Revista CadernoS de PsicologiaS

Pandemia tsunami: análise simbólica e alquímica no Serviço de Psicologia em UBS

Daniela Botti Marcelino
Unidade Básica de Saúde São Silvestre da Secretaria de Saúde Municipal de Maringá

Psicóloga (CRP-08/09123). E-mail: dani_botti@yahoo.com.br
#Relatos_de_Experiência

Resumo: Esse artigo tem por objetivo repensar a prática do psicólogo na Atenção Primária à Saúde (APS) em momento de Pandemia da COVID 19. Inicialmente através da emersão de um sonho pessoal, que possibilitou a análise simbólica da Pandemia com um Tsunami e com o processo alquímico da solutio. Posteriormente relacionando o novo olhar da prática do psicólogo na APS com os processos alquímicos de solutio e coagulatio e a movimentação entre eles. Observa-se a possibilidade da função transcendente na integração da solutio com a coagulatio, incluindo novos métodos de atendimento psicológico, porém não coagulando neles, mas permitindo fluidez do novo. Concluindo que não somente no âmbito profissional, mas também no pessoal faz-se necessário o movimento e integração entre as polaridades saúde e doença, vida e morte, socialização e isolamento, para uma vida mais saudável física, psíquica e socialmente nesse momento de Pandemia.

Palavras-chave: Pandemia; Psicologia Analítica Junguiana; processos alquímicos.

Tsunami pandemic: symbolic and alchemical analysis at the Psychology Service at UBS

Abstract: This article aims to rethink the practice of psychologists in Primary Health Care (PHC) at the time of covid pandemic 19. Initially through the emertion of a personal dream, that enabled the symbolic analysis of the Pandemic with a Tsunami and alchemical process of solutio. Later relating the new look of the psychologist’s practice in PHC with the alchemical processes of solutio and coagulatio and the movement between them. It is observed the possibility of transcendent function in the integration of solutio with coagulatio, including new methods of psychological care, but not coagulating in them, but allowing fluidity of the new. Concluding that not only in the professional sphere, but also in the personal sphere, it is necessary to move and integrate between the polarities health and disease, life and death, socialization and isolation, for a healthier life physically, psychically and socially at this moment of pandemic.

Keywords: Pandemic; Jungian Analytical Psychology; alchemical processes.

Pandemia de tsunami: análisis simbólico y alquímico en el Servicio de Psicología de UBS

Resumen: Este artículo tiene como objetivo repensar la práctica de psicólogos en la atención primaria de salud (PHC) en momento de COVID Pandemic 19. Inicialmente através de la emeración de un sueño personal, que permitió el análisis simbólico de la Pandemia con Tsunami y con proceso alquímico de solutio. Más tarde relacionar el nuevo aspecto de la práctica del psicólogo en PHC con los procesos alquímicos de solutio y coagulatio y el movimiento entre ellos. Se observa la posibilidad de función trascendente en la integración de solutio con coagulatio, incluyendo nuevos métodos de atención psicológica, pero no coagulando en ellos, permitiendo la fluidez de lo nuevo. Concluyendo que no sólo en el ámbito profesional, sino también en el personal, es necesario moverse e integrarse entre las polaridades de salud y enfermedad, vida y muerte, socialización y aislamiento para una vida más saludable física, psíquica y socialmente en ese momento de pandemia.

Palabras clave: Pandemia, Psicología Analítica Jungiana, procesos alquímicos.

A Psicologia enquanto profissão na Atenção Primária à Saúde (APS) vem sendo construída dentro de uma perspectiva Psicossocial a partir de 2011, com diretrizes mundiais e nacionais que vislumbram o usuário SUS como um indivíduo social, inserido em uma comunidade, família e território. (Paraná, 2014)

Nesse momento um cuidado psicossocial inclui ainda o contexto de Pandemia da COVID 19. Aspectos como isolamento social, situação e vulnerabilidade socioeconômica, sentimentos de medo e a ansiedade frente à possibilidade de adoecimento e morte, estão presentes no nosso dia-a-dia e podem nos atingir tanto quanto a doença em si. 

