ERRATA: Na edição impressa deste volume, o texto “Os impasses na transferência dentro de um hospital geral: um relato de experiência” teve a descrição da autora Francine Pinheiro grafada erroneamente pelo o texto “Residente de psicologia no eixo de atenção cardiovascular no CHC-UFPR”. Favor considerar a versão apresentada a seguir:
Francine Pinheiro — Psicóloga da Unidade de Estabilização Psiquiátrica (UEP) em Curitiba.
Psicóloga (CRP-08/27872) — E-mail: fraancine.p@hotmail.com
Resumo: Atender em um hospital geral por rotina consiste na oferta do serviço de psicologia para os pacientes internados, porém isso não significa que este possua uma demanda para tal especialidade. A partir do momento em que essa oferta é realizada, pode-se abrir um caminho para uma demanda. O presente trabalho apresenta um relato de experiência acerca do acompanhamento de um paciente, enfatizando a subjetividade e a importância da escuta clínica. Discorre sobre a atuação da psicóloga, supervisionada pela abordagem psicanalítica, visando o recolhimento de alguns pontos do caso, a título de demonstrar os pontos de impasses encontrados na relação transferencial que interferem nessa prática. Utilizou-se registros de sessões privativos da psicóloga durante internamento e acompanhamento ambulatorial. Os resultados obtidos foram as conclusões acerca dos motivos pelos quais houve o encerramento dos atendimentos e onde a psicóloga interferiu nos momentos em que a escuta era necessária.
Palavras-chave: Escuta; Impasses; Transferência.
THE IMPASSES OF TRANSFERENCE: AN EXPERIENCE REPORT
Abstract:Routine care in a hospital infers the offer of listening, but not the demand on the part of the patient. However, from the moment listening becomes possible, the way is open for it. This paper presents an experience report on the follow-up of a patient, emphasizing subjectivity and the importance of clinical listening. It discusses the performance of the psychologist, supervised by the psychoanalytic approach, with the aim of collecting some points from the case in order to demonstrate the impasses encountered in the transference relationship that interfere with this practice. The records of the psychologist’s private sessions during hospitalization and outpatient follow-up were used. The results obtained were the conclusions about the reasons that led to the closure of the sessions and where the psychologist interfered in the moments when listening was necessary.
Keywords: Listening; Impasses; Transference.
LOS IMPASSES EN LA TRANSFERENCIA: INFORME DE UNA EXPERIENCIA
Resumen: La atención rutinaria en un hospital infiere la oferta de escucha, pero no la demanda de la misma por parte del paciente. Sin embargo, desde el momento en que la escucha se hace posible, se abre el camino para ello. Este artículo presenta un informe de experiencia sobre el seguimiento de un paciente, haciendo hincapié en la subjetividad y la importancia de la escucha clínica. Discute la actuación del psicólogo, supervisada por el abordaje psicoanalítico, con el objetivo de recoger algunos puntos del caso para demostrar los impasses encontrados en la relación de transferencia que interfieren en esta práctica. Se utilizaron los registros de las sesiones privadas del psicólogo durante la hospitalización y el seguimiento ambulatorio. Los resultados obtenidos fueron las conclusiones sobre los motivos que llevaron al cierre de las sesiones y dónde el psicólogo interfería en los momentos en los que era necesario escuchar.
Palabras-clave: Escucha; Impasses; Transferencia.
O
trabalho de psicologia na residência no Programa Multiprofissional em Atenção Cardiovascular no Complexo Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná consiste em atendimentos aos pacientes realizados por rotina em enfermaria cardiológica e Unidade Coronariana (UCO), com supervisão na abordagem psicanalítica. Visa-se acompanhar os pacientes durante internação pelos setores da cardiologia (enfermaria e UCO) e em alguns casos, acompanhamento ambulatorial pós alta.
A psicanálise nas supervisões e atendimentos é utilizada como um instrumento teórico. Logo, o atendente oferta uma escuta clínica pensada com a finalidade de colocar o inconsciente do paciente no campo da ciência. Freud (1912/2015) cita em Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise, a ‘regra fundamental da psicanálise’: a associação livre, que consiste em que o paciente comunique tudo o que lhe vier à mente sem crítica ou seleção.
O conceito de transferência também deve ser mencionado, visto que é a partir dos seus efeitos que a prática clínica acontece. A transferência pode ser definida como o momento em que o atendente entra na série psíquica dos ‘clichês estereotípicos’ do paciente, ou seja, o paciente possui uma maneira repetida e constante de relacionar-se com o outro, e isso vai sendo reimpresso no decorrer da vida. Essa forma de relacionar-se também é dirigida ao atendente, porém, o paciente não se dá conta disso (Freud, 1913/2015).
