Revista CadernoS de PsicologiaS

Potências e desafios da atuação em Psicologia Escolar na pandemia de Covid-19

Nájila Cristina Camargo
Psicóloga (CRP-08/23576). E-mail: naji.camargo@gmail.com
Pedro Braga Carneiro
Psicólogo (CRP-08/13363). E-mail: pedrobcarneiro@gmail.com.
#Inquietações_teóricas

Resumo: A educação sofreu profundos impactos com o isolamento social decorrente da pandemia da Covid-19. Projetos foram suspensos e atividades tiveram que ser prorrogadas para evitar a contaminação, provocando uma série de desafios e frustrações. Contudo, mesmo diante das dificuldades de um momento tão excepcional, as atividades escolares não pararam, o que nos leva a refletir no projeto de educação que se desenvolve em nosso país. Sendo assim, foi necessária a reinvenção das práticas das/os psicólogas/os na escola. Algumas ações potentes passaram a ser desenvolvidas, principalmente no acolhimento à comunidade educativa com a promoção da escuta e do cuidado. Na expectativa de um cenário pós-pandemia, é importante que as/os psicólogas/os escolares evidenciem os acúmulos de experiências deste período para a construção de uma educação emancipatória e transformadora, com vistas a relações sociais mais humanas e solidárias.

Palavras-chave: psicologia escolar; desafios; educação emancipatória.

Potencies and challenges of acting in School Psychology in the Covid-19 pandemic

Abstract: Education suffered profound impacts from the social isolation resulting from the Covid-19 pandemic. Projects were suspended, activities had to be delayed to avoid contamination, causing a series of challenges and frustrations. However, even in the face of the difficulties of such an exceptional moment, school activities have not stopped, which leads us to reflect on the education project that is developed in our country. Thus, it was necessary to reinvent the practices of psychologists at school. Some mighty actions started to be developed, mainly in refuge to the educational community, in promoting listening and care. In the expectation of a post-pandemic scenario, it is important that scholar psychologists show the accumulated knowledge of this time for the construction of an emancipatory and transformative education, with a view to more humane and solidary social relations.

Keywords: scholar psychology; challenges; emancipatory education.

Potencias y desafios de actuar en Psicologia Escolar em la pandemia Covid-19

Resumen: La educación sufrió profundos impactos por el aislamiento social resultante de la pandemia Covid-19. Se suspendieron los proyectos, se tuvo que extender las actividades para evitar la contaminación, lo que generó una serie de desafíos y frustraciones. Sin embargo, aún ante las dificultades de un momento tan excepcional, las actividades escolares no se han detenido, lo que nos lleva a reflexionar sobre el proyecto educativo que se desarrolla en nuestro país. Por tanto, era necesario reinventar las prácticas de los psicólogos en la escuela. Se comenzaron a desarrollar algunas acciones poderosas, principalmente en la acogida de la comunidad educativa, en promover la escucha y el cuidado. Ante la expectativa de un escenario pospandémico, es importante que las/os psicólogas/os escolares muestren  las acumulaciones de experiencias de este período para la construcción de una educación emancipadora y transformadora, con miras a relaciones sociales más humanas y solidarias.

Palabras clave: psicologia escolar; desafíos; educación emancipadora.

O contexto da pandemia da Covid-19 provocou impactos significativos na atuação de psicólogas/os na área da Educação. Para abordar este tema, o presente relato de experiência se estrutura por meio da metodologia de pesquisa participante, a qual parte “da realidade concreta da vida cotidiana dos próprios participantes individuais e coletivos do processo, em suas dimensões e interações – a vida real, as experiências reais, as interpretações dadas a estas vidas e experiências tais como são vividas e pensadas” (Brandão & Borges, 2008, p. 54). Trata-se de uma metodologia amplamente pertinente para “construção de conhecimento e, também, como processo de questionamento e elaboração do sentido da própria pesquisa em seu contexto singular, situado” (Schimidt, 2008, p. 395).

