#Resenha
Esse é o questionamento que fiz após assistir a terceira e última temporada de “De Volta aos 15” uma série Brasileira lançada em 2022, adaptação do livro de Bruna Vieira, disponível na Netflix, que relata a história de Anita, uma mulher de 30 anos, que descobre a viagem no tempo através de uma rede social chamada “floguinho”. E curiosamente, a viagem leva para o que ela considera o pior dia da vida dela, ela volta aos 15 anos, no primeiro dia de aula.
Nas duas primeiras temporadas, ela viaja diversas vezes no tempo, voltando para o passado, e fazendo mudanças que influenciam no futuro. E no último episódio da segunda temporada, ela decide que não irá mais viajar no tempo, e apagará sua conta no floguinho, e é assim que se inicia a terceira temporada, com a tentativa de apagar a conta, contudo, ela volta novamente, mas agora não mais aos 15 anos, e sim aos 18.
Esta terceira temporada traz novidades sobre a própria Anita e as viagens no tempo, o floguinho apresenta um bug, e ela começa a viajar no tempo, porém, sem controlar como fazia antes, chegando à conclusão de que havia alguém viajando com ela. E do mesmo modo, Anita continua voltando no tempo na tentativa de “consertar” o futuro. E daí o questionamento, por que queremos tanto mudar nosso passado, ou especificamente nesse caso, nosso passado em busca de novas versões de um futuro?
Acredito que as incertezas que apenas o futuro nos reserva, talvez seja algo incômodo de fato. De acordo com Kierkegaard (1844), a angústia que vivenciamos é a vertigem da liberdade, ao nos depararmos com a possibilidade de escolha que podem alterar nosso futuro, a ansiedade surge, e isso ocorre porque este é o momento em que a liberdade confronta a responsabilidade.
Esse sentimento é expresso o tempo todo por Anita, que aliás sempre viajava no tempo por não se contentar com os mínimos detalhes, demonstrando uma necessidade de buscar uma certa perfeição, que nos leva a outra reflexão, sobre como a nossa sociedade contemporânea nos faz buscar essa perfeição e principalmente, o mais rápido possível. Nos anos 2000, Bauman já discutia sobre vivermos tempos líquidos, ou seja, como a sociedade promovia e ainda promove uma busca constante por idealizações, na mesma medida que acelera as vivências pessoais, criando um abismo entre as realizações e as expectativas sociais que fazem com que as pessoas se sintam pressionadas a atingirem padrões da forma mais rápida possível.
E essa ideia reflete a postura de Anita, sobre sempre tentar consertar as coisas para as outras pessoas com quem ela vivia e tinha um carinho, na tentativa de fazer o melhor. Mas, era o que ela considerava o melhor para o outro, e não de fato o que a própria pessoa achava que seria melhor. Mas e o que isso tem a ver com mudar nosso passado? Bom, para Anita, na medida em que ela alterava o passado, consecutivamente o futuro se alterava, e parecia que essas mudanças nunca seriam saciadas, pois a cada volta, a cada mudança, ela descobria algo novo para alterar, demonstrando o que foi discutido acima, sobre essa busca pela perfeição.
Para que a Anita se desse conta disso, ela precisou entrar em um looping temporal, uma situação que fez ela vivenciar o mesmo dia, diversas vezes seguidas, sempre na busca de consertar alguma coisa, e fazer a linha do tempo perfeita, entretanto, isso nunca funcionou. Até o momento em que ela descobriu que a única forma de parar com aquilo, era de fato impedindo a possibilidade de viajar no tempo. E foi apenas ao confrontar todas as falhas, que Anita se deu conta de que ela deveria refletir sobre ela mesma, e que não existe a possibilidade de estar sempre no controle de todas as situações.
Dessa forma, respondendo à pergunta inicial, a necessidade que temos de mudar nossa vida, deixar tudo “perfeito”, nos dá a falsa sensação de que se pudéssemos voltar e fazer as coisas diferentes, talvez alcançaríamos a tão desejada perfeição. Apesar disso, quando passamos por esse dilema, esquecemos que não teríamos como saber quais seriam os resultados ou consequências de nossas escolhas. E por isso que voltar ao passado, nos parece ser algo tão atraente, porque gostaríamos de poder estar no controle de tudo, porém, isso não é uma possibilidade, e é a partir disso que aparece a angústia do não saber.
Ao longo da série, a jornada de Anita demonstra suas memórias como elemento central, sua busca por revisitar e alterar seu passado, destaca uma luta que muitas pessoas podem enfrentar que é de reconciliar suas experiências passadas com as aspirações futuras. Assim, a série além de entreter o telespectador, provoca reflexões profundas acerca da natureza das memórias e seu impacto em nossas vidas. Através da experiência de Anita, podemos perceber como nossas próprias histórias moldam quem somos. Sendo assim, a Psicologia nos ajuda a compreender que por mais que não possamos alterar nosso passado, através das memórias, pode ser feita uma releitura, envolvendo uma interpretação contínua sobre a própria existência, que constantemente ajusta o passado para dar sentido ao presente (Merleau-Ponty, 1945).
Bauman, Z. (2000). Modernidade líquida. Polity Press.
Lucas, M.; Alckmin, C.; Rohde, O. (Produtores), & Jundi, V.; Toffoli, D.; Magalhães, C.; Médicis, M.; Person, M.; SBF, I.; Brandt, V. Lee, G. (Diretores). (2022). De volta aos 15 [série]. Brasil: Netflix & Glaz Entretenimento.
Kierkegaard, S. (1844). O conceito de angústia (A. Hannay, tradução). Penguin Classics.
Merleau-Ponty, M. (1945). Fenomenologia da percepção. Martins Fontes.
ABNT — PEREIRA, R. L. G. Por que queremos mudar nosso passado?. CadernoS de PsicologiaS, n. 6. Disponível em: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/por-que-queremos-mudar-nosso-passado/. Acesso em: __/__/___.
APA — Pereira, R. L. G. (2024). Por que queremos mudar nosso passado? CadernoS de PsicologiaS, n6. Recuperado de: https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/por-que-queremos-mudar-nosso-passado/