luta em favor das garantias de direito, de uma atuação ética do profissional, bem como seguir apoiando seus pacientes na construção de subsídios para mudanças individuais que impactarão em sua relação com o meio em que está inserido. Neste sentido, Martin-Baró (1996, p. 17) aponta que “(…) não há saber verdadeiro que não seja essencialmente vinculado com um saber transformador sobre a realidade, mas não há saber transformador da realidade que não envolva uma mudança de relações entre os seres humanos”. 

Dessa maneira, apesar de um olhar histórico e ético da ciência psicológica e dessa profissão às questões sociais emergentes, nos causa inquietação a ausência de resolução específica sobre a obrigatoriedade da psicoterapia pelo próprio psicólogo, posto que essa é umas das ferramentas fundamentais para o exercício de um trabalho técnico – científico, responsável e ético com seus pacientes. Se não há busca voluntária pelo próprio profissional à psicoterapia, também o Conselho Federal de Psicologia não torna mandatório que seus profissionais passem por testes de conhecimentos ou realizem psicoterapia para a atuação profissional. 

A fim de formar profissionais psicólogos que levem a sério o compromisso ético nessa profissão, desde o início da graduação os estudantes são orientados a iniciarem seu processo de psicoterapia, tendo em vista que durante a formação ocorrem situações que podem desencadear questões emocionais, seja durante as leituras iniciais sobre as técnicas, análises de casos em sala de aula e até quando ocorre contato com os pacientes na realização dos atendimentos em estágios supervisionados. Ou seja, durante todo o período de formação, fatores do contexto de cada discente podem acarretar angústias e conflitos psíquicos (Franco, 2001 apud Meira & Nunes, 2005, p. 341).

Calligaris diz que: 

(…) a peça-chave para a formação de um psicoterapeuta é o tratamento que o mesmo se submete, esperando que dessa experiência de autoanálise, a descoberta das próprias complexidades, sintomas e fantasias, conscientes e inconscientes, tragam uma variedade de sofrimentos humanos, parecidos com aqueles que irão afligir seus pacientes. (Calligaris, 2019, p. 98).

Desta forma, o profissional da psicologia precisa manter-se atualizado, seja em suas técnicas, assim como, em seu próprio processo de autoanálise. Logo, dentro das práticas da profissão, a psicoterapia faz-se presente não apenas como autocuidado do profissional, mas sendo parte fundamental para a realização do trabalho psicoterapêutico com seus pacientes.

Para Davidoff (2001, p. 59), “(…) a psicoterapia pode ser vista como uma tentativa de construir experiências que permitirão às pessoas enfrentarem a vida de uma forma mais satisfatória e produtiva”. Desse modo, a intervenção que o psicólogo realiza é intencional, planejada, fundamentada em seus conhecimentos específicos, com base na ciência. A psicoterapia tem como função reduzir o sofrimento, auxiliar na superação de conflitos e ampliar o autoconhecimento, conforme citam Bock, Furtado e Teixeira (2018), atuando para que as pessoas resgatem sua saúde mental, ressignificando experiências e fornecendo subsídios para a melhora da qualidade de vida.

O psicólogo, antes de profissional, é um sujeito com suas próprias questões, angústias, história pessoal, que, apesar de conhecer as técnicas, precisa estar advertido de suas questões emocionais para realizar o seu trabalho, caso contrário, corre o risco de fazer espelho com a história de seu paciente. Bock et al. (2015) apontam que o trabalho terapêutico visa romper e/ou recuperar o sujeito do seu processo de fragilização, dessa forma, sendo o psicólogo também sujeito, cabe a ele essa responsabilidade de buscar reconstruir a história do próprio sofrimento para que possa verdadeiramente dar lugar à singular dor de seu paciente: “(…) se atuamos na clínica, no sentido terapêutico, trabalhamos para romper os processos de fragilização nos sujeitos”, como afirmam Bock et al. (2015, p. 198). Dessa forma, se faz necessário que o próprio psicólogo reconheça aquilo que o fragiliza.

Yamaguchi (1996, apud Meira & Nunes, 2005) diz que a psicoterapia é o momento de rever as próprias dificuldades, para então entrar em contato com seus próprios pacientes, assumindo, assim, a sua postura profissional. Ou seja, se faz necessário ouvir sem julgamentos e estar confortável com as próprias dores para poder escutar e auxiliar nas demandas daqueles que o procuram. Nesse sentido, a análise pessoal adverte o profissional quanto às suas questões viabilizando mais cuidado no manejo clínico, posto que diminui as chances de misturar suas questões com as dos pacientes atendidos.

Breves contribuições da Psicanálise à Psicologia

Aos alunos que se identificam com a psicanálise, ainda durante o período de graduação é provável que percebam algumas diferenças quanto aos processos de formação da Psicologia e da Psicanálise. Sustentada enquanto ofício a partir de um tripé: análise pessoal, supervisão dos casos clínicos atendidos e permanente formação em instituições psicanalíticas que viabilizam a circulação de palavras, a Psicanálise pode contribuir com os estudantes da psicologia ou psicólogos formados ao dar suma importância à análise pessoal no ofício de escuta(dor) do sofrimento humano, o analista, conforme Calligaris (2008, p. 55) “(…) uma peça-chave da formação de um psicoterapeuta é o tratamento ao qual ele mesmo se submete”.