Seguindo esta metodologia, a autora e o autor deste relato descrevem percepções sobre as implicações da Covid-19 e do trabalho remoto em um grupo de escolas confessionais de Educação Básica no Paraná e refletem sobre sua prática nesse cenário, com o objetivo de contribuir para a compreensão do papel da/o psicóloga escolar no contexto da pandemia e para além dela. Para tanto, partimos de uma breve revisão de literatura, a fim de se estabelecer um referencial teórico sobre o fazer em psicologia escolar e educacional – é a primeira seção, denominada “A psicologia na educação – O que fazíamos?”, na qual contextualizamos o trabalho desenvolvido antes da pandemia.

Em seguida, a seção “Os impactos imediatos da pandemia – O que aconteceu?” tem como objetivo demarcar o momento de suspensão das atividades presenciais. Depois, as seções “Ações frustradas pela pandemia – O que tivemos que parar?” e “Ações potentes em meio aos desafios – O que passamos a fazer e o que seguimos fazendo?” explicitam as interrupções, continuidades e descontinuidades, assim como os novos fazeres que se verificaram no momento atual. A seguir, em “Discussão – O que percebemos com tudo isso?”, procuramos ampliar o debate para além do cenário da Covid-19, refletindo como as dinâmicas sociais em voga na prática da educação concorrem aos desafios e potências amplificados no panorama pandêmico. Por fim, nas “Considerações Finais – À guisa de conclusão”, buscamos compreender as possibilidades – e, mais do que isso, as necessidades – de atuação propositiva de psicólogas/os para a promoção de um projeto de educação crítico, inclusivo e socialmente comprometido, na pandemia e após esta crise.

A psicologia na educação – O que fazíamos?

A construção da psicologia no campo da educação carrega um histórico de práticas naturalizantes e psicologizantes. Patto (1999) discute que o embasamento teórico pautado por modelos positivistas justificava o fracasso escolar e os problemas de aprendizagem através de determinismos sociais e raciais. Isso contribuiu com um modo de fazer individualista (para estudantes) e culpabilizador (para famílias).

Com o processo de redemocratização brasileira e fortalecimento de movimentos sociais, também pulsou a necessidade por uma psicologia comprometida socialmente, que desvelasse preconceitos e fortalecesse uma atuação implicada com as políticas públicas, com os direitos humanos e a produção de cidadania. Assim, a psicologia na educação vem se redesenhando como uma possibilidade de contribuir com os processos educativos através de um olhar ampliado diante dos fenômenos.

Freire (2018a) afirma que a prática educativa é composta por quatro dimensões: a gnosiológica, a estética, a política e a ética. Defendemos que psicólogos/as na educação se assumem como fazedores/as dessas dimensões. No que se refere à dimensão gnosiológica, ressaltamos que psicólogos/as na escola produzem saberes e contribuem com a formação de conhecimento que ocorre em sala de aula, mas também fora dela, por meio da participação nas diversas tramas escolares (formações de professoras/es, mediações de conflitos, auxílio nos planejamentos, atendimentos individuais e coletivos, reuniões de equipes, construção de projetos, entre tantos outros).

Entendemos a dimensão estética como a boniteza que pode ser testemunhada quando a escola se propõe a garantir uma educação de qualidade pautada no desenvolvimento da criticidade. Isso demanda o desenvolvimento coletivo de espaços participativos, ações que valorizem a diversidade e a diferença, e a contribuição intencional com o desenvolvimento de funções psicológicas das/os discentes – por exemplo:  curiosidade, criatividade, inteligência, afetividade – para a sua interrelação com o mundo.

A dimensão política relaciona-se com o posicionamento de que não existe uma escola sem ideologia, ou processos educativos “neutros”. Ou o projeto educativo será fundamentado em uma racionalidade crítico-emancipatória, libertadora dos sujeitos ao passo que promove a ação criadora e transformadora; ou trata-se as/os estudantes como depósitos de conteúdos, a fim de serem adaptadas/os, ajustadas/os à sociedade em suas relações assimétricas de poder, em uma visão bancária do ensino (Menezes & Santiago, 2014), que serve a uma lógica opressora e individualista típica do capitalismo neoliberal (Kuenzer, 2017), a qual contribui para o adoecimento das pessoas. Portanto, também cabe à psicologia identificar e atuar diante das forças institucionais que silenciam e do neoconservadorismo que muitas vezes se faz presente através de discursos ou de um projeto educativo domesticador e autoritário.