O serviço de Psicologia na Unidade Básica de Saúde (UBS) São Silvestre, no município de Maringá-PR, até o início da Pandemia, possuía seu espaço e método de trabalho com contornos bem definidos com grupos de apoio e matriciamento à equipe de saúde da família (ESF), psicoterapia de grupo com mulheres, grupos de orientação aos pais, grupos de tabagismo, grupos psicoterapêuticos com crianças e suas famílias, triagens agendadas, protocolo do fluxograma de entrada ao serviço de psicologia com primeiro acolhimento realizado pela equipe de saúde da família, psicoterapias individuais, grupos de escuta e avaliação psicológica para planejamento familiar, organização e compartilhamento dos serviços da Rede de Atenção à Violência Regional Cidade Alta e da Rede de Atenção à Saúde Mental Municipal.

Com a chegada da Pandemia esses contornos foram rompidos, desfeitos, dissolvidos e o que estava definido passou a não fazer mais sentido. Como fazer grupos para melhoria da saúde mental se esse formato traz risco à saúde física, à contaminação pelo novo coronavírus? Como atender crianças em grupos psicoterapêuticos com o dinamismo das crianças no momento do brincar, rompendo as regras de biossegurança e de cuidado e o alerta constantes? Como seguir o fluxograma de entrada da saúde mental pela ESF nos casos de ansiedade, pânico e/ou fobia pelo coronavírus, em que o paciente quer afastar-se da equipe de enfermagem e médica pelo risco maior de contaminação entre os profissionais de saúde?

Com relação à possibilidade e real necessidade de continuidade das reuniões de equipe e de rede, surgiram ainda outros questionamentos como o risco de contaminação por aglomeração de funcionários; a demanda aumentada de serviços para equipe de saúde na UBS; o fechamento das escolas, instituição está com número mais expressivo de participantes nas reuniões de Rede de Violência.

Todas essas perguntas vieram afligir-me nesse momento, porque diante do destruído, dissolvido, é necessário recriar, recomeçar com o novo. E como seria esse novo diante do cenário de Pandemia e lembrando que a Psicologia é uma ciência da singularidade do indivíduo e, portanto, com características diversas no enfrentamento à Covid 19?

Pensando em como construir esse novo é que o presente artigo se desenvolveu, com o objetivo de observar o cenário atual e pensar em novas formas de atuação do Psicólogo na Atenção Primária à Saúde nesse momento de Pandemia.

Ao lançar meu olhar de observadora desse cenário, também fui tomada por sentimentos diversos porque além de profissional, sofro diretamente as repercussões da Pandemia como pessoa. Assim ao mesmo tempo tornei-me observadora dos sentimentos do outro e de mim mesma, para, a partir daí, pensar em novas possibilidades de atuação profissional e até pessoal.

No início da Pandemia, enquanto lia ‘Seminários sobre Psicologia Analítica’ (Jung, 2014), deparei-me com um relato de Jung quando, através de uma fantasia em outubro de 1913, ele visualizou um dilúvio gigantesco na Europa e que mais tarde ele relacionou à 1ª Guerra Mundial. Nesse momento da leitura veio à minha consciência o seguinte sonho, que tive em 06 de agosto de 2018:

Eu estava na praia de Ipanema no litoral paranaense e uma onda gigante como um Tsunami se aproximava. Iria cobrir a cidade toda, era mais alta que os prédios, inundaria todas as construções e pessoas que ali estavam. Eu estava vindo da praia tranquila quando vi a onda gigante. Então segurei na mão de meus familiares (quatro pessoas ao todo), entrelaçando os braços e dando as mãos como uma corrente, numa sensação de que a morte estava ali, naquele momento, e a onda Tsunami nos engoliu. Quando acordei, ainda no sonho, estava sobre uma pedra grande como uma muralha de pedra, e embaixo era um vale. Estávamos vivos, sobrevivemos.

Iniciei então um processo de comparar a Pandemia da Covid 19 a um Tsunami. Ambos são fenômenos da natureza, sobre os quais não temos qualquer domínio, este entendido como poder de mudar. Podemos apenas perceber sua vinda. Ao percebermos podemos pensar em fugir dele, mas se em todos os territórios pensados pra fuga tivessem Tsunamis, menores ou maiores (como na Pandemia, que é mundial), valeria a pena abandonar sua casa, rotina, bens, sua vida construída naquele território? E saber que tudo isso que não quer abandonar, também pode ser destruído, tirado de você quando você decide ficar?