Corroborando com essa ideia, que é sobretudo freudiana, Ferraz (2014, p. 90) argumenta que existe consenso de que a análise pessoal é imprescindível na formação do psicanalista pelo seguinte motivo: “(…) o objeto na psicanálise não pode se apresentar de forma exclusivamente intelectiva, mas, sim, na experiência”. Nesse sentido, a análise pessoal é uma experiência única e intransferível, no qual o sujeito irá (re)montar quantas vezes forem necessárias fantasias fundamentais que originaram o seu sofrimento atual. 

Logo, “(…) o ofício de analisar não se resume a conhecimentos técnicos de um dado método de trabalho, mas pressupõe a participação do instrumento psíquico do analista na tarefa de acompanhar o analisando em sua própria descoberta” (Ferraz, 2014, p. 91). Portanto, o analista, ciente da responsabilidade que o seu desejo de ser analista implica, colocar-se-á em posição de analisando, uma vez que sabe consciente e inconscientemente que a própria escuta compõe o ofício da ética da psicanálise, que se inicia e se sustenta a partir do próprio mergulho em sua história. Portanto, (re)conhecer fantasias, expectativas e inclinações que procedem de si mesmo faz da formação do analista condição sine qua non

Dessa forma, é pela análise pessoal que o sujeito poderá se (des)conhecer, já que uma vez determinado pelas formações de seu inconsciente, não obterá uma totalidade sobre a própria história, mas conhecerá as várias faces do sofrimento humano, conforme Calligaris (2008, p. 55) “(…) não há melhor introdução à variedade do sofrimento humano do que a descoberta de que, em algum canto de seus pensamentos, ele pode encontrar palavras, lembranças, razões, visões e pensamentos parecidos com aqueles que afetam, agitam ou mesmo enlouquecem seus pacientes”. 

Portanto, uma das contribuições que a psicanálise pode dar à psicologia é a de advertir sobre a importância da psicoterapia pessoal na formação profissional do psicólogo, visto que considera a caminhada sobre a própria história um dos pontos de sustentação para o exercício ético do ofício de analista. 

(In)conclusão

Destarte, (in)concluindo (porque as inquietações deste texto permanecem latentes e sem respostas), apontamos que psicologia e psicanálise não são ciências que possuem o mesmo objeto de estudo. Tampouco propõem o mesmo direcionamento clínico e formação profissional, já que para exercer o ofício de psicanalista, até este momento, a graduação em psicologia não é obrigatória. No entanto, sem nos aprofundarmos nas várias aproximações e distanciamentos que existem na formação em psicologia e na psicanálise, há uma reflexão importante e que foi justamente o que impulsionou este artigo, a saber: a ausência de resolução específica que advirta e regule o processo de psicoterapia por parte os psicólogos. 

(Re)conhecer a história do próprio sofrimento é um modo de se apropriar do vivido. Nesse sentido, o que é psicoterapia senão um reencontro do sujeito com a dor que viveu e a sua elaboração? Seguindo essa ideia, como é possível um psicólogo exercer a escuta se ele mesmo não passou pela condição de ser escutado? Escutar e falar são posições subjetivas um tanto distintas, visto que a primeira se propõe a debruçar-se sobre o sofrimento do outro sem tomá-lo para si, exigindo distanciamento na escuta, conquanto, a segunda, convoca a exprimir em voz, com palavras, conteúdos psíquicos que muitas vezes são insuportáveis de fazê-lo. Logo, como é possível um profissional escutar sobre o sofrimento sem ao menos ter falado a respeito? Que não esqueçamos! O ser humano, no início do seu desenvolvimento, aprende a falar a partir do que ouve, demonstrando que só há escuta possível se houver fala. 

Nesse sentido, assim como a psicanálise é uma práxis que se sustenta na articulação teórica com a clínica, indicando um lugar importante para essa experiência, a psicologia, apesar das muitas diferenças em sua fundação, objeto de estudo, pressupostos técnico-científicos, também é uma experiência do singular e, como tal, deveria ser operada por profissionais que levem a sério o processo do autoconhecimento, que não se reduz a um trabalho realizado do profissional para com ele mesmo, mas no compromisso ético de buscar um outro profissional que possa fazê-lo. Assim, como todo exercício profissional remete a um tempo histórico, intuímos, neste artigo, provocar uma reflexão aos recém-psicólogos e aos de longa data na profissão sobre a importância da psicoterapia em sua atuação profissional, posto que sendo o cerne da atuação do psicólogo lidar com a singularidade das questões que acometem o sujeito, no qual o sofrimento é uma delas, afirmamos que só há lugar para a diferença quando o sujeito se propõe a falar sobre o que ainda não sabe sobre si, sendo essa uma valiosa contribuição da psicanálise à psicologia.

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Como citar esse texto

ABNT — LEITE, A. M. S. P, LOPES, B. G., MOLINETTI, C. T. S., MACHADO, G. F. Os desafios éticos na formação profissional do psicólogo. CadernoS de PsicologiaS, n. 4 Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/os-desafios-eticos-na-formacao-profissional-do-psicologo/Acesso em: __/__/___.

APA — Leite, A. M. S. P, Lopes, B. G., Molinetti, C. T. S., Machado, G. F. (2023). Os desafios éticos na formação profissional do psicólogo. CadernoS de PsicologiaS, 4. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/os-desafios-eticos-na-formacao-profissional-do-psicologo/