Já a dimensão ética, nos faz compreender que a vida das pessoas é composta por histórias, contextos, necessidades, vontades, sentimentos, pensamentos, enfim uma infinidade de questões que atravessam o modo de existir, ser e aprender, não sendo possível prometer (ou mesmo querer) que a psicologia na educação responda ou resolva tudo. Inclusive, salientamos o quanto a prática é potencializada quando realizada de forma interdisciplinar, com a compilação de saberes e fazeres de diferentes pessoas da comunidade educativa.

Os impactos imediatos da pandemia – O que aconteceu?

No dia 11 de março de 2020, a Organização Mundial de Saúde registrou que as contaminações pelo novo coronavírus atingiam um estágio de pandemia, ou seja, a disseminação por todo o globo de uma doença altamente contagiosa e com potencial letal (Mariz, 2020). Como medida de proteção à saúde coletiva, tornou-se fundamental a restrição de aglomeração e circulação de pessoas.

Nesse contexto, logo verificou-se que as escolas seriam espaços de grande risco para a transmissão da Covid-19 e, portanto, as aulas deveriam ser suspensas por todo país. No Paraná, o Decreto Estadual n.º 4230, de 16 de março de 2020 estabeleceu, no rol de medidas para enfrentamento da emergência de saúde pública, a suspensão das aulas presenciais em escolas públicas e privadas por tempo indeterminado.

Destaca-se que o uso da palavra “presenciais”, aliado à indefinição quanto ao calendário letivo de 2020, ensejou um debate por toda comunidade educativa: seriam possíveis (ou necessárias) aulas de maneira remota? O ano letivo seria validado pelas autoridades em Educação, com aprovações e reprovações de estudantes mediante processos de avaliação, como de costume? Seria cobrada a aquisição de conteúdos por parte das/os estudantes, mesmo com uma mudança abrupta nos métodos pedagógicos a serem utilizados? Nenhuma dessas perguntas encontrou respaldo nos órgãos responsáveis pela política de Educação, deixando as escolas à deriva, como se nada de excepcional estivesse acontecendo, seguindo, portanto, com a pretensão do aproveitamento do ano letivo.

Diante das incertezas, gestoras/es das instituições educacionais públicas e privadas se adiantaram em determinar às equipes a utilização de tecnologias (analógicas ou digitais) de comunicação e informação para a prática do ensino remoto. Em poucos dias, professoras/es, coordenadoras/es pedagógicas/os e toda a equipe escolar já estavam empreendendo esforços para produção de textos, vídeos, questionários, toda uma gama de atividades que pudessem ser enviadas a estudantes à distância, lançando mão de todos os recursos possíveis para promover a discentes a aquisição do conhecimento relativo aos conteúdos curriculares da escola. – um foco, portanto, conteudista, buscando atender ao planejamento pedagógico.

Do ponto de vista laboral destas profissionais, Mariz (2020) verifica que a pressão das instituições pela realização das atividades docentes no ambiente doméstico pode ensejar grande ansiedade, especialmente quando somada a uma série de crises próprias do momento pandêmico (como a necessidade de organização das tarefas domésticas e os impactos nos relacionamentos).

Machado (2020) aponta como essa mudança foi abrupta, e as videoconferências, videochamadas, o uso de plataformas informatizadas e outros novos significantes tomaram de assalto o trabalho de professoras/es. Tal situação evidenciou o abismo de desigualdades presentes em nosso país, ao passo que muitas/os estudantes, que não dispõe de recursos para acompanhar as aulas à distância (desde computadores com acesso à internet, até mesmo ambiente e alimentação adequados ao estudo), ficaram alijados do processo educacional.