Há perdas independentemente da escolha. Se por um lado o isolamento social nos aproxima dos familiares em casa e nos protege do vírus, por outro nos afasta dos amigos, do trabalho, da rotina, da socialização, dos afetos sociais. 

O risco de afundar-se nas águas do Tsunami se assemelha ao mar de emoções no contexto da Pandemia. O afastamento social desaglomera pessoas, mas aglomera sentimentos como solidão, ansiedade, medo, desesperança, esgotamento emocional, que vão formando gigantes ondas de emoções capazes de destruir o indivíduo, sua família e muitos a sua volta.

Além disso, “…fatores situacionais, relacionados à pandemia, também podem potencializar ações suicidas, como: reações agudas ao diagnóstico, discussões sobre prognóstico, espera por resultado de testes e, em alguns casos, pela própria evolução da doença.” (FIOCRUZ, 2020, p. 3)

A Organização Mundial da Saúde afirma que até 10 pessoas podem ser impactadas pelo suicídio de alguém (FIOCRUZ, 2020). Tentativas de suicídio e/ou pensamentos de morte em familiares ou amigos próximos podem causar ansiedade, estresse, sentimentos de impotência e até depressão àqueles que estão no mesmo barco.

Ressalta-se ainda que muitos sentimentos aparecerão somente depois que o risco iminente passar, porque no momento da onda gigante o mais importante é sobreviver. É depois que a onda passa que se podem mensurar os estragos, visualizar as perdas materiais e humanas. Aí não será mais o tempo de esperar o pior, mas de velar e enterrar.

Assim pode-se dimensionar a Pandemia Tsunami em 3 momentos: primeiro, saber que ela se aproxima e pensar em como se proteger; segundo, ser inundado pela onda do vírus e suas repercussões físicas, emocionais e sociais, e lutar pela sobrevivência; terceiro, observar, perceber e sentir as perdas e visualizar o que sobrou para planejar o recomeço. 

No primeiro momento da Pandemia o serviço de Psicologia na APS no município de Maringá teve uma grande mudança, através da implantação do Plantão de Acolhimento Psicológico Municipal, no qual todos os 35 psicólogos foram realocados na Secretaria Municipal de Saúde deixando o espaço físico das UBSs e de seus territórios de atuação profissional. Iniciou-se o Plantão em 23/03/20 no qual foi ofertado escuta psicológica remota, por telefone, em plantão das 07 às 01 hora da manhã, incluindo finais de semana e feriados. Observou-se na prática a importância dessa modalidade de atendimento, nesse início da Pandemia em Maringá, onde o primeiro decreto de 30 dias instituía isolamento social com fechamento de todo comércio não essencial, toque de recolher e ampla fiscalização municipal. As consequências emocionais evidenciadas nesse contexto e acolhidas no Plantão foram categorizadas de acordo com os temas trazidos nos atendimentos remotos. Os mais evidenciados estavam nas categorias: ‘dificuldade de adaptação à situação de Pandemia’ que incluía sentimentos de solidão, conflitos familiares e dificuldade na rotina (onde e com quem deixar os filhos para trabalhar, como atender as necessidades dos familiares de alto risco para COVID 19, dificuldade de manejar trabalho, serviços domésticos e educação dos filhos, etc.) e ‘medo da doença para si e/ou para o outro’ que incluía preocupações com o adoecer, tratamento e morte. Ressalta-se o impacto do desconhecido nesse início de Pandemia observando que o número de atendimentos nos 30 primeiros dias, 1.098, foi mais do que o dobro dos próximos 30 dias, 423 atendimentos de acolhimento psicológico no Plantão. (Maringá, 2020a)

Após os 30 primeiros dias outros fatores emocionais foram evidenciados como agravamento de transtornos mentais já instalados, aparecimento de novos transtornos, conflitos familiares e preocupações e/ou dificuldades econômicas. Nesse momento alguns psicólogos retornaram às Unidades Básicas de Saúde de sua lotação, afim de atender melhor essa demanda em seu território. No Plantão, além da demanda espontânea de todo município, foi realizado monitoramento, através de psicoterapia remota, dos usuários já acompanhados nas UBSs ou por elas referenciados ao Plantão, mas, nesse segundo momento da Pandemia Tsunami, a demanda em saúde mental começou a se intensificar nas UBSs.