A doença e o contexto hospitalar surgem como uma ruptura para o indivíduo, que se depara com um desconhecido à sua frente, algo que lhe invade e nada tem-se a fazer, a não ser depender do saber médico para a obtenção da cura. É a marcação da finitude do corpo físico (Botega, 2006). A oferta da escuta pode vir a calhar nesse momento em que o saber imposto no contexto hospitalar é o do discurso médico, abrir espaço para o saber sobre si desse sujeito pode ampliar horizontes, trazer à tona o que está imerso no inconsciente.
O presente trabalho apresenta um relato de experiência acerca do acompanhamento de um paciente no internamento e pós alta em ambulatório, enfatizando a subjetividade e a importância da escuta clínica. Considerando isso, o trabalho discorre sobre a atuação da psicóloga, supervisionada semanalmente, objetivando o recolhimento de alguns pontos do caso, não todos, a título de demonstrar os pontos de impasses encontrados na relação transferencial que interferem nessa prática além da elucidação acerca da escuta clínica. Justifica-se pela abordagem da temática da clínica psicanalítica em um contexto hospitalar.
O relato de experiência retrata a trajetória da residente de psicologia no ano de 2021 junto ao Programa de Residência Multiprofissional no eixo de concentração cardiovascular. O local dessa vivência foi o Complexo Hospital de Clínicas da Universidade Federal do Paraná, de modo que o caso acompanhado pela residente foi supervisionado semanalmente pelo preceptor em orientação psicanalítica. Os atendimentos ocorreram na Enfermaria Cardiológica e na Unidade Coronariana ao longo de um mês, e, após a alta, por mais seis meses semanalmente no Ambulatório de Psicologia Cardiovascular. Para que este relato fosse possível, utilizou-se como instrumento todos os relatos de sessões dos atendimentos realizados pela residente. Considerando que este trabalho apresenta um relato de experiência, os resultados foram apresentados na primeira pessoa do singular. A discussão e análise teve como embasamento os princípios psicanalíticos freudianos em relação ao aspecto transferencial.
Joaquim (nome fictício), 51 anos, separado, caçula de uma prole de 4 filhos (Augusto, Roseli, Marcela e ele), chegou na unidade referenciada do Hospital de Clínicas e foi avaliado por mim quando foi transferido para a Unidade Coronariana (UCO). Na época, os atendimentos ocorriam por rotina, logo, não era necessário haver uma demanda para que este fosse realizado. No dia em que fui ofertar a primeira escuta à Joaquim, eu expliquei que estava ali para saber como ele se sentia e que o atendimento consistia que ele pudesse falar aquilo que desejasse, enfatizando o sigilo dos atendimentos. Joaquim me contou que descobriu uma insuficiência cardíaca com fração de ejeção reduzida há 16 meses, confessou não ter uma boa aderência medicamentosa, além de consumir bebidas alcoólicas e tabaco. Naquele período, sua fração de ejeção estava em 23%.
A preocupação inicial de Joaquim era o tempo de internamento. Ele ficou desempregado recentemente e sua rotina girava em torno de “acordar, comer, beber e dormir” (sic). No final do segundo atendimento, Joaquim questionou-me como poderia conseguir a liberação para entrada de alguns pertences, orientei que seria necessário que a equipe de enfermagem fizesse essa autorização, sendo que ele mesmo poderia solicitar isso. Porém, após atendimento eu mesma comuniquei tal informação à equipe.
Joaquim afirmou que compreendeu a sua doença após diversas conversas com o médico. Declarou “o doutor deixou bem claro que meu coração está assim por conta da bebedeira” (sic) e mais adiante constatou que encontrava-se “conformado” (sic) com o longo internamento, justificando que “o importante é sair do hospital em um bom estado para voltar à rotina” (sic).
Quando Joaquim recebeu alta da UCO e foi transferido para a enfermaria (era uma segunda-feira), ele passou a verbalizar mais sobre os planos para o pós alta, e contou sobre a irmã Marcela. Ela cuidava de sua casa enquanto ele estava internado, fez modificações do seu agrado. Joaquim apresentou resistência às interferências da irmã e se queixava que ela telefonava e passava horas conversando, mostrando-se muito apressada “ela fala demais e coloca a carroça na frente dos bois” (sic). Ao término da sessão com Joaquim, acordei o dia em que retornaria para atendê-lo (quinta-feira) e ele me questionou se atenderia na UCO neste intervalo, eu respondi que sim, então ele diz “qualquer coisa eu subo de volta pra lá na quarta com você, mas é brincadeira” (sic).