Neste sentido, Kestring, Horn, Rocha e Santarosa (2020) ponderam sobre o contexto da educação pública paranaense, mas percebe-se que tal reflexão se aplica também às escolas particulares. Para as/os autoras/es, a rápida adesão a um modelo de ensino remoto, imputando às/aos docentes a responsabilidade pela organização das atividades, sem poderem de fato refletir quais seriam as melhores metodologias a serem utilizadas, ou mesmo a pertinência do trabalho com os conteúdos escolares nesse momento, serve para assegurar uma aparência de normalidade no ensino, em um contexto no qual absolutamente nada é normal. Faz-se então um ensino repleto de improvisos, no qual as dificuldades vão sendo percebidas e remendadas quase que diariamente, de forma descontextualizada ao que acontece na vida da comunidade educativa, causando mal-estar a todas/os as/os envolvidas.

Ações frustradas pela pandemia – O que tivemos que parar?

A pandemia evidenciou aspectos que já se faziam presentes no cotidiano brasileiro: as desigualdades sociais, a saúde como mercadoria, a falta de investimento em saneamento básico, entre outras. Intensificou sentimentos, modificou as relações de espaço e tempo, questionou fronteiras e demonstrou que mesmo um vírus microscópico pode ter um enorme poder sobre as vidas. Bastos (2006) comenta que os vírus são máquinas spinozianas cujo propósito é o de persistir onde mais lhes convêm, por isso, cumprem à letra as legislações antidiscriminação, pois não fazem preferência de raça, cor ou credo. Compreendemos que a pandemia também está evidenciando a fragilidade humana, trazendo consigo oportunidades para reflexão, mudanças e o reconhecimento das frustrações advindas das renúncias que a própria humanidade causou.

Se antes da Covid-19 tentávamos trilhar um caminho de uma psicologia inserida nos corredores, nas ruas, nos equipamentos intersetoriais, na comunidade, no contato direto com estudantes, famílias e professoras/es, a pandemia forçou a suspensão (ou pelo menos a revisão) de toda essa prática, exigindo uma resposta rápida de reinvenção para a atuação no isolamento. No prefácio do livro “Pedagogia do Oprimido” (Freire, 2018a), Fiori, ao discutir sobre a diferença entre solidão e isolamento, diz que a primeira se mantém enquanto renova e revigora as condições de diálogo, enquanto o isolamento não personaliza porque não socializa. E nós fomos tomados/as pela falta do social no cotidiano.

Ficamos frustrados/as por não sentir o cheiro e o barulho da escola. Por saber que em algumas famílias as violências aumentariam e provavelmente seriam empurradas para baixo do tapete. Ficamos preocupadas/os por perceber que o trânsito judicial de processos que envolvem violações de direitos (muitas das quais foram percebidas e encaminhadas pela equipe da escola) estaria parado. Sentimos tristeza ao ver projetos e planos sendo adiados, como, por exemplo, aquele que aconchegaria as famílias para discutir temas relevantes, e aquele que faria grupos operativos com adolescentes para dialogar sobre saúde mental e território.

Por vezes, também é frustrante dizer para as famílias acessarem as aulas online, visto o perigo de produzir uma lógica que reafirme que o ambiente virtual conseguirá substituir a mediação das/os professoras/es no encontro que ocorre pela presença. Ressaltamos ainda o quanto nos sentimos enfraquecidos/as diante da nossa impotência defronte as faltas concretas das pessoas que dependem de um projeto de sociedade mais justa e de vontade política para promover a igualdade social, pois, ao contrário dos vírus, ainda há preferências e seletividade na destinação de recursos e efetivação das políticas públicas.

Assim, entendemos a pandemia como um momento de crise social e profissional, o qual tenciona nossa prática a se refazer fazendo-se. Concordamos com a reflexão de Nascimento & Scheinvar (2009) de que a crise é um instrumento potente quando orientada ao diálogo, pois promove a desnaturalização da competência técnica e a desconstrução das certezas individuais. Dessa forma, estamos produzindo a abertura para novas (in)certezas e modos de inserção no contexto educacional.

Ações potentes em meio aos desafios – O que passamos a fazer e o que seguimos fazendo?