Retornar à UBS São Silvestre não significa fazer tudo igual era antes, porque nada mais era como antes, desde o espaço físico até as queixas psicológicas. Iniciar observando caso a caso foi o primeiro passo, um olhar único, intenso, vazio de pré-julgamentos e concepções de ‘já sei’. Ao mesmo tempo debruçando-se sobre estudos da Psicologia em momentos de catástrofes, desastres e epidemias, através de cursos online como, por exemplo, o Curso Nacional de Saúde Mental e Atenção Psicossocial na COVID 19 da FIOCRUZ (2020).

Após 5 meses de Pandemia, já vivenciamos o primeiro momento da Pandemia Tsunami, a ansiedade frente ao desconhecido, a insegurança diante de inúmeras possibilidades de adoecimento/morte e de biossegurança. Hoje, em Maringá, estamos no segundo momento, inundados pela onda, alguns desacordados e submersos, alguns tomando fôlego num momento de vir à superfície, alguns feridos, alguns se afogando.

Edinger (2006), a partir dos estudos alquímicos de Jung, cria uma analogia entre o processo de individuação e os processos alquímicos como a calcinatio, solutio, coagulatio, sublimatio, mortificatio, separatio e coniunctio. Ao simbolizar a Pandemia como um Tsunami, pode-se observar a presença da solutio intensamente. Solutio é um procedimento da alquimia que pertence à água, ao solver, dissolver, tornar solúvel, retorno da matéria ao estado original, à prima matéria.

A Pandemia assemelha-se ao estado de solutio nos sintomas descritos pelos usuários SUS como afogamentos simbólicos, inundação de medos e ansiedades, possibilidade de adoecimento e morte. “… Afogamento é sinônimo de solutio […]. O banho, o aguaceiro, o chuvisco, a natação, a imersão na água, etc. são equivalentes simbólicos da solutio que costumam aparecer em sonhos.” (Edinger, 2006, p.77)

Ao permanecermos no estado de solutio temos a sensação de estar afogados. Segundo Edinger (2006) “…A solutio pode tornar-se mortificatio.” (p.71) porque traz essa sensação de dissolução, aniquilação, fim, morte daquele formato, daquela fórmula. Para tornar-se prima matéria, a matéria atual precisa ser dissolvida. Porém é também a partir da solutio que pode emergir o novo, como numa sequência de morte e renascimento, vida nova. 

“… Num texto, o rei que se afoga diz: ‘Aquele que me libertar das águas e me conduzir à terra seca, a este farei próspero com riquezas eternas’…”. (Edinger, 2006, p.72-73). Assim como o rei, para sobreviver a Pandemia Tsunami temos buscado a terra seca, uma ancoragem, aterramento, um porto seguro. Algo que nos assegure de sair do movimento incessante das águas. Um exemplo de busca por essa ancoragem pode ser observado, no sonho descrito, através do entrelaçamento dos braços e mãos dadas. 

Edinger (2006) descreve coagulatio como o processo alquímico ao contrário da solutio, simbolizando o elemento terra.

O movimento circular das águas da Pandemia Tsunami já se assemelha a transição entre solutio e coagulatio, pois através do movimento circular interno das ondas é possível obter o impulso para vir à superfície respirar e de fazer a terra surgir.

… a coagulatio é promovida pela ação (mergulho, batedeira, movimento de espiral) […]. Em termos psicólogicos, significa que a atividade e o movimento psíquico promovem o desenvolvimento do ego. A exposição à tempestade e à tensão da ação, a batedeira da realidade, solidifica a personalidade. (Edinger, 2006, p. 103)

No âmbito da prática profissional do psicólogo pode-se inferir que o próprio movimentar-se na busca pelo novo, pela forma de atendimento psicológico possível nesse momento, que atenda a demanda psíquica do usuário SUS e ao mesmo tempo sua biossegurança, seja a transição entre a solutio e a coagulatio.