Em sua primeira consulta no ambulatório, Joaquim perguntou: “não dá para voltar? porque tá tudo diferente agora” (sic). Questionei sobre isso, ele me referiu que é no sentido de continuar internado e relacionou como foi esta saída do hospital. Joaquim referiu que retornou à lanchonete na qual costumava beber “não tem mais graça…ficou um papo chato, sem a cerveja não tem graça” (sic). Contou que tem conseguido manter a rotina de acordo com o que foi orientado em internamento, “mas o problema tem sido o álcool” (sic). Afirmou que quando se sentia sozinho, a lanchonete era o lugar em que ele frequentava para conversar e beber. Com demasiado entusiasmo, Joaquim contou que experimentou açaí e gostou, relacionou isso às possibilidades que se mostram à sua frente “é como se fossem dois lados, o da esquerda eu conheço, agora tenho que ir pro direito” (sic), também revelou que não se sente mais sozinho e que a irmã “tem ficado muito em cima, ela até me trouxe aqui” (sic). Ao término dessa sessão, eu questionei “o que tem o caminho da direita? Você afirmou que não o conhece, será que vale a pena experimentar do mesmo modo como foi com o açaí?” (sic).
No decorrer dos atendimentos ambulatoriais pode-se notar uma mudança em relação àquilo que Joaquim possuía como rotina. Certo dia afirmou que “o saguão (do prédio onde reside) agora é a nova lanchonete” (sic) e, o contato com as pessoas se diversificou. Também revelou que percebe que está “conseguindo se controlar mais em relação à bebida e fazendo as caminhadas diariamente” (sic).
A interferência de Marcela nas decisões de Joaquim desagradava-o, ele referiu que ela chegava em sua casa sem ser convidada, organizava a casa dele do jeito dela, comprava os produtos que ela gostava e levava marmitas para que ele não precisasse cozinhar. Queixava-se disso constantemente nos atendimentos. Certo dia, ele chegou enfurecido afirmando “desta vez eu dei um basta nela (Marcela)! Até proibi sua entrada, avisei lá na portaria” (sic), e revelou que Marcela foi na lanchonete e no saguão do prédio e questionou se Joaquim bebia e fumava escondido dela, soube disso porque um colega lhe contou, mas ele não tirou satisfações com a irmã. No dia seguinte ao ocorrido, ele dispensou Marcela, e comunicou à portaria que sua entrada estava proibida. Desde então, Joaquim responde as mensagens da irmã “de vez em quando com muita demora” (sic).
Em meados de outubro, a irmã Roseli convidou Joaquim para passar as festas de fim de ano em sua casa, onde estariam presentes os quatro irmãos. Porém, com o “basta” que ele deu em Marcela, reconsiderou o seu comparecimento neste momento, pois “não podia suportar a presença de Marcela” (sic). Verbalizou sobre o “basta” e o “alívio que sentiu”, e não se demorou em falar dos aprendizados que teve com a irmã Marcela, reconhecendo o cuidado que ela teve com ele, mas que naquele momento “era demais” (sic). Eu finalizei essa sessão colocando os seguintes questionamentos ao paciente “como é ter alguém se metendo na sua vida? Como é uma mulher se metendo em sua vida?”.
Na sessão seguinte, Joaquim surgiu com a seguinte resposta: “o que você perguntou na semana passada, eu pensei muito sobre, como é uma mulher mandando em mim, eu penso na infância, os pais sempre ensinaram a respeitar a professora como se fosse mãe…naquela época eram só professoras, no ginásio vieram os professores, também deveriam ser tratados como pais, com muito respeito” (sic). Também revelou a forma como uma criança deve ser tratada “tem que ser protegida, cuidada” (sic) e verbalizou sobre como ele idealizava que todas as crianças deveriam ser cuidadas, “eu gosto de fazer as crianças felizes” (sic), questionei “qual a criança que fica feliz quando você faz outra criança feliz?” (sic) ele respondeu “é a criança em mim, o Joaquim” (sic), indaguei “como você pode fazer para cuidar da sua criança?” (sic) e assim a sessão se encerra.