Ao discutir sobre a tecnologia, Freire (2016) assume um posicionamento de, por um lado, não a divinizar e, por outro lado, não a demonizar. O autor propõe olhar para ela de uma forma criticamente curiosa. Partimos dessa curiosidade assumindo que as ferramentas tecnológicas podem aproximar saberes e experiências e auxiliar no engendramento do cuidado. Num primeiro momento, não sabíamos ao certo como fazer isso, mas assim como as aulas foram tomando formatos outros, aquilo que era feito na escola por psicólogas/os e outras/os profissionais, também.

Quando as atividades passaram a ocorrer por plataformas digitais, nossa principal preocupação foi: e aqueles/as que não têm acesso à internet? Ou que não têm as ferramentas digitais necessárias para o acompanhamento escolar? Nossos posicionamentos em reuniões, juntamente com as coordenações pedagógicas contribuíram com a delineação de propostas alternativas para as famílias em vulnerabilidade social, incluindo busca ativa através de visitas domiciliares e a criação de instrumentais – tais como planilhas de acompanhamento – que facilitariam a comunicação e o monitoramento dos casos.

Outro ponto importante de incidência, foi contribuir com a construção do discurso de que as aulas e atividades online visavam “reduzir os danos” da pandemia e da impossibilidade das aulas presenciais. Ou seja, diante das famílias, nos posicionamos alegando que não estávamos exigindo que mães, pais e/ou outras/os responsáveis assumissem o papel de professoras/es e que compreendíamos as dificuldades que o momento coloca, destacando  a disponibilidade da equipe escolar para aprender conjuntamente a utilizar os novos recursos. Também contribuímos com a reflexão sobre o produtivismo (sob a forma do conteudismo, a prevalência dos conteúdos disciplinares nos currículos escolares sobre outras aprendizagens que as relações humanas na escola podem proporcionar), valorizando os processos participativos, como assembleias de turma, e a participação das famílias nas reuniões para a flexibilização da rotina escolar.

Demos continuidade a atendimentos que ocorriam na escola, oportunizando momentos de acolhimento, orientação e escuta qualificada via ferramentas de bate-papo pela internet (os chats) e/ou por videochamadas. Ressaltamos que esses atendimentos não têm caráter psicoterapêutico, mas objetivam produzir conversações e reflexões diante das inúmeras experiências que perpassam a vida dos estudantes e suas famílias (desde um não gostar de matemática ou estar com dificuldades para dormir, até o acompanhamento de casos em que houve algum tipo de violação de direitos e está sendo acompanhado pela rede de proteção).

De forma conjunta, psicólogas/os e assistentes sociais continuaram participando das reuniões formativas de docentes e elaboraram um plano de ação para que, mensalmente, até o fim do ano, sejam abordadas temáticas relacionadas aos Direitos Humanos e Incidência Política com os três segmentos da escola (Ensino Fundamental – Anos Iniciais, Ensino Fundamental – Anos Finais e Ensino Médio). Já foram realizadas formações abordando a história da infância e adolescência, Comunicação Não-Violenta, Estatuto da Criança e do Adolescente e Violência Sexual. Esses momentos são importantes “para colocar os conhecimentos da Psicologia a serviço do trabalho pedagógico” (Tanamachi & Meira, 2003, p. 40) e suscitar discussões que atravessam o cotidiano escolar, além de produzir inquietações nas/os profissionais – como, por exemplo, quando uma educadora opinou sobre termo “menor” para designar um adolescente, ou quando discutiu-se sobre a necessidade da produção de sentido diante dos conteúdos que serão trabalhados em sala de aula.

Algo que gostaríamos de destacar é o fato de que, a partir das formações e reflexões com a direção e coordenações pedagógicas e de uma campanha institucional que objetiva promover a autodefesa de crianças contra a violência sexual, alinhamos que todos os segmentos deveriam trabalhar a temática com todas as turmas, de forma transversalizada ao currículo, gerando um documento compilado ao fim do mês para divulgar algumas práticas realizadas nas aulas. No Ensino Médio, a partir do planejamento dos professores, construímos coletivamente um projeto pedagógico sobre o tema (violência sexual), sendo que passamos a acompanhar os momentos de assessoria entre coordenações pedagógicas e professoras/es, contribuindo com materiais e sugestões para que o projeto seja efetivado.