Na UBS São Silvestre as novas demandas psicológicas referem-se principalmente ao agravamento de transtornos mentais, a crises de ansiedade pontuais e conflitos familiares em diferentes níveis de sofrimento psíquico e resiliência. Observou-se que em diversos atendimentos o método da Terapia de Sessão Única foi o suficiente para estabilização emocional do usuário e cessação do sofrimento. Terapia de Sessão Única é um método de atendimento muito utilizado em ambientes de saúde no Canadá de longa data, no qual psicólogo e cliente se encontram em uma sessão de uma hora e meia com objetivo de trabalhar uma questão pontual que está evidente nesse momento específico e que objetiva o fechamento no momento único da sessão. (Webinar, 2020)

Observou-se ainda que em alguns casos o acompanhamento psicológico do casal e/ou da família foi o que possibilitou essa estabilização. Em especial quando a demanda psicológica se referia a crianças e pré-adolescentes, que por medidas protetivas ao Covid 19, devem ficar mais afastadas socialmente. (Maringá, 2020b)

A partir dessa medida protetiva, coloquei-me a avaliar o quão necessário é expor a criança ao risco de contaminação na UBS para atendimento psicológico. A implicação dos pais no processo psíquico da criança e adolescente é insubstituível. O sucesso da intervenção psicoterapêutica pode ir por água abaixo, se dissolver, solutio, se não houver transformação psíquica similar no contexto familiar. Intensifiquei ainda mais a crença de que, em muitos casos, cuidar psiquicamente dos pais também é cuidar da criança.

… A criança se encontra de tal modo ligada e unida à atitude psíquica dos pais, que não é de causar espanto se a maioria das perturbações nervosas verificadas na infância devam sua origem a algo de perturbado na atmosfera psíquica dos pais… (Jung, 2013b, p.48)

Ressalta-se que a maioria dos atendimentos psicológicos na UBS está sendo realizada de forma remota, principalmente por telefone e algumas vezes por vídeo-chamada na plataforma Doctoralia[1], conforme preconiza o Ministério da Saúde e o Conselho Federal de Psicologia (FIOCRUZ, 2020). No entanto essa forma de atendimento nunca havia sido utilizada por mim anteriormente nesses quase 20 anos de profissão.

Também psicoterapia de casais, de família e terapia de sessão única são métodos de atendimento psicológicos pouco utilizados na UBS São Silvestre anteriormente à Pandemia. Trazer novos métodos ou novas possibilidades de atendimento psicológico é trazer a coagulatio na prática profissional, no sentido de definir formas de atendimento, aterrar.

Porém é importante lembrar que, segundo Edinger (2006, p. 101) a coagulatio é “…Pesada e permanente, a terra tem forma e posição fixas […] Nem se adapta facilmente à forma de qualquer recipiente, ao contrário da água…”, e a considera sinônimo de fixatio. Fixar que todos os usuários SUS podem ter suas demandas psíquicas atendidas por terapia de sessão única, ou por atendimento remoto, ou que todas as crianças sejam contempladas emocionalmente apenas através de seus pais, é aterrar angústia profissional nessa Pandemia Tsunami, mas não é contemplar o sofrimento psíquico do outro.

A cada sessão o usuário e o método de atendimento devem ser reavaliados e para tanto se faz necessário fluidez, solutio, por parte do psicólogo. Edinger (2006) afirma que ao permanecermos na coagulatio, vamo-nos tornando sem vida porque tudo que é encarnado, materializado tem um fim, encaminha-se pra mortificatio ou putrefactio.

Ao buscar o melhor, o “certo” no atendimento psicológico ao usuário SUS nesse momento de Pandemia, faz-se um processo alquímico semelhante à coagulatio, buscando uma terra firme, uma segurança na atuação profissional. Porém o movimento psíquico para superar sofrimento emocional, na Psicologia Analítica Junguiana chamado de processo de individuação, tem fluidez, e é por meio dessa fluidez que ocorre a dissolução do conflito coagulado, a transformação psíquica, o encontro com o eu mais profundo, Si-mesmo, o Self (Jung, 2013c).

Parece-me que um caminhar profissional que se movimenta entre coagulatio e solutio, na busca por métodos/técnicas psicológicas e uma constante experimentação no relacionamento transferencial e contratransferencial com analisando, traz a possibilidade de integrar ambas as polaridades no processo de Psicoterapia e/ou atendimento psicológico. É a função transcendente (Jung, 2013a) na prática do psicólogo da Atenção Primária a Saúde nesse momento de Pandemia Tsunami.