É necessário pontuar que, no decorrer dos atendimentos em ambulatório notou-se a pontualidade do paciente, inicialmente ele chegava antes do período marcado, no decorrer passou a atrasar-se até 10 minutos na sessão. Até o dia em que não compareceu ao atendimento.
Na semana em que se sucedeu à falta, Joaquim atrasou cerca de 20 minutos. Chegou verbalizando “o quanto é horrível ter gente se metendo na minha vida” (sic), mencionou a sua irmã e duas situações que envolviam colegas de trabalho, no qual aconteceram coisas desagradáveis ao paciente e este chegou no seu “limite”, a ponto de dar um tapa na cara de um homem e xingar uma mulher. E, novamente, referiu-se à Marcela “mas os nossos anjinhos da guarda se cruzaram e fez com que eu não estourasse nesse ponto” (sic), o restante do atendimento girou em torno do incômodo que ele sente com ela. Ao término da sessão, eu apontei ao paciente “Joaquim, é interessante a maneira como você contou as coisas hoje, você falou do homem e da mulher que teve conflitos no trabalho e que chegou ao extremo de estourar, e em seguida você falou da Marcela, de que com ela você não precisou estourar, você pensou nisso antes que acontecesse. Tem algo a me dizer sobre isso?” Ele desviou do assunto justificando que estava no horário da sessão encerrar, e que percebeu que eu estava cansada e me deu dicas de como fazer para dormir melhor.
O término dos atendimentos ocorreu quando no dia anterior à consulta, Joaquim enviou uma mensagem dizendo que desejava encerrar os atendimentos. Eu lhe ofereci uma sessão de encerramento, o mesmo apenas visualizou e não respondeu.
O caso em questão pode ser discutido e interpretado por diversas nuances. O que escolhi discutir e me aprofundar foi a questão de mais difícil acesso: o que houve para Joaquim ter decidido encerrar os seus atendimentos? Muitas coisas me vêm à cabeça, tentarei descrevê-las na medida em que o próprio Joaquim se mostra.
Na época não havia me ficado clara a demanda inicial do paciente, visto que, atender por rotina infere a oferta da escuta, mas não necessariamente que o paciente esteja disposto a falar. No primeiro atendimento, eu deixo claro a regra fundamental inferida por Freud, da associação livre, na qual consiste em que o paciente possa falar tudo aquilo que lhe vier à mente (Freud, 1913/2015). Além disso, enfatizo a questão do sigilo, me colocando na posição de alguém a quem ele pode falar o que desejar sem receios de estar sendo julgado.
Inicialmente, Joaquim não possuía uma demanda, mas a partir do momento em que se possibilitou a escuta, abriu-se caminho para tal. Moretto (2002), afirma que a demanda está relacionada ao sintoma, ou seja, o paciente pode demandar a cura do seu sintoma, embora o seu desejo seja permanecer com ele.
Após alguns atendimentos, eu pude compreender gradativamente: Joaquim demandava cuidados e eu, sem me dar conta, respondi a isso. Estar me comunicando com a equipe para que esta liberasse a entrega de alguns pertences do paciente me colocou em uma posição de possível cuidadora. Vale ressaltar que naquele período eu não sabia dizer o que este paciente demandava. E, no decorrer da internação, pode-se notar a demanda de cuidado quando ele refere se poderia retornar à UCO para ser atendido no período em que eu não estaria na enfermaria e no primeiro atendimento ambulatorial quando ele questiona se não dá para voltar.
De acordo com o que Joaquim foi compreendendo acerca de sua doença, o abuso do álcool mostrava-se bem demarcado, na medida em que ele expressa “o doutor deixou bem claro que meu coração está assim por conta da bebedeira” (sic). Porém, quando eu levava o caso para a supervisão, me vinha à mente que esse paciente retornaria ao uso de álcool assim que colocasse os pés para fora do hospital. Recordo-me que na época a equipe multiprofissional solicitava que eu convencesse o paciente a tratar-se à base de remédios, não aceitei essas sugestões, apenas trabalhava com as questões que Joaquim me trazia.