Mantivemos as reuniões semanais da equipe interdisciplinar de cada segmento da escola: coordenação pedagógica, assistente pedagógica, analista de pastoral (por se tratar de um grupo escolar confessional), assistente social e psicóloga. As reuniões, que passaram a ocorrer de forma remota, têm como intuito planejar estratégias de acompanhamento do trabalho docente, repassar informações sobre o cotidiano das aulas, bem como discutir sobre as especificidades de cada segmento. Participamos ainda de algumas aulas, quando as/os professoras/es manifestam a necessidade de apoio para abordar alguma temática.

Acompanhamos as reuniões de famílias que têm ocorrido quinzenalmente, e, em algumas delas abordamos temas como: processo educativo, direitos das crianças e adolescentes e segurança na internet. A tecnologia permite que, de forma instantânea, esses momentos recebam um retorno quanto à reação de participantes, sendo que destacamos as seguintes avaliações: “achei muito legal, fiquei pensando que tipo de mãe eu sou”; “achei muito interessante a maneira como foram colocadas as questões do dia a dia na realização das atividades, foi muito proveitosa para mim, vou pôr em prática muitas dicas” e “assuntos abordados interessante, muito mais pelo momento que estamos vivendo”. Essas opiniões nos fazem refletir sobre o quanto as reuniões com famílias também se caracterizam como espaços formativos e que, ao relacionar aspectos pertinentes ao momento da pandemia, contribuem para superar os desafios deste contexto.

Também foram realizados encontros online chamados: “Fala que eu te escuto!”, nome escolhido por participantes da atividade, com os três segmentos da escola. O objetivo principal era propiciar um espaço de acolhimento e diálogo entre educandos/as visto as incertezas, receios e angústias que podem advir da pandemia e do distanciamento social. Os encontros foram estruturados de forma semelhante a um círculo de diálogo, onde as crianças, adolescentes e jovens narraram como estão ressignificando o cotidiano e trocaram experiências. Esses momentos possibilitaram diversas reflexões e reafirmaram a escola como instituição de referência. As avaliações realizadas pelos/as participantes demonstram o quanto é possível produzir espaços qualitativos e que aproximam, mesmo através das telas: “Gostei de como conversamos e falaram sobre como está sendo para cada um”, “Bom, amei, deu para falar meus sentimentos e dicas”, “Muito bacana, pois quebra um pouco a rotina da quarentena e nos faz entender como os outros estão passando esse momento”, “Foi muuuuuito legal (sic), eu amei participar, gostei do espaço de fala”.

Além disso, promovemos um encontro de famílias online refletindo sobre os verbos “proteger, acompanhar e fazer crescer” e propondo dinâmicas para serem realizadas entre as pessoas da residência. Foi muito satisfatória a participação das famílias, que em tempo real mandavam fotos das atividades propostas, o que permitiu um momento leve, reflexivo e de aproximação entre família e escola. 

Outra ação interessante que tem feito parte da nossa atuação são as dicas que semanalmente publicamos via internet, em redes sociais, direcionadas para toda a comunidade educativa. As dicas abordam assuntos relevantes, levando informações e considerações sobre o momento atual, a citar: utilização do uso de máscaras e prevenção ao coronavírus, acesso ao auxílio emergencial, filmes, podcasts, equipamentos de proteção da rede intersetorial, entre outros.

Ainda, destacamos que o formato de transmissões ao vivo (lives) e eventos online, amplamente utilizados no momento atual, têm contribuído com a nossa formação continuada, permitindo a nossa reconstrução enquanto profissionais.

Discussão – O que percebemos com tudo isso?

Com os impactos bruscos da Covid-19 no contexto educacional, dada a necessária suspensão das atividades presenciais sobre as quais se alicerça toda metodologia de trabalho na educação básica, muitas das práticas que vinham se desenvolvendo por psicólogas/os escolares precisaram de uma profunda revisão. Projetos foram suspensos, atividades que exigiam o contato físico e a constância dos encontros foram suprimidas. Novas necessidades se apresentaram, como os diálogos sobre o momento vivido, os novos formatos das atividades escolares, a escuta sobre os sofrimentos experimentados, a fim de se minimizar os impactos do cenário. A criatividade, a inventividade e as trocas com todos os atores envolvidos fizeram-se (e continuam se fazendo) fundamentais para a realização de novos possíveis nesses tempos.