A capacidade da psique de formar símbolos, isto é, de unir pares de opostos no símbolo para uma síntese, Jung chama de sua função transcendente que ele não entende como uma função básica (como o pensar ou o sentir que são funções do consciente), mas como uma função complexa, composta de várias funções; e ‘transcendente’ não significa para ele uma qualidade metafísica, mas o fato de que, por meio dessa função, se cria uma passagem de um lado para o outro. (Jacobi, 1986, p.91, citado por Parisi, 2009, p. 60)

Trazendo a função transcendente não só ao âmbito do profissional Psicólogo, mas também ao cotidiano pessoal pode-se pensar em como cada um de nós se movimenta psiquicamente, fisicamente e socialmente entre expor-se e cuidar-se, viver e morrer, adoecer e sobreviver, estar só e estar com o outro, ir ou ficar. Pode-se ainda inferir que enquanto há integração dessas polaridades saúde/doença, vida/morte, socialização/isolamento, tanto no âmbito pessoal quanto no profissional, há movimento pela busca da vida e da saúde mental.

Notas

[1] https://www.doctoralia.com.br

Referências

Edinger, E. (2006). Anatomia da Psique: o simbolismo alquímico na psicoterapia. São Paulo, SP: Cultrix.

FIOCRUZ, Fundação Oswaldo Cruz – Centro de Estudos e Pesquisas em Emergências e Desastres em Saúde (2020). Suicídio na Pandemia da COVID 19. Brasília, DF: FIOCRUZ. Recuperado em: https://www.fiocruzbrasilia.fiocruz.br/wp-content/uploads/2020/05/cartilha_prevencaosuicidio.pdf.

Jung, C. G. (2013a). A função transcendente. In C. G. Jung., Obras Completas (Vol. 8/2: A natureza da psique. M. R. Rocha, trad., 10a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.

Jung, C. G. (2013b). Introdução à obra de Frances G. Wickes “Análise da alma infantil”. In C. G. Jung., Obras Completas (Vol. 17: O desenvolvimento da personalidade. F. V. do Amaral, trad., 14a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.

Jung, C. G. (2013c). Obras Completas (Vol 9/1: Os arquétipos e o inconsciente coletivo. (M. L. Appy & D. M. R. F. da Silva, trad., 10a ed.). Petrópolis, RJ: Vozes.

Jung, C. G. (2014). Seminários sobre Psicologia Analítica (1925). (G. A. Titton, trad.) Petrópolis, RJ: Vozes. (Trabalho original publicado em 1925)

Maringá. Gerência de Saúde Mental. (2020a). Dados levantados através de fichas de registro do Plantão de Acolhimento Psicológico Municipal na Pandemia da COVID 19. Maringá, PR: Secretaria Municipal de Saúde de Maringá.

Maringá. Prefeitura Municipal de Maringá. (2020b). Decreto nº1057/2020. Lei Complementar nº 766, de 30/06/2009, publicada no O. O. M. em 04/09/2009. Recuperado de http://www2.maringa.pr.gov.br/cdn-imprensa/decreto1057.pdf.

Paraná. Secretaria de Estado da Saúde do Paraná. (2014). Oficina 8 – Saúde Mental. Oficinas do APSUS – Formação e Qualificação do Profissional em Atenção Primária à Saúde. Curitiba, PR: Secretaria de Estado da Saúde do Paraná.

Parisi, S. (2009). Separação amorosa e individuação feminina: uma abordagem em grupo de mulheres no enfoque da Psicologia Analítica. (Tese de doutorado. Instituto de Psicologia, Universidade de São Paulo, São Paulo).

Webinar (2020). Recursos da terapia narrativa de sessão única em tempo de Pandemia e isolamento social. Realizado em 01/05/2020 promovido pelos grupos de pesquisa Dialog (Universidade de São Paulo, FFCLRP) e DeVerso (Universidade Estadual de Maringá). Recuperado de https://www.youtube.com/watch?v=gyTnShhirz0.

Como citar esse texto

APA – Marcelino, D. B. (2020). Pandemia tsunami: análise simbólica e alquímica no Serviço de Psicologia em UBS. CadernoS de PsicologiaS, 1. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/pandemia-tsunami-analise-simbolica-e-alquimica-no-servico-de-psicologia-em-ubs.

ABNT – MARCELINO, D. B. Pandemia tsunami: análise simbólica e alquímica no Serviço de Psicologia em UBS. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/pandemia-tsunami-analise-simbolica-e-alquimica-no-servico-de-psicologia-em-ubs>. Acesso em: __/__/____.