Me dei conta apenas a posteriori ao encerramento dos atendimentos que, algo me fugiu à percepção, Joaquim me contou que sua rotina antes de estar internado consistia em “acordar, comer, beber e dormir” (sic), pude associar com uma verbalização que o paciente trouxe após compreender sua doença, que “o importante é sair do hospital em um bom estado para voltar à rotina” (sic), ou seja, era como se o paciente quisesse me antecipar algo parecido com “tenho que voltar à rotina de acordar, comer, beber e dormir”. Isso me fez remeter ao conceito de atenção uniformemente suspensa. Freud (1913/2015) apresenta a atenção uniformemente suspensa como a contrapartida da associação livre, seria o atendente, abandonar-se ao próprio inconsciente “como um órgão receptor, na direção do inconsciente transmissor do paciente” (p.70). Logo, eu não permiti esse abandono, visto que minha atenção estava concentrada e, apenas a posteriori ao encerramento dos atendimentos percebi o que o meu inconsciente havia colocado naquele momento.
O paciente mostrou que eu estava errada em relação à minha hipótese, pois afinal ele recebeu alta, e apesar “do problema estar sendo o álcool”, Joaquim não voltou a beber. Pelo menos no período em que ele realizou o acompanhamento ambulatorial comigo.
Na medida em que as sessões foram ocorrendo, a transferência se tornou resistência, pois quando eu fazia as associações a fim de trazer algo à tona ao paciente, ele se retraía. Um exemplo claro é quando eu interrogo acerca da relação que ele possui com a irmã. Entrou em voga a imago infantil, ou seja, nada inconsciente pode ser trazido à consciência, e quanto mais eu tentei aprofundar essa questão de Joaquim, mais resistência criou-se (Freud, 1913/2015).
Quando percebi que eu me adiantei colocando alguns questionamentos ao paciente, me dei conta de que eu também coloquei a ‘carroça na frente dos bois’, visto que, isso foi dirigido à mim em supervisão. E o paciente via sua irmã Marcela como alguém que “fala demais e coloca a carroça na frente dos bois” (sic). Estaria eu me identificando na posição transferencial de irmã do paciente?
Reconheço que, eu me posicionei como uma tal cuidadora (assim como a irmã) na medida em que ambicionava algumas coisas, a priori isto não foi me trazido à luz. Porém, após análises e supervisões, refleti que eu desejava que Joaquim pudesse perceber que é capaz de cuidar de si, não necessitando haver interferência da irmã ou de outros à sua volta, tal como o cuidado que ele recebeu quando foi internado. E quando eu questionei sobre o caminho da direita, era no intuito do paciente reconhecer que ele pode experimentar novas experiências. Tal questionamento entrou na cena como uma sugestão, e novamente, eu não estava exercendo naquele momento a contrapartida da associação livre, eu estava realizando uma escuta seletiva e ainda sugestionando acerca de um ‘simples’ fato. Sendo que, nesta mesma sessão, Joaquim havia se referido à sua irmã como alguém que “tem ficado muito em cima”, ou seja, nessa mesma sessão, o paciente me deu dicas do quanto ele não gosta das interferências das pessoas que sugestionam à ele, especificando isso com a irmã.
Vale-se refletir sobre o lapso que o paciente teve quando referenciou que o questionamento que havia sido feito foi “como é uma mulher mandando nele?” ao invés de “como é ter alguém se metendo na sua vida? Como é uma mulher se metendo em sua vida?”. E logo, Joaquim correlaciona isso à sua infância. Em sessões posteriores, Joaquim utiliza a expressão “se metendo em minha vida” (sic) para referir-se àquilo que a irmã faz e não lhe agrada. Tendo em vista a minha hipótese: estou na posição transferencial da irmã do paciente, retomo à que Freud (1913/2015) escreveu sobre tipos de transferência:
Temos de nos resolver a distinguir uma transferência ‘positiva’ de uma ‘negativa’, a transferência de sentimentos afetuosos da dos hostis e tratar separadamente os dois tipos de transferência para o médico. A transferência positiva é ainda divisível em transferência de sentimentos amistosos ou afetuosos, que são admissíveis à consciência, e transferência de prolongamentos desses sentimentos no inconsciente. Com referência aos últimos, a análise demonstra que invariavelmente remontam a fontes eróticas. (p. 64)
O lugar em que eu estava ocupando transferencialmente era o da irmã, quando eu deveria ser o semblante dela. O tratamento remonta às fontes eróticas, e a resistência surgiu com maior teor, chegando ao ponto da desistência. Como citei anteriormente, Joaquim havia me dado uma dica do quanto ele não gosta de sua irmã “se metendo” em sua vida e mostrou claramente sua reação a este fato: deu um “basta” nela. Logo, nas entrelinhas ele me deu um recado, porém, eu sem escutar, entrei na posição sugestiva, saindo da neutralidade e mudei o caminho da cura.
Quando o tratamento chegou neste ponto, as minhas ambições e a minha recapitulação do motivo ao qual o paciente continuava vindo nas sessões fizeram com que eu entrasse no “processo de procurar a libido que fugira do consciente do paciente” (p. 65, 1913/2015), e entrasse no campo inconsciente. Logo, a minha percepção que Joaquim seria capaz de cuidar de si, também entrou no campo do inconsciente e os efeitos sobre essa minha fala apareceu nas sessões seguintes, com os atrasos, a falta, o “basta na irmã” e o encerramento dos atendimentos. Freud (1913/2015) enfatiza que o paciente irá lutar para manter-se em sua posição de conforto (neurose), foi o que ocorreu com Joaquim.
Moretto (2013) afirma que devemos ter cuidado com o nosso desejo pessoal, pois a cura analítica não se resume à extração do sintoma original, ao contrário, é mais complexo do que se imagina. Logo, enfatizo que o tratamento foi-se perdendo de vista na medida em que eu ambicionei e minha escuta passou a ser direcionada, sem que eu pudesse me dar conta a tempo. Como Joaquim não pôde chegar mais perto da irmã, ele desistiu do tratamento.
Conclusões
No texto sobre o ensino da psicanálise nas universidades, Freud (1919/2006) fala que a experiência prática se adquire através da análise pessoal, abordagem e orientação de outro psicanalista. Eu retomo a isso, para me referir a experiência clínica que foi explanada, enfatizando a importância desses três aspectos para pensar em todo o caso clínico. Surgiram algumas dúvidas e interpretações que ocorreram após o encerramento dos atendimentos à Joaquim.
Refletindo acerca do trabalho clínico, arrisco dizer que eu mesma tenha mandado esse paciente embora na medida em que as minhas resistências na escuta se ergueram durante o tratamento, e consequentemente as do paciente. O trabalho ocorreu a partir dos efeitos que se recolheu na transferência. Quando o paciente deu um basta em sua irmã, ele também conseguiu colocar uma limitação no tratamento, na medida em que a minha ambição pessoal e o não escutar (momento em que selecionei a escuta), interferiu no percurso.
Vale-se ponderar que cada caso clínico trará uma vivência no desenrolar da prática. Cheguei às seguintes hipóteses acerca do porquê sugestionei: 1) estou identificada com a irmã?; 2) foi difícil manter-me em uma posição neutra; 3) desejei tamponar uma falta do paciente? Também pude pensar sobre a sensação que tinha de que o paciente iria retornar a beber a qualquer momento, inicialmente isso possuía um cunho de prognóstico, ao passo que hoje posso concluir que havia uma espécie de culpa ao pensar nisso. Assim como o paciente colocou uma limitação em seu tratamento, eu me limito na questão de minha culpa.
O caso de Joaquim repercutiu a quebra da minha idealização enquanto terapeuta. Freud (1917/2006) apresenta o luto como uma reação à perda de algo, no meu caso, a perda de um ideal e que ele pode ser superado após um lapso de tempo sem danos. Foi o que ocorreu comigo durante todo o processo de atendimentos, supervisões, análise pessoal, e principalmente, na escrita dessas linhas.
Botega, N. J. (2000). Prática psiquiátrica no hospital geral: interconsulta e emergência. Artmed Editora
Freud, S. (2015). A dinâmica da transferência (1913) In Edição Standard Brasileira das Obras Completas, 12, 58-65.
Freud, S. (2006). Luto e melancolia (1917) In Edição Standard Brasileira das Obras Completas, 14, 138-152.
Freud, S. (2015). Recomendações aos médicos que exercem a psicanálise (1912) In Edição Standard Brasileira das Obras Completas, 12, 65-75.
Freud, S. (2006). Sobre o ensino da psicanálise nas universidades (1919) In Edição Standard Brasileira das Obras Completas, 17, 105-108.
Moretto, M. L. T. (2002). O que pode um analista no hospital?. Casa do Psicólogo.
ABNT — PINHEIRO, F. GIOPPO, J. R. W. Os impasses na transferência: um relato de experiência. CadernoS de PsicologiaS, n. 4. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/os-impasses-na-transferencia-dentro-de-um-hospital-geral-um-relato-de-experiencia. Acesso em: __/__/___.
APA — Pinheiro, F. Gioppo, J. R. W. (2023). Os impasses na transferência: um relato de experiência. CadernoS de PsicologiaS, 4. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/os-impasses-na-transferencia-dentro-de-um-hospital-geral-um-relato-de-experiencia.