É curioso que, diferente de outros casos de sofrimento com as quais as/os psicólogas/os atuam, a emergência da pandemia também atinge em cheio estas/es profissionais, que compartilham com as pessoas atendidas o mesmo panorama de frustrações, privações e as dores decorrentes desta situação. Estar longe da escola, dos ambientes físicos, distantes do contato presencial com a comunidade educativa provoca uma gama de sentimentos às/aos profissionais de psicologia, que precisam, assim com o público de seu trabalho, perceber como tais afetações as/os atravessam em seu cotidiano. Temos aí um primeiro desafio.

Outra percepção importante é que os rumos da educação não são deslocados da condução de outras políticas públicas. O modo de produção e acumulação de capital de nosso tempo, que impacta as relações de trabalho, de consumo, e o modo de vida em geral, atinge em cheio o fazer escolar. Não à toa em meio a um fator tão excepcional quanto a pandemia, não houve, por parte das autoridades governamentais da área, nenhuma sinalização pela possibilidade de suspensão, ou mesmo cancelamento do ano letivo. Não seria razoável ao menos se aventar essa possibilidade, da escola desligar-se das obrigações referentes ao conteúdo, e focar suas atenções a dinâmicas do cuidado, da acolhida, da reflexão crítica sobre o momento independente das bases curriculares? É como se a educação, como a produção de bens e serviços no sistema capitalista, não pudesse parar, custe o que custar aos indivíduos, responsabilizados pelas condições de adequação às práticas vigentes.

Machado (2020) aponta que a ideia da ampliação do uso de tecnologias no cotidiano educacional (ou, o que seria uma transformação digital da sociedade) não era nova quando do surgimento da pandemia. Já estava em curso a crescente utilização de meios de comunicação remotos para o aprofundamento da individualização dos processos de ensino (Kuenzer, 2017), em atenção à lógica neoliberal de ensino que visa o funcionamento da escola sob a lógica empresarial, da produção e da acomodação dos sujeitos do processo educativo a um sistema de desproteção social (Kestring, Horn, Rocha & Santarosa, 2020).

É nesse contexto de atuação que se intensifica o desafio das/os psicólogas/os escolares: contribuir junto a docentes e discentes para “situar o currículo na direção de um projeto social que contribua para a emancipação dos sujeitos” (Menezes & Santiago, 2014, p. 48).

Considerações finais – À guisa de conclusões:

As vivências no contexto educacional explicitam que não é possível passarmos incólumes a um episódio histórico de tamanha magnitude quanto pandemia da Covid-19. Sendo assim, Machado (2020) convida a refletir que lições podem ser tiradas desse episódio. Corroboramos com a autora quando sugere que é preciso evidenciarmos a necessidade da construção de relações cada vez mais humanas e solidárias, com vistas ao bem comum de toda sociedade.

Também nesta direção, Kestring, Horn, Rocha & Santarosa (2020) nos instigam a pensar no mundo (e na educação) no período pós-pandemia. Novos parâmetros de convivência deverão ser almejados, a fim de se proporcionar um modo de existência mais coletivo, mais saudável. Não há dúvidas que haverá disputas nesse cenário: e escola seguirá sendo um espaço caro tanto por quem queira avançar na produção de saúde, quanto por um projeto de aprofundamento das desigualdades, contando, para isso, com a apatia dos sujeitos. E compreendemos ser papel das/os psicólogas/os escolares utilizarem dos acúmulos produzidos neste momento – como as reflexões sobre o (auto)cuidado, as coletividades, a importância das condições materiais para a saúde – para apoiar um projeto de educação crítica e emancipatória.

Para tanto, é importante que tanto afeto mobilizado neste período pandêmico seja reconhecido. Que as dores dessa experiência sejam nominadas, endereçadas. E que as potências sejam igualmente notadas. Colaborar com esses processos, no contexto educacional, é uma contribuição significativa das/os psicólogas/os escolares junto à comunidade educativa.

Com isso, poderemos cooperar para que a educação como a que Freire (2018b) sonhou: promotora de sujeitos conscientes de seu contexto, empoderados de seu potencial criativo e transformador, para a plena vivência de suas subjetividades. E, desta forma, materializamos o compromisso social e ético de nossa profissão.

Referências

Bastos, F. I. (2006). Aids na Terceira Década. Rio de Janeiro, RJ: Editora Fiocruz.

Freire, P. (2016). Pedagogia da Indignação: cartas pedagógicas e outros escritos (3a ed.). São Paulo, SP: Paz e Terra.

Freire, P. (2018a). Pedagogia do Oprimido (6a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.

Freire, P. (2018b). Pedagogia da Tolerância. (6a ed.). Rio de Janeiro, RJ: Paz e Terra.

Kestring, B., Horn, G. B., Rocha, L. C. P., & Santarosa, S. D. (Orgs.). (2020). Aulas não presenciais em tempos de Pandemia: Improviso, exclusão e precarização do ensino no Paraná. Curitiba, PR: Platô Editorial.

Kuenzer, A. Z. (2017). Trabalho e escola: a flexibilização do ensino médio no contexto do regime de acumulação flexível. Educação & Sociedade, 38(139), 331-354. doi: https://doi.org/10.1590/es0101-73302017177723

Machado, D. P. (Org.). (2020). Educação em tempos de Covid-19: reflexões narrativas de pais e professores. Curitiba, PR: Dialética e Realidade.

Mariz, R. (2020). O mundo dentro de casa: aprendizagens possíveis em um tempo inusitado. Brasília, DF: Esquina do Pensamento.

Menezes, M. G., & Santiago, M. E. (2014). Contribuição do pensamento de Paulo Freire para o paradigma curricular crítico-emancipatório. Pro-Posições, 25(3), 45-62. doi: https://doi.org/10.1590/0103-7307201407503

Nascimento, M. L., & Scheinvar, E. (2009). As tensões como potência na prática profissional. Psico, 40(2), 168-173. Recuperado de https://revistaseletronicas.pucrs.br/ojs/index.php/revistapsico/article/view/4192.

Patto, M. H. S. (1999) A produção do fracasso escolar: histórias de submissão e rebeldia. São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.

Brandão, C. R., & Borges, M. C. (2008). A pesquisa participante: um momento da educação popular. Revista de Educação Popular, 6(1), 51-62. Recuperado de http://www.seer.ufu.br/index.php/reveducpop/article/view/19988/10662.

Schmidt, M. L. S. (2008). Pesquisa participante e formação ética do pesquisador na área da saúde. Ciência & Saúde Coletiva, 13(2), 391-398. doi: https://doi.org/10.1590/S1413-81232008000200014

Tanamachi, E. R., & Meira, M. E. M. (2003). A Atuação do Psicólogo como Expressão do Pensamento Crítico em Psicologia e Educação. In M. E. M Meira & M. A. M. Antunes (Orgs.), Psicologia escolar: práticas críticas (pp. 11-62). São Paulo, SP: Casa do Psicólogo.

Como citar esse texto

APA – Camargo, N. C., & Carneiro, P. B. (2020). Potências e desafios da atuação em Psicologia Escolar na pandemia de Covid-19. CadernoS de PsicologiaS, 1. Recuperado de https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/potencias-e-desafios-da-atuacao-em-psicologia-escolar-na-pandemia-de-covid-19.

ABNT – CAMARGO, N. C.; CARNEIRO, P. B. Potências e desafios da atuação em Psicologia Escolar na pandemia de Covid-19. CadernoS de PsicologiaS, Curitiba, n. 1, 2020. Disponível em: <https://cadernosdepsicologias.crppr.org.br/potencias-e-desafios-da-atuacao-em-psicologia-escolar-na-pandemia-de-covid-19>. Acesso em: __/__